Ana Luiza Calil

Na obra “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, em certo momento há uma discussão em torno da existência ou não do diabo e do frenesi social gerado a partir do temor das pessoas. Como solução, o personagem Riobaldo faz uma súplica aos sábios e políticos para que proclamem que o diabo não existe – porque só com valor de lei se daria tranquilidade boa às pessoas. 
O pedido literário parece ter sido ouvido pelos reguladores brasileiros ao longo das últimas décadas: não faltam evidências, extraídas de análises exploratórias, quanto à carga regulatória brasileira e o custo que a ineficiência regulatória representa para o erário. 
Em 2019, o antigo <a href="https://www3.weforum.org/docs/WEF_TheGlobalCompetitivenessReport2019.pdf">relatório</a> de competitividade do Fórum Econômico Mundial  indicava o Brasil na última posição (141º) no quesito “ônus da regulação estatal”, no eixo de análise “instituições”. Na recente <a href="https://www.gov.br/mdic/pt-br/assuntos/noticias/2023/maio/custo-brasil-atinge-o-patamar-de-r-1-7-trilhao-e-mdic-prepara-plano-para-reducao#:~:text=O%20Custo%20Brasil%20chega%20a,o%20ambiente%20de%20neg%C3%B3cios%20nacional.">análise</a> do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/mdic">Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio</a> (MDIC), divulgada em maio de 2023, a ausência de um ambiente jurídico-regulatório eficaz responde por uma carga negativa anual de R$ 170 a 210 bilhões, sendo um dos cinco itens de maior impacto no Custo Brasil. 
Os últimos anos foram repletos de iniciativas para tentar equacionar o problema da carga regulatória e seus efeitos. Investiu-se em tornar uma obrigação legal a análise de impacto regulatório (AIR), com previsão na Lei de Liberdade Econômica (<a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13874.htm">Lei nº 13.874/2019</a>) e na Lei das Agências Reguladoras Federais (<a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/l13848.htm">Lei nº 13.848/2019</a>). 
Em caráter regulamentar, o <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/d10411.htm">Decreto nº 10.411/2020</a> definiu os parâmetros mínimos para o desenvolvimento de uma AIR para as entidades federais. Proliferaram guias e manuais sobre boas práticas e sobre como produzir AIR e avaliação de resultado regulatório (ARR), com papel instrutivo-informativo essencial para disseminação do como fazer. 
Fora a racionalização da elaboração da regulação, houve uma preocupação com o estoque regulatório federal. O <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/decreto/d10139.htm">Decreto n° 10.139/2019</a>, que foi apelidado de revisaço regulatório, dispunha sobre a revisão e a consolidação de atos normativos inferiores aos decretos, incluindo-se portarias, resoluções, instruções normativas, dentre outros arrolados no §1º do art. 1º do revisaço. 
As iniciativas narradas fizeram ecoar, se havia alguma dúvida, a obrigação de não só produzir regulação de maneira racional e planejada, mas também de gerir o estoque regulatório da administração pública. Não é novidade, ao menos em nível federal, que a gestão regulatória é essencial ao bom funcionamento do Estado. Isso se reflete em iniciativas de mais de 15 anos atrás, como o Programa de Fortalecimento da Capacidade Institucional para Gestão em Regulação (PRO-REG), criado por meio do <a href="https://www.gov.br/casacivil/pt-br/assuntos/governanca/regulacao/sistema-regulatorio-brasileiro/historico-do-pro-reg">Decreto nº 6.062/2007</a>. 
Mas então, fica a pergunta: o que parece ser o gargalo da regulação no Brasil? A <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ocde">Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico</a> (OCDE), no <a href="https://read.oecd-ilibrary.org/governance/regulatory-reform-in-brazil_d81c15d7-en#page1">relatório</a> de diagnóstico da reforma regulatória de 2022, aponta algumas recomendações, que se resumem em três pontos. 
Primeiro, a pauta das boas práticas carece de uma liderança institucional clara em nível nacional. Segundo, haveria necessidade de uma política nacional de qualidade regulatória, que considere a totalidade do ciclo regulatório (desde a concepção da regulação até seu monitoramento). Quanto ao segundo ponto, o <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1802776&amp;filename=Tramitacao-PL%204888/2019">Projeto de Lei nº 4.888/2019</a> tramita na <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/camara-dos-deputados">Câmara dos Deputados</a>, com a finalidade de dispor sobre a Governança da Ordenação Pública Econômica. Por fim, é essencial priorizar objetivos dentro da política regulatória. 
Além do diagnosticado pela OCDE, o problema parece ter uma origem quase formal, que passa pelo próprio conceito de regulação, num sentido de que: (i) regulação seria sinônimo de ato normativo, ou norma em sentido estrito; e que (ii) regulação seria o que deriva da atuação de agências reguladoras, primariamente.  
Quanto ao ponto (i), no próprio <a href="https://www.gov.br/casacivil/pt-br/assuntos/downloads/diretrizes-gerais-e-guia-orientativo_final_27-09-2018.pdf/view">Guia de AIR</a> da Casa Civil, o ciclo regulatório dá a entender que da AIR decorrerá uma minuta de ato normativo – ou seja, parece que não haveria continuidade no ciclo sem que houvesse uma norma em sentido estrito. Dentre os relatórios de AIR divulgados pelas agências reguladoras federais, pesquisa preliminar indica que, em cerca de 90% dos processos, a alternativa normativa é privilegiada. As alternativas regulatórias não-normativas não seriam vistas como uma solução única para o problema regulatório. 
Já sobre o ponto (ii), o quem regula, parece haver uma diferença institucional relevante sob a lente da administração direta e indireta. Enquanto a elaboração de guias de boas práticas a nível federal incluiu as agências reguladoras federais no contexto de seu desenvolvimento, os ministérios de modo geral não são engajados nas iniciativas. Ainda que a antiga Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE), vinculada ao Ministério da Economia da gestão presidencial anterior, tenha assumido alguns papeis relevantes, é evidente a falta de interação dos ministérios como parte integrante do sistema de melhoria da regulação estatal.
Contribui e agrava esse cenário o fato de os decretos não estarem sujeitos à AIR ou mesmo às normas que tratam de boas práticas. O revisaço regulatório federal excluiu, expressamente, tal tipo regulatório do seu escopo. No mesmo sentido, o racional se aplica à elaboração de leis. Muitas vezes, o problema regulatório é derivado de uma falha originária de arquitetura legislativa, seja por assimetrias informacionais, seja por atecnias na redação das leis. Na prática, entretanto, não se costuma associar prontamente a necessidade de observância de boas práticas regulatórias para o processo legislativo. A lei é também um tipo de regulação. 
O conceito de regulação evoluiu muito nos últimos anos, devendo seu escopo ser visto, agora, sob outras lentes. É preciso compreender o conceito da regulação como algo dinâmico, que envolve a atuação estatal como um todo, incluindo, ainda, a participação ativa de atores privados. Isso inclui pensar na regulação não apenas sob as lentes das agências, mas de uma forma mais ampla. Sem a dimensão correta de que a regulação abrange a atuação da administração em todas as suas esferas, em todos os níveis, com diversos tipos, não há política nacional que sustente o desafio da melhoria regulatória.

ESPLANADA

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JOTA

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