Eduardo Molan Gaban

Ana Elisa Bertolin da Silva

Imaginemos a seguinte hipótese: um motorista trafegando em uma avenida prestes a cruzar um semáforo verde. De acordo com as regras de trânsito e pela confiança que deposita nos demais motoristas, o indivíduo avança no cruzamento, acreditando veementemente que nenhum outro veículo passará pelo sinal vermelho.
O exemplo acima traduz a ideia do princípio da confiança, segundo o qual o homem pode, em certas situações, outorgar sua confiança para outro. E, de fato, considerando que vivemos em sociedade, caso não pudéssemos confiar em outras pessoas, sequer seríamos capazes de sair de casa para desenvolver as mais simples atividades.
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>De forma esclarecedora, Jakobs conceitua o princípio da confiança como a autorização para confiar no comportamento correto das outras pessoas, não obstante a ciência de que elas podem cometer erros<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
No mundo do direito não é diferente. Uma das características do sistema penal é a repressão criminal, na qual o Estado, detentor do jus puniendi, possui, exclusivamente, o dever de aplicar a lei em nome dos interesses dos cidadãos legalmente tutelados – ao passo em que é vedado aos indivíduos realizar a justiça privada.
Consagra-se ao particular, desse modo, o direito do acesso à justiça, mandamento primordial que implica que todos, sem distinção, possam obter a efetiva realização de seus direitos.
Partindo dessa premissa, e considerando a forma de organização da justiça brasileira, a confiança assume papel essencial para guiar a relação entre o indivíduo e o Estado.
Deve este ser capaz de produzir estruturas que deem à sociedade a segurança em sua atuação, como as leis, decisões judiciais, dentre outros, mesmo sendo quem possui a supremacia sobre os acontecimentos. Por outro lado, quem confia – o cidadão – assume o risco ao depositar no sistema a confiança necessária à satisfação da sua tutela jurisdicional.
É direito do cidadão, portanto, prever que o Estado e os terceiros irão se comportar de acordo com as regras e princípios inerentes ao Estado Democrático de Direito, e que, em caso de descumprimento, os órgãos responsáveis tomarão as medidas cabíveis para fazer valer a lei. Isso somente é possível por meio de mecanismos que estabilizem as expectativas normativas.
Não se pensa aqui na previsibilidade e na segurança como valores absolutos, em que as partes saibam exatamente qual será o desenrolar de seu processo.
<blockquote class="jota-article__eye">Contudo, o cidadão deve ter ciência, na medida do possível, dos efeitos de seus atos em uma estrutura de estabilidade das relações jurídicas.</blockquote>
Nas palavras de Luhmann, “o comportamento do outro não pode ser tomado como fato determinado, ele tem que ser expectável em sua seletividade, como seleção entre outras possibilidades do outro. Essa seletividade, porém, é comandada pelas estruturas de expectativas do outro”<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
E dentro da relação de confiança, para este autor, a peça-chave que legitima a relação jurídica é o procedimento, entendido não somente como o conjunto de atos formalmente encadeados, mas cujo elemento central seja a comunicação, operada pelo desempenho dos papéis de todos os sujeitos envolvidos na tomada de decisão pelo sistema.
Para Luhmann, não é a verdade ou a justiça que demonstra a validade da decisão, vez que “os indivíduos, por quaisquer motivos, assumam sempre as decisões como premissas do seu próprio comportamento e estruturem as suas expectativas de acordo com isso”<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Pelo contrário: o ponto central é a contínua transformação da estrutura de expectativas e dos mecanismos sociais que forçam essa alteração, sendo decisivo o comportamento dos participantes no procedimento a fim de impelir o sistema a uma decisão final.
A partir da estrutura de expectativa social e da própria Constituição Federal, o juiz deve ser imparcial, o processo deve ser conduzido de modo isonômico, o Ministério Público deve agir na qualidade de custos legis – e tudo isso fomenta a confiança nas instituições, especialmente no âmbito do processo penal.
Todavia, o exame da situação brasileira aponta para significativas barreiras para atingir a justiça e, consequentemente, obstáculos na construção da cidadania. Enquanto a confiança deveria balizar as relações entre o indivíduo e os órgãos promotores da justiça, o parecer de maior parte da população brasileira sobre o modo como tais órgãos prestam o serviço público aponta para um quadro de lentidão, ineficiência e parcialidade<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Esses dados se revelam não somente por meio das pesquisas, mas também na análise das expectativas legislativas decorrentes dos anseios sociais. É consabido que as mudanças sociais são responsáveis pelas alterações legislativas, e passando um filtro pelas políticas criminais que vêm sendo adotadas em nosso ordenamento, a falta de confiança nas instituições se mostra evidente.
Exemplo disso é a edição da Lei de Abuso de Autoridade, que criminaliza práticas de agente público que abusa do poder que lhe foi atribuído. Trata-se de criação de um reforço legislativo para proteger o cidadão da atuação das autoridades – enquanto, em verdade, são elas quem deveriam zelar pelo cumprimento normativo.
Cite-se, ainda, as recentes alterações legislativas da Lei nº 13.964/19, que modificaram os dispositivos da colaboração premiada tratada na Lei nº 12.850/13.
Muito embora o colaborador, no mundo ideal, devesse sentir a confiança no órgão acusatório, a instabilidade dos direitos e a grande diferença do poder de barganha entre as partes, no mundo real, foi a responsável pela inclusão do artigo 3º-B na lei, dispondo que configura violação de sigilo e quebra da confiança e da boa-fé a divulgação das tratativas iniciais.
Não bastasse, a lei incluiu, ainda, a cadeia de custódia da prova, de forma a preservar a integralidade da prova e viabilizar o exercício da ampla defesa.
Todos esses fatores demonstram que existe, sim, um problema criado pelas próprias instituições, que conduzem à desconfiança social. Muito embora seja um dever das instituições pautar suas ações na moralidade, não somente na lei, mas também na boa-fé, lealdade e probidade, o que se verifica é que a desconfiança gerada pelo Estado abala o próprio Estado Democrático de Direito, em seus fundamentos.
Nessa ordem de ideias, é necessário que o Estado restabeleça a confiança dos indivíduos em sua atuação; negar-lhes isso, além de representar a falência das estruturas institucionais, implica ataque aberto aos próprios princípios constitucionais.
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O episódio 52 do podcast Sem Precedentes discute os bastidores e as desconfianças envolvendo o caso Lula no Supremo Tribunal Federal. Ouça:
https://youtu.be/1T8EYyNCQeM
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> JAKOBS, Günther. Tratado de Direito Penal: teoria do injusto penal e culpabilidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 302.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> LUHMANN, Niklas. Confianza. México: Anthropos, 2005.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Trad. Maria da Conceição Corte Real. Brasília: UNB, 1980.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Fundação Getúlio Vargas. Relatório ICJ Brasil: 1º semestre/2017. 24. ed. São Paulo: FGV Direito São Paulo, 2017. p. 17.

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É necessário que o Estado restabeleça a confiança dos indivíduos em sua atuação

A confiança na relação processual penal

É necessário que o Estado restabeleça a confiança dos indivíduos em sua atuação