Breno Vasconcelos

Leonardo Alvim

Maria Raphaela Matthiesen

A apresentação do Projeto de Lei nº 3.887 de 2020 (PL 3.887/2020), que propõe a instituição da Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços (CBS), trouxe novos elementos aos debates sobre a reforma tributária.
Um deles, o fato gerador escolhido para a incidência da contribuição, tem sido alvo de críticas.
Nos termos dos artigos 1º e 2º do PL, a CBS incidirá sobre o auferimento de receita bruta decorrente das operações internas e de importação com bens e serviços. À previsão dos artigos 1º e o 2º do PL, o art. 7º esclarece que a base de cálculo da contribuição será a receita bruta auferida em cada operação, entendida, tal qual dispõe o art. 2º, como aquela prevista no artigo 12, do Decreto-Lei nº 1.598/77.
<a href="http://conteudo.jota.info/jota-pro-tributos"><img class="aligncenter wp-image-259015 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/07/cta-jota-pro-tributos.jpeg" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
Argumenta-se, com relação a esse fato gerador, que faltaria suporte constitucional para a criação de contribuição federal que incida sobre operações com bens e serviços, pois o artigo 195, I, b, da Constituição Federal (CF) autorizaria somente a incidência sobre receita ou faturamento.
Além disso, a referência ao artigo 12 do Decreto-Lei nº 1.598/77 traria contradição à norma, pois seu inciso IV inclui na composição da receita bruta também os ingressos oriundos da atividade ou objeto principal da pessoa jurídica, nos casos em que essa não configure prestação de serviços ou venda de bens.
Este breve artigo, em exercício de reflexão acadêmica republicana, busca apresentar um contraponto a essas opiniões, resgatando os marcos jurisprudenciais e legais de construção do vocábulo faturamento, equiparado a receita bruta.
O primeiro aspecto do fato gerador da CBS que nos chama a atenção é a restrição da competência constitucional da União. Desde a entrada em vigor da EC 20/98, a União possui competência, segundo o artigo 195, I, b, para tributar a receita, entendida como a "receita total". No entanto, o projeto restringe esta incidência para a "receita bruta", indicando, que a expressão deverá ser compreendida conforme o artigo 12, do DL nº 1.598/77.
A nós parece plenamente possível. Não se fazem presentes no texto constitucional determinantes positivas (elementos que a receita deva ter) ou determinantes negativas (elementos que ela não possa ter), de forma a se obrigar a União ao uso de um tributo direto ou mesmo ao exercício pleno de sua competência tributária.
A adoção da grandeza mais restrita, "receita bruta", como fato gerador da CBS, possui, como menciona a própria Exposição de Motivos do PL<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, endereço certo: aproveitar-se do sentido que vem sendo construído pela jurisprudência do STF para o termo, a fim de demarcar a incidência da contribuição sobre as receitas decorrentes do desempenho das atividades típicas da pessoa jurídica.
Na redação anterior à EC 20/98, o artigo 195, I, “b”, da Constituição Federal conferia à União competência para instituir contribuições sociais sobre o faturamento.
Com a instituição da Cofins pela Lei Complementar nº 70/91, o termo faturamento foi equiparado à receita bruta das vendas de mercadorias, de mercadorias e serviços e de serviços de qualquer natureza, sendo a constitucionalidade dessa previsão reconhecida pelo STF na ADC 1-1/DF.
Desde então muito se debateu acerca da possibilidade de PIS e Cofins incidirem sobre atividades que não configuram propriamente venda de mercadorias ou prestação de serviços, a exemplo das atividades exercidas por instituições financeiras<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> e a locação de imóveis.
O conceito de faturamento foi apreciado novamente pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal em 2005, no emblemático julgamento do RE nº 390.840/MG. Naquela ocasião o tribunal declarou a inconstitucionalidade do §1º do artigo 3º da Lei nº 9.718/98, que previu a incidência da contribuição ao PIS e da Cofins sobre o total das receitas auferidas pela pessoa jurídica (ou seja, a receita total).
A decisão foi pautada pela compreensão de que a lei havia extrapolado a competência originalmente outorgada pela CF, pois o faturamento somente alcançaria a parcela das receitas composta pela receita bruta de venda de mercadoria e de prestação de serviços.
