Pandemia

A ‘cama de tatame pela vida afora’

Os rumos da união estável a partir do convívio durante o isolamento social

Crédito: Filipe Araujo/Fotos Públicas

Em 1982 Gilberto Gil lançou Drão, bela música inspirada no fim de seu relacionamento com Sandra Gadelha. Curioso notar como uma canção sobre o fim da conjugalidade diz tanto sobre o seu início.

Em um dos seus versos se ouvem as seguintes palavras: “quem poderá fazer aquele amor morrer, nossa caminha dura… Dura caminhada pela estrada escura”. O compositor reforça a ideia ali presente em outro trecho: “quem poderá fazer aquele amor morrer, nossa caminha dura… Cama de tatame, pela vida afora”.

Habitar a mesma cama, a mesma casa, nem sempre significará viver em união estável. Viver a “dura caminhada”, traçar um projeto “pela vida afora”, isso sim, traduz o objetivo de constituir família e é requisito para formação de tal relação familiar conforme o art. 1723, Código Civil.

Aliás, o julgador deverá se debruçar sobre este requisito, e mais dois outros dos quais o Código lança mão, a fim de reconhecer, ou não, a existência de união estável.

São estas as linhas que o judiciário terá de seguir com o intuito de superar dificuldades em matéria de constituição do vínculo familiar de união estável. Embora tais problemáticas não sejam novas, elas se escancaram e tendem a se intensificar neste momento de pandemia.

Com a necessidade de isolamento, alguns casais tomaram a decisão de morar na mesma residência e tal coabitação desperta o questionamento sobre sua suficiência para transformar a relação em uma união estável.

A coabitação sempre foi um elemento importante para o Direito de Família, mas em especial de modo a assegurar a legitimidade da filiação matrimonial, a teor do art. 231, I e II, do CC/1916 e súmula 282 do STF (com precedentes nos RE 2.004 e RE 49.212).

Em relação à união estável, na revogada Lei nº 8.971/1994 o dever de coabitação aparecia como pressuposto da caracterização da união estável (“que com ele viva há mais de cinco anos”). Contudo, é importante questionar se ele ainda cumpre a função para a qual estava previsto.

Há que lembrar que a Constituição de 1988 eliminou discriminações quanto a origem da filiação (art. 227, § 6º). Além disso, o aprimoramento das tecnologias de identidade genética permitiu que hoje se conheça com maior precisão a filiação de origem biológica, o que coloca em xeque o modelo de presunção que orienta a filiação até o tempo presente[1]. Portanto, a coabitação não se presta como elemento essencial para a constituição da filiação biológica.

Tampouco a coabitação enquanto dever da conjugalidade produz os efeitos do passado. Em primeiro lugar, porque ocorreu um movimento de esvaziamento da interferência estatal das relações estritamente privadas, iniciado na coordenação entre os §7 e §8° do art.226, CR, que culminou com a aprovação da EC nº 66/2010 e a supressão da culpa (também, consequentemente, da violação aos deveres conjugais) que passou a ser prescindível na dissolução da sociedade ou do vínculo conjugal.

A pergunta que se coloca parece ser a importância da coabitação para a formação de união estável. O art. 1.723 do CC/2002 cujo conteúdo trouxe grandes mudanças para o direito de família não exige a coabitação para qualificar uma união como união estável, ascendendo em importância o objetivo de constituir família, que também pode ser traduzido como o laço de afetividade que vincula os companheiros[2].

No entanto, de fato, capturar estas manifestações afetivas e decidir quando elas se mostram contínuas, duradouras (enfim, estáveis) –  e assim demonstrar o objetivo de constituir família – não é tarefa das mais fáceis.

Deste modo, a coabitação, aliada a um conjunto de outros atos (abertura de conta bancária conjunta, a divisão de contas relativas ao mesmo imóvel), foi eleita como um dos fatos objetivos que indica a presença dos requisitos para configuração de união estável. Indica, repare-se, não assegura.

Portanto, é necessário voltar um passo atrás. A coabitação é apenas um fato livre de qualificações jurídicas anteriores, tendo em vista um ordenamento que valoriza a família como forma de alcançar os projetos existenciais de livre desenvolvimento da personalidade de cada um dos seus membros.

Diante deste cenário, na realidade social dos tempos não excepcionais, muitas das vezes, a decisão tomada por certos casais de morar juntos, modificando a história e o cotidiano de sua relação, é valorada como indício da vontade de constituir família que aponta para existência de união estável.

