Daniel Capecchi Nunes

No dia 21 de agosto, o Ministro Gilmar Mendes declarou que propunha algo “próximo ao semipresidencialismo” para resolver os problemas do sistema político brasileiro. A manifestação do Presidente do Tribunal Superior Eleitoral foi rapidamente corroborada pelo Presidente da República, Michel Temer, que, poucas horas depois, afirmou que o semipresidencialismo “seria muito útil ao país” <a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
As propostas de alteração do sistema de governo brasileiro para reduzir os poderes e competências do presidente foram objeto de um poderoso debate na Assembleia Nacional Constituinte e seguiram sendo foco de propostas de reformas políticas, durante grande parte do período da Nova República. No entanto, uma questão preliminar ao mérito de todas essas propostas diz respeito à possibilidade de realizar tais mudanças sem romper com o regime constitucional vigente.
Quase 30 anos antes das manifestações de Mendes e Temer, os Atos e Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988 previam, em seu art. 2o, a realização de um plebiscito, em 7 de setembro de 1993, para definir a forma de governo (monarquia ou república) e o sistema de governo (presidencialismo ou parlamentarismo). Devido a uma alteração promovida pela Emenda Constitucional no 2, de 1991, o plebiscito foi adiantado para 21 de abril do mesmo ano, tendo sido realizado de maneira exitosa. O resultado foi a vitória do presidencialismo sobre o parlamentarismo (37,1 milhões de votos contra 16,5 milhões) e da república sobre a monarquia (44,2 milhões de votos contra 6,8 milhões)<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Dessa pequena reconstrução histórica o que se pode extrair é que o constituinte originário previu um processo especial para que a forma e o sistema de governo fossem escolhidos. Diante desse processo especial e das propostas que surgem na saturada esfera pública brasileira, duas perguntas são essenciais: (i) constitucionalmente, é possível alterar o sistema de governo da Constituição de 1988?; (ii) se possível, qual a via legitima para promover essa mudança?
No que concerne à primeira pergunta, acerca da possibilidade de alterar o sistema de governo sem violar a Constituição de 1988, a resposta é simples: em princípio, não há qualquer problema em promover essa reforma. Via de regra, os limites materiais (explícitos) para a reforma constitucional estão elencados no art. 60, §4o, da Constituição Federal – as chamadas cláusulas pétreas. A menos que o arranjo semipresidencialista a ser elaborado represente alguma violação, por exemplo, ao núcleo da separação de poderes, não há que se falar em proibição de mudança de sistema<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Qualquer entendimento diferente desse tornaria a promessa constitucional de 1988 vazia, visto que a Constituição não teria instrumentos para aprimorar o seu próprio funcionamento e aprender com seus próprios erros. A rigidez das constituições, afinal, não pode ser confundida com sua total imobilidade. Se a sociedade brasileira do presente considera que seu sistema político é defeituoso, ela tem direito de rever suas escolhas do passado.
No que se refere à segunda pergunta, acerca da via constitucional adequada para promover a alteração do sistema de governo, a resposta é mais complicada: tendo o constituinte originário escolhido um processo especial para que essa decisão fosse tomada, qual seja um plebiscito, não caberia ao constituinte derivado promover essa mudança por outra via. Em outras palavras, a mudança do sistema de governo deve passar, necessariamente, por um novo plebiscito. O argumento não é novo e se sustenta por três principais razões.
Em primeiro plano, há uma questão lógica em jogo: se o constituinte originário considerou que essa escolha deveria ser precedida por um amplo debate público, com uma campanha política, culminando com uma ida às urnas da população, qual seria o sentido de desvincular os representantes populares da escolha feita pelo povo? Não parece minimamente razoável promover um amplo debate público, convocar a população para se manifestar e fazer uma escolha para, alguns anos depois, ignorar essa mesma escolha. Portanto, desvincular a escolha do sistema político do processo especial escolhido pelo constituinte de 1988 parece uma via incompatível com uma análise, minimamente, lógica do desenvolvimento constitucional brasileiro.
Em segundo plano, há um argumento relativo aos chamados “limites implícitos”<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> ao poder de reforma do constituinte derivado. Para esse argumento, tendo o constituinte originário consultado o titular direto da soberania, o povo, para saber qual sistema de governo escolher, não teria o poder reformador competência para realizar essa escolha por meio de um processo de reforma convencional. Ao estabelecer um plebiscito, nos ADCT, o constituinte originário criou uma modalidade especial de reforma constitucional, relativa exclusivamente à forma e ao sistema de governo.