Em seu extenso e bem fundamentado voto, o ministro Cezar Peluso consignou que a expressão “receita bruta de venda de mercadorias e prestação de serviços”, quis significar que tal conceito está ligado à ideia de produto do exercício de atividades empresariais típicas, ou seja, que nessa expressão se inclui todo incremento patrimonial resultante do exercício de atividades empresariais típicas.
<blockquote class="jota-article__eye">Surge nesse voto, apesar de obiter dictum, uma nova equivalência: faturamento é igual a receita bruta, que corresponde à receita da venda de bens e prestação de serviços e do exercício de atividades empresariais típicas.</blockquote>
Essa amplitude conceitual da receita bruta foi novamente destacada pelo ministro Peluso em 2006, no julgamento do RE 371.258 AgR, em que analisou o termo sob a perspectiva da locação de bens imóveis. Dessa vez, seguido pelos demais integrantes da 2ª Turma, o relator destacou que o conceito de receita bruta sujeita à exação tributária envolve, não só aquela decorrente da venda de mercadorias e da prestação de serviços, mas a soma das receitas oriundas do exercício das atividades empresariais. 
Em 2008, sob a sistemática da repercussão geral, o Plenário do STF retomou a análise do artigo 3º, §1º, da Lei nº 9.718/98, reconheceu a inconstitucionalidade do dispositivo e acolheu, por unanimidade, o voto proferido pelo ministro relator, Cezar Peluso, no qual a equivalência acima foi definitivamente assentada<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Ou seja, faturamento é a receita bruta das vendas de mercadorias e da prestação de serviços e a soma das receitas oriundas do exercício das atividades empresariais.
Pesquisa jurisprudencial exaustiva dos acórdãos do STF a partir do julgamento do RE nº 390.840/MG aponta para esse sentido em construção. A partir dos termos de busca “Receita bruta”, “PIS” e “Cofins, identificamos 45 decisões proferidas pelo STF desde novembro de 2005, sendo 19 da 2ª Turma, 14 da 1ª Turma e 12 do Tribunal Pleno.
Dessa base, 29<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> acórdãos trazem o conceito de receita bruta em sua fundamentação, retomando, na vasta maioria, decisões anteriores da Corte. Em 15 decisões, há menção expressa, no voto dos ministros, à equivalência entre receita bruta e soma das receitas oriundas das atividades empresariais, ou atividades típicas, da pessoa jurídica. Os votos proferidos em 14 acórdãos se referem somente à receita originada pela venda de mercadorias e prestação de serviços, mas 7 deles fazem menção a acórdãos em que, por sua vez, o faturamento foi considerado como receita da atividade operacional<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
Com a entrada em vigor da Lei nº 12.973/14, o artigo 12 do Decreto-Lei nº 1.598/77 caminhou para a incorporação legal da receita bruta que se compatibilizava com a jurisprudência do STF desde 2005, incluindo de forma expressa, em seu inciso IV, as receitas da atividade ou objeto principal da pessoa jurídica não compreendidas nos incisos I a III (ou seja, aquelas decorrentes da venda de bens, da prestação de serviços ou nas operações de conta alheia).
A retomada desse contexto legislativo e jurisprudencial reforça a virtude do fato gerador eleito pelo PL 3.887/20.
Observando os problemas acarretados na interpretação da legislação pretérita do PIS e da Cofins, a opção legislativa estampada no PL tenta deixar claro o conceito de receita bruta pressuposto pela norma: a parcela da receita decorrente das atividades empresariais típicas de cada pessoa jurídica, em linha com o entendimento que vem sendo traçado desde 2005 na jurisprudência do STF e as alterações normativas implementadas pela Lei nº 12.973/14 no artigo 12 do Decreto-Lei nº 1.598/77.
Assim, a CBS pretende abranger operações com bens e serviços, mas sem as amarras dos conceitos de direito privado, relacionadas às obrigações de dar ou de fazer, respectivamente. Nesse sentido, é interessante notar a opção pelo termo “operações” no artigo 1º do PL, a reforçar o entendimento de que receita bruta abrange qualquer receita operacional.
