Jessica Holl

Felipe Guimarães Assis Tirado

Introdução
Durante o governo Bolsonaro, a Comissão de Anistia e sua missão fundamental foram amplamente desmontados, por meio do aparelhamento do órgão e da perversão de seus valores fundamentais. A Comissão chegou a estabelecer novos critérios para a concessão de anistias, ignorando as normas de Direito Internacional e Constitucional que vinculam sua atuação, e a rever anistias previamente concedidas.
Como lembra Carolina Rezende, em <a href="https://www.historiadaditadura.com.br/post/o-que-sera-da-comissao-de-anistia-no-novo-governo-lula">artigo</a> publicado no site História da Ditadura, o desmonte começou anteriormente, no governo de Michel Temer, e após a saída de Paulo Abrão da presidência da Comissão. 
Entretanto, ao contrário do texto de Rezende, que empreende uma excelente e bem mais ampla análise da Comissão, inclusive sua história, nosso artigo foca em aspectos propositivos, relacionados especificamente com os <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/justica-de-transicao-como-tratar-os-atos-autoritarios-do-governo-bolsonaro-04112022">princípios</a> da justiça de transição.
A seleção da atual composição pelo governo Lula é um ótimo ponto de partida, como <a href="https://twitter.com/PauloAbrao/status/1615416208714760192">lembra</a> o ex-presidente da Comissão, Paulo Abrão. Dentre os <a href="https://www.migalhas.com.br/quentes/380181/governo-recompoe-comissao-de-anistia-e-inclui-perseguidos-na-ditadura">membros</a>, ex-integrantes da Comissão, perseguidos políticos, expoentes dos direitos humanos e especialistas no campo da justiça de transição. Resta, ainda, <a href="https://www.migalhas.com.br/quentes/380181/governo-recompoe-comissao-de-anistia-e-inclui-perseguidos-na-ditadura">designar</a> os representantes do Ministério da Defesa e dos anistiados.
No entanto, para além de restabelecer uma Comissão comprometida com a proteção dos direitos humanos e os princípios da justiça de transição, também é necessário dotá-la das condições necessárias para o seu pleno e efetivo funcionamento.
Uma atuação compatível com os princípios da justiça de transição e os direitos humanos
Em nosso <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/justica-de-transicao-como-tratar-os-atos-autoritarios-do-governo-bolsonaro-04112022">artigo</a> anterior no JOTA, defendemos que a  justiça de transição oferece um conjunto de princípios para lidar com os legados autoritários e iliberais. Essa caixa de ferramentas oferece formas eficientes de tratar resquicios autoritários do governo Bolsonaro, para além de oferecer respostas às heranças deixadas pela ditadura civil-militar que, mesmo nos quase 35 anos da Constituição de 1988, ainda não foram completamente trabalhadas.
Nesse sentido, a retomada dos trabalhos da Comissão de Anistia é fundamental e deve ser balizada pelos quatro pilares da  justiça de transição: memória e verdade, justiça (ou responsabilização), reparação e reformas institucionais.
Após a mencionada nomeação de membros que compreendem a função da Comissão, um segundo passo essencial para que esta volte a ocupar o papel central na justiça de transição brasileira - que ocupava durante a presidência de Paulo Abrão - consiste na retomada dos votos e decisões embasados na proteção internacional dos direitos humanos e nos fundamentos constitucionais. 
Esse pode parecer um passo elementar, mas mesmo isso já representa um giro de 180 graus em relação à atuação da Comissão nos governos Temer e Bolsonaro, quando chegou a se <a href="https://www.camara.leg.br/noticias/888871-ex-conselheiro-denuncia-crimes-e-irregularidades-da-atual-comissao-de-anistia/">basear</a> na doutrina do torturador Brilhante Ustra para julgar os pedidos de anistia. Fato ilustrativo da total corrupção dos valores da Comissão, denunciado pelo ex-conselheiro da Comissão de Anistia, Victor Neiva, em depoimento à Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, em 2022.
Também é necessário estabelecer um procedimento administrativo para a revisão dos pedidos de anistia julgados entre 2016 e 2022. Essa revisão tem como fundamento a necessidade de que os atos da Comissão estejam em conformidade com a normativa internacional em matéria de direitos humanos à qual o Brasil está vinculado. 
Ademais, estabelecer um procedimento geral, estaria em consonância com as normas da administração pública, sendo um avanço em termos de eficiência administrativa - o que poderia evitar uma tendencia de judicialização contra decisões da Comissão.