Tratar desses temas, sem que se respeite essa modalidade, consistiria em violação a um limite implícito estabelecido pela Assembleia Constituinte de 1987-88. Deve-se relembrar, inclusive, que essa tese, dos limites implícitos, foi adotada pelo próprio Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADI no 829, de 1993, na qual se questionava a constitucionalidade da Emenda Constitucional no 2, responsável por adiantar a data do mencionado plebiscito.
Em terceiro e último plano, pode-se suscitar uma questão relativa ao chamado “desmembramento constitucional” e à “regra da mutualidade”. Cunhado pelo Prof. Richard Albert<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, o desmembramento constitucional pode ser definido, grosso modo, como o desfazimento da identidade de uma ordem constitucional a partir de seus próprios processos de reforma, utilizando-se para isso do invólucro de uma emenda constitucional. Concretamente, ao alterar a identidade essencial de um regime constitucional, pela via de uma emenda simples, o constituinte derivado estaria realizando um desmembramento. Do ponto de vista normativo, a resposta encontrada por Albert para que os desmembramentos fossem realizados de forma legítima foi a regra da mutualidade, segundo a qual mudanças muito profundas em uma Constituição devem ser realizadas pelo mesmo procedimento utilizado para aprovar tal constituição originalmente.
No caso da mudança do sistema politico, não é difícil argumentar que o presidencialismo foi, durante toda a vigência da Constituição de 1988, parte de sua identidade arquitetônica, sendo um elemento muito importante para seu funcionamento prático. Dessa maneira, as propostas tendentes a suprimi-lo poderiam ser consideradas processos de desmembramentos. Como consequência, a maneira legitima, à luz da regra da mutualidade, de realizar tal processo seria replicar o procedimento constitucional originalmente utilizado para fazer a escolha do sistema de governo: o plebiscito. Por essa via, manter-se-ia a legitimidade democrática da Constituição de 1988.
Em síntese, por variados motivos, não é possível fazer uma reforma que altere substancialmente o sistema político, sem levar alguns temas fundamentais à consulta popular. No caso da forma e do sistema de governo, trata-se de um mandamento constitucional, cuja ausência deveria ser considerada inconstitucional pelos órgãos competentes.
Politicamente, a proposta examinada pode ser localizada em uma gama maior de conjecturas oriundas, sobretudo, da classe política – em sentido amplo – e relacionadas à reforma política. Do lado da sociedade civil, há um temor razoável de que se esteja promovendo uma reforma de Lampedusa: “para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude”.
A sensação geral é de que a classe política tem medo do povo e de consultá-lo, tendo deixado isso muito claro nos processos relacionados às últimas reformas constitucionais e não-constitucionais (como a trabalhista). A Constituição de 1988, porém, tem como uma de suas marcas mais fortes a participação institucionalizada<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>, herança da própria Assembleia que culminou em sua promulgação. Torna-se cada vez mais difícil promover mudanças sem consultar os cidadãos e respeitar o regime constitucional vigente. Desde 1983, felizmente, todos os caminhos levam às diretas.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Disponível em:  <a href="http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,proponho-que-pensemos-algo-proximo-a-semipresidencialismo-propoe-gilmar-mendes,70001944415">http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,proponho-que-pensemos-algo-proximo-a-semipresidencialismo-propoe-gilmar-mendes,70001944415</a>; Disponível em: <a href="http://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/08/1911690-para-temer-semipresidencialismo-seria-muito-util-para-o-pais.shtml">http://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/08/1911690-para-temer-semipresidencialismo-seria-muito-util-para-o-pais.shtml</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Disponível em: <a href="http://acervo.oglobo.globo.com/fatos-historicos/no-plebiscito-de-1993-brasil-disse-nao-monarquia-sim-ao-presidencialismo-9840238">http://acervo.oglobo.globo.com/fatos-historicos/no-plebiscito-de-1993-brasil-disse-nao-monarquia-sim-ao-presidencialismo-9840238</a>
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> O argumento é explorado com grande qualidade teórica e técnica por SOUZA NETO, Claudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Fórum 2014. p. 321
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Ibid.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Cf. ALBERT, Richard. Constitutional Amendment and Dismemberment, Yale Journal of International Law, v. 48, n.1, p. 1-118, 2018(no prelo).
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> O termo é de Leonardo Avritzer. Cf. AVRITZER, Leonardo. Impasses da Democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

21062016-_ETO4197-Editar

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A constitucionalidade do semipresidencialismo

O eterno retorno das diretas