Hans Kelsen[1] pontuou no início do século passado que “somente a ilusão ou a hipocrisia podem fazer alguém acreditar que a democracia é possível sem partidos políticos”. A impactante frase do conhecido jurista austríaco revela que a democracia, por sua própria essência, requer a existência de canais institucionais que organizem e articulem a representação da diversidade de interesses presentes na sociedade. Os partidos políticos cumprem essa função ao estruturar o debate público e conectar os cidadãos às instituições estatais.
A crença de que a democracia pode prosperar sem partidos políticos é, portanto, uma ilusão, pois ignora o papel fundamental dessas organizações na intermediação entre a vontade popular e a tomada de decisões políticas. Sem partidos, a política tenderia ao caos, à fragmentação de interesses individuais e à prevalência de lideranças personalistas, comprometendo a estabilidade democrática e a pluralidade de ideias.[2]
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Este artigo examina os mecanismos institucionais que podem democratizar os processos decisórios internos dos partidos políticos, superando a atual lógica de centralização de poder nas cúpulas. A proposta é fomentar modelos mais participativos, que fortaleçam a representatividade e a accountability, sem comprometer a funcionalidade política e eleitoral das legendas.
Autonomia versus democracia interna: o dilema
No Brasil, a confiança dos eleitores brasileiros nos partidos políticos atingiu, em 2023, o maior patamar em 15 anos, consoante o Índice de Confiança Social (ICS), série anual de pesquisas presenciais feitas desde 2009 pelo Ibope. As entidades ligadas à política, porém, em comparação a outras 20 instituições, estão na última posição.[3] Noutra pesquisa mais recente realizada pelo Datafolha, divulgada no dia 27 de março de 2024, constata-se que 93% dos brasileiros confiam pouco ou não confiam nos partidos políticos.[4]
A Constituição de 1988 assegura, no artigo 17, a autonomia dos partidos políticos, mas não impõe parâmetros objetivos para garantir uma estrutura interna democrática. Essa lacuna normativa é ampliada pela Lei 9.096/1995, que igualmente omite critérios de participação, rotatividade de dirigentes e fiscalização interna. O resultado é um sistema permissivo à perpetuação de lideranças, à manipulação de candidaturas e ao uso estratégico e verticalizado dos recursos financeiros públicos.
Apesar das exigências legais mínimas quanto à destinação de recursos por gênero e raça, a distribuição interna ainda é altamente discricionária. As convenções partidárias, teoricamente espaços deliberativos, acabam frequentemente reduzidas a formalizações de decisões já tomadas pelas cúpulas. A ausência de mecanismos robustos de controle, auditoria e prestação de contas em tempo real perpetua a concentração decisória e afasta os filiados do processo político.
Quando o tema é democratizar os partidos políticos, as formas mais comuns de iniciativas geralmente incluem eleições diretas para lideranças, prévias eleitorais, convenções com delegados eleitos ou indicados e consultas diretas à militância por meio de enquetes, plebiscitos e plataformas digitais.[5] Esses mecanismos tendem a fortalecer a legitimidade das decisões, renovam lideranças, reduzem o personalismo e aproximam o partido das demandas sociais, especialmente em contextos de crise de representatividade.[6]
Embora desejável para fomentar a cultura democrática e a integridade institucional, a democracia intrapartidária pode também gerar desafios como fragmentação interna, judicialização de disputas, influência excessiva de grupos organizados e instabilidade estratégica.[7] Também há o risco de que práticas democráticas se tornem meramente simbólicas — como prévias pouco transparentes ou com participação limitada — servindo apenas para legitimar decisões já tomadas pelas cúpulas.[8]
Para ilustrar a importância do tema, nas eleições de 2024, no que diz respeito ao financiamento público, vinte e nove partidos receberam aproximadamente R$ 4,9 bilhões para gastos com a corrida eleitoral. Para receber os recursos, cada partido precisou definir critérios de distribuição às candidatas e aos candidatos, de acordo com a lei.[9] Todavia, a centralização dos processos decisórios ainda permite que as cúpulas partidárias administrem de forma discricionária o Fundo Partidário e o Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC).
Com efeito, os estatutos partidários, embora essenciais para a organização interna dos partidos, são insuficientes para garantir uma administração democrática dos recursos públicos recebidos. O que se verifica hoje é que muitas vezes, os estatutos partidários não estabelecem critérios rigorosos para a aplicação dos recursos, limitando-se a diretrizes gerais que não detalham mecanismos de controle, auditoria e sanções em caso de descumprimento.
Conclusão
A democracia representativa não pode prescindir dos partidos políticos — mas tampouco pode sobreviver se eles forem meras agências oligárquicas, fechadas em si mesmas e desconectadas de suas bases sociais. A centralização decisória, somada ao controle patrimonialista dos recursos e à opacidade dos processos internos, mina a credibilidade das instituições partidárias e corrói os fundamentos da democracia constitucional, alimentando o descrédito público.
Embora a Constituição brasileira imponha o princípio da democracia interna, o controle da distribuição de recursos nos partidos ainda é capturado por núcleos oligárquicos, sobretudo em contextos de ausência de transparência, concentração de poder e frágil participação da base partidária. Noutras palavras, não basta haver repasses públicos — é preciso vincular sua distribuição a critérios democráticos, representativos e auditáveis, com mecanismos de controle acessíveis à sociedade.
Fortalecer a democracia intrapartidária exige, porém, reformas normativas, fiscalização institucional e engajamento cívico. Trata-se, em última análise, de democratizar os sujeitos que fazem a democracia — para que os partidos deixem de ser obstáculos à participação e se tornem, efetivamente, instrumentos de representação plural, inclusiva, transparente e comprometida com o interesse público.
[1] KELSEN, H. (1993). A democracia. São Paulo: Martins Fontes, p. 40.
[2] SARTORI, G. (1991). Democracia. Revista de Ciência Política, 13(1-2), p. 130.
[3] Disponível em: https://oglobo.globo.com/blogs/pulso/post/2023/07/pesquisa-ipec-confianca-em-partidos-politicos-e-no-congresso-atinge-maior-patamar-desde-2009.ghtml; Acesso em 19 de janeiro de 2025.
[4] Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/03/27/datafolha-cresce-desconfianca-dos-brasileiros-no-congresso-nacional.ghtml; Acesso em 19 de janeiro de 2025.
[5] TEORELL, J. (1999). A deliberative defence of intra-party democracy. Party politics, 5(3), pp. 365-366.
[6] GUTMANN, Amy and Dennis Thompson (1996) Democracy and Disagreement: Why Moral Conflict cannot be Avoided in Politics, and What should be Done about it. Cambridge, MA: The Belknap Press of Harvard University Press, pp. 142-144.
[7] WRIGHT, William E. (1971) ‘Comparative Party Models: Rational-Efficient and Party Democracy’, in Wright (ed), pp. 17–54.
[8] HABERMAS, Jürgen (1996) Between Facts and Norms: Contributions to a Discourse Theory of Law and Democracy. Cambridge: Polity, pp. 336-362.
[9] Disponível em: https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2024/Junho/saiba-quanto-cada-partido-vai-receber-do-total-do-fundo-especial-de-campanha; Acesso em 19 de janeiro de 2025.