Outro ponto necessário seria a retomada do acervo da Comissão, do qual o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos queria se <a href="https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/mp-pede-que-tcu-investigue-desmonte-do-acervo-da-comissao-de-anistia">desfazer</a> em 2022. Tal retomada, e futuro avanço do acervo, seria compatível, inclusive, com a conclusão das obras do Memorial da Anistia do Brasil, em Belo Horizonte, <a href="https://veja.abril.com.br/politica/memorial-da-anistia-que-ja-custou-r-28-mi-sera-cancelado-diz-damares/">cancelada</a> por Damares Alves, em 2019.
Demais projetos, como <a href="http://memorialanistia.org.br/acervo-disponivel/">Caravanas da Anistia</a>, <a href="http://memorialanistia.org.br/revista-anistia/">Revista</a> Anistia Política e Justiça de Transição, e <a href="https://www.uol.com.br/ecoa/reportagens-especiais/clinicas-do-testemunho-mostraram-como-ter-justica-pela-construcao-da-memoria/">Clínicas do Testemunho</a>, bem sucedidos nas gestões anteriores, também precisam ser retomados e ampliados - abarcando temas mais recentes, também no âmbito da justiça de transição, como proposto anteriormente. 
A atual conjuntura política demonstra a necessidade de aproximar a população em geral do conceito de justiça de transição e a importância da valorização da memória do país e da busca da verdade sobre momentos de sua história que representaram graves violações de direitos humanos. 
Defendemos que essas medidas são fundamentais, inclusive, para auxiliar no combate à desinformação e promover os pilares do Estado Democrático de Direito.
Por fim, a retomada dos trabalhos da Comissão de Anistia pode representar um catalisador para que as <a href="http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_1_pagina_959_a_976.pdf">recomendações</a> da Comissão Nacional da Verdade (CNV) - relegadas pelas últimas administrações - sejam implementadas. Um empreendimento que deve envolver o governo federal como um todo, não se restringindo ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.
As medidas propostas aqui também contribuirão para que o Brasil cumpra seu dever em relação às suas responsabilidades internacionais. Por exemplo, que o país, ainda que parcialmente, efetive as decisões da Corte Americana de Direitos Humanos nos casos <a href="https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf">Gomes Lund e outros vs. Brasil</a> (2010) e, mais recentemente, <a href="https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_353_esp.pdf">Vladmir Herzog e outros vs. Brasil</a> (2018) em que a Corte também estabeleceu a obrigação do Estado brasileiro desenvolver políticas de memória e verdade.
Conclusão
A retomada e expansão das iniciativas relacionadas à Comissão de Anistia, em consonância com os direitos humanos e principíos da justiça de transição, são necessárias na transição pela qual o país passa atualmente. Para além de reparar uma dívida histórica, essas medidas garantem a efetivação e promoção de Direitos estabelecidos pelo projeto constitucional de 1988.
Medidas relacionadas à Comissão, incluindo aqui os projetos desenvolvidos pelas administrações anteriores - de publicação, divulgação e até memoriais, como aquele iniciado em Belo Horizonte - são fundamentais também para <a href="https://theconversation.com/five-big-challenges-for-lulas-presidency-of-brazil-197967">combater</a> o desenvolvimento de fake news e para garantir que a população tome conhecimento das <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/justica-de-transicao-como-tratar-os-atos-autoritarios-do-governo-bolsonaro-04112022">violações do passado</a>, para que estas não se repitam no futuro.
Para além das funções iniciais da Comissão de Anistia, <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10559.htm">estabelecidas</a> em 2002, ampliar as discussões relacionadas ao recente período de <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/bolsonarismo-e-violencia-politica-uma-questao-de-responsabilizacao-11012023">erosão democrática</a> experienciado pelo país se faz ainda mais necessário em vista aos <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/as-licoes-da-impunidade-em-relacao-aos-crimes-do-regime-autoritario-13012023">atos de terror</a> testemunhados recentemente em Brasília.
Através da Comissão de Anistia, após quatro anos de um governo baseado na irresponsabilização e no esquecimento, o governo Lula tem agora uma oportunidade ímpar de dar nova luz à reparação, memória e verdade no Brasil.

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JOTA

Como reparar os danos do governo Bolsonaro e retomar uma atuação compatível com os direitos humanos?

A Comissão de Anistia no governo Lula

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