Porém, a análise de tal conduta só é correta frente ao caso concreto e de acordo com todo contexto fático-probatório envolvido. Como o próprio Superior Tribunal de Justiça já decidiu, a coabitação não gera, automaticamente, o preenchimento dos requisitos do art. 1723, CC, nem tampouco sempre traduz a estabilidade esperada para se configurar a formação de vínculo familiar[3].

Esta advertência deve ser visualizada com o dobro de atenção em tempos de pandemia. A coabitação entre namorados, nesta situação, é meio de realizar a companhia recíproca que melhor se adequa aos anseios individuais do casal, em difícil momento de isolamento e pouco contato social.

Não reflete, via de regra, a vontade duradoura de se unir como família a partir daquele momento. Surgirão, de fato, situações desafiadoras, em que será desenhada a linha tênue entre um projeto familiar iniciado durante a quarentena e a provisória vivência em conjunto.

Inclusive, este desafio só tende a aumentar a partir do momento em que as medidas restritivas forem mitigadas de maneira gradativa, pessoas voltarem aos seus empregos, sua rotina nas ruas e continuarem a viver em conjunto. Afinal, quando o casal persiste nesta situação, aí sim, estaria caracterizada a união estável?

Mais uma vez, nem sempre. Tome-se, por exemplo, o caso das pessoas cuja renda diminuiu substancialmente no período de crise sanitária e econômica que optarão por residir a dois para diminuir o aluguel e outros custos fixos.

Portanto, a coabitação não caracteriza suficientemente união estável, mas a procura das razões pela qual ela passou a existir é um meio possível de, embora não isoladamente, demonstrar a presença dos requisitos configuradores de união estável constantes do art.1723, CC/2002 ou afastá-los de modo definitivo. Os fatos devem qualificar-se de acordo com o direito, e não o contrário.

Ressalte-se a grande importância prática de bem definir estas questões. A partir delas é que se entende não só a existência de união estável, mas também a data de seu início.

Este último requisito é fundamental ao definir quais bens serão partilhados entre os companheiros, tanto para fins de extinção da conjugalidade ainda em vida, quanto em morte, e eventual participação na herança do companheiro, questão, infelizmente, muito próxima do atual momento de pandemia.

Nestes termos, esclarecer a dissociação entre coabitação e começo da união estável será única maneira de entender quando há, e também quando não há, identidade entre os dois fatores.

Com efeito, a dificuldade de lidar com critérios tão abertos e encontrar o “objetivo de constituir família” a fim de determinar se subsiste união estável ou não, um problema já antigo, tende a se acentuar e mostrar-se com maior frequência na discussão sobre relações constituídas no período da pandemia.

Talvez seja então o tempo de começar a levar a sério outro vetor importante desta equação: a autonomia privada dos casais, indagando se não existe ali um verdadeiro projeto de não constituir família, que traz vários direitos e deveres aliados a ele.[4]

Porém, tal estado de coisas exige mudanças mais profundas, vinculadas a verdadeiros giros na jurisprudência, além de profundas mudanças legislativas. Até lá, a prudência e análise concreta dos requisitos presentes no art.1723, CC, sem descurar das especificidades do momento atual, será o melhor caminho para lidar com o reconhecimento de união estável.

 


[1] LEAL, Livia Teixeira. Filiação biológica e socioafetiva na corda bamba do Registro Civil – Comentários ao REsp 1.417.598/CE. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 6, n. 1, 2017.

[2] Sobre o vínculo de afetividade como requisito essencial para configuração de união estável, destacam-se os julgados: STJ, REsp 1.715.485-RN, 3ª turma, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em  06/03/2018 e também STJ, REsp 1.348.458-MG, 3ª  turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 25/06/2014. Já na doutrina: CALDERÓN, Ricardo Lucas. Princípio da afetividade no direito de família. Rio de Janeiro: Renovar, 2013; BARBOZA, Heloisa Helena. Perfil jurídico do cuidado e da afetividade nas relações familiares. PEREIRA, Tânia da Silva et alii (org.). Cuidado e afetividade. São Paulo, Atlas, 2017, p. 177-178.

[3] STJ, REsp 1761887 / MS, 4ª turma, Rel. Min. Luís Felipe Salomão, julgado em 06/08/2019.

[4] MULTEDO, Renata Vilela; BODIN DE MORAES, Maria Celina. A privatização do casamento. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 5, n. 2, 2016.