Mas somente a adoção conceitual da receita bruta não seria capaz, por si só, de fazer da CBS um tributo indireto. Afinal, o conceito de receita bruta é visto, contabilmente, como uma soma de ingressos dentro de determinado período. Sendo uma "soma" de ingressos, não é possível visualizar sua transferência ao consumidor final, nem aplicar a tão propalada não-cumulatividade ampla, técnica intrínseca aos tributos indiretos. E como o projeto pretende resolver isso? Conjugando a expressão "receita bruta" à expressão "em cada operação".
Ao dizer que o fato gerador é a "receita bruta" "em cada operação", o projeto pretende, por um lado, desvencilhar-se das amarras conceituais do direito privado, eis que a receita operacional transborda os limites de bens e serviços e colhe o resultado de toda a atividade empresarial típica, e, por outro, permitir a plurifasia encadeada do tributo, permitindo que ele se torne indireto.
Em síntese, o PL previu um fato gerador que combina o atual conceito legal de receita bruta – e, ao que nos parece, também o adotado pelo STF – com a adoção de marco temporal mais instantâneo para sua ocorrência, que não considera a soma de fatores positivos num determinado período de tempo, mas sim de cada ingresso individualmente.
O PL, assim,  poderá promover uma mudança institucional substantiva, incorporando ao sistema brasileiro uma técnica de tributação do valor adicionado, ou modelo IVA, largamente adotado na experiência internacional de tributação do consumo.
Essa esperada evolução, porém, pode ser também seu defeito: ao se concentrar em apenas dois tributos, sem alterar o texto constitucional, o governo federal vence resistências e possíveis vetos de atores contrários à reforma, sinalizando a exequibilidade imediata da proposta, mas o custo político para sua aprovação pode resultar na perda de uma janela de oportunidade para a reforma mais ampla que abarque, especialmente, tributos como ICMS e ISS, sabidamente fontes de enorme complexidade e litigiosidade.
No desenrolar dos debates sobre a reforma, contudo, a virtude do fato gerador escolhido pelo PL não pode ser esquecida. A proposta de uma contribuição alinhada ao entendimento que vem sendo desenhado pelo STF ao longo dos últimos 15 anos e às alterações recentes da legislação tributária, que em sintonia com a Constituição pós EC 20/98 trouxe mais clareza ao conceito de receita bruta, representa avanço também na construção de uma tributação preocupada com o sistema em que se insere e prestigia a segurança jurídica.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Nesse sentido é o seguinte trecho da Exposição de Motivos: Após muitas discussões no Supremo Tribunal Federal, pacificou-se o entendimento sobre o conceito de faturamento e de sua equivalência ao conceito de receita bruta, nos termos do art. 12 do Decreto-lei nº 1.598, de 1977. De acordo com esse artigo, a receita bruta é o produto da venda de bens e serviços, ou, no caso, de não se caracterizar como coisa ou outra, o produto das demais atividades empresariais da pessoa jurídica.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> A questão será apreciada pelo STF em sede de repercussão geral no RE 609.096/RS, no qual será analisada a compatibilidade do termo faturamento com as receitas auferidas pelas instituições financeiras.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> RE 585235 QO-RG, Rel. Min. CEZAR PELUSO, julgado em 10/09/2008.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> RE 546525 AgR-ED, RE 605925 AgR, RE 240785, RE 346084, RE 1029407 AgR, RE 816363 AgR, AI 857624 AgR, RE 886230 AgR-ED, RE 827484 AgR, RE 902734 AgR, RE 853463 AgR, RE 683334 AgR, ARE 813397 AgR, ARE 1194477 AgR, ARE 643823 AgR, RE 608830 AgR, ARE 966978 AgR, RE 738757 AgR, AI 860225 AgR, RE 598085, RE 684092 AgR, RE 550846 AgR, RE 606107, RE 586482, RE 916328 AgR, RE 574706, RE 682822 AgR, RE 390840, RE 621652 AgR.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Em 1 das 29 decisões há confusão entre os conceitos de “receita bruta” e “receita total”, motivo pelo qual o respectivo acórdão não foi computado entre os que apontam para essa consolidação do entendimento do STF.

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JOTA

Uma análise da evolução legal e jurisprudencial do conceito de receita bruta

A constitucionalidade do fato gerador da CBS

Uma análise da evolução legal e jurisprudencial do conceito de receita bruta