Shana Schlottfeldt

O pano de fundo da discussão aqui empreendida é a <a href="https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur396594/false">Ação Penal 937</a>, proposta pelo MPE-RJ em face do então prefeito de Cabo Frio pela prática de corrupção eleitoral nos termos do artigo 299 da <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4737.htm">Lei 4.737/1965</a> (Código Eleitoral). 
O encadeamento dos principais fatos da AP 937 são os seguintes: em janeiro de 2013, a denúncia foi recebida pelo TRE-RJ que, com o fim do mandato do réu, declinou de sua competência em favor do juízo de 1ª instância. Em 2015, o réu tomou posse, como suplente, no cargo de deputado federal, o que levou o processo ao STF. Em 2016, com o retorno do titular, o réu afastou-se do cargo de deputado, mas menos de uma semana depois reassumiu o mandato, ainda como suplente. Alguns meses depois, o réu foi efetivado como deputado federal, em virtude da perda de mandato pelo titular. Por fim, já em 2017, o réu renunciou ao mandato de deputado federal para assumir o mandato de prefeito de Cabo Frio. 
Em fevereiro de 2017, o relator da AP 937, ministro Luís Roberto Barroso, afetou a AP a julgamento pelo plenário, suscitando Questão de Ordem, a fim de que o STF se manifestasse sobre duas questões: 1) a possibilidade de conferir-se interpretação restritiva às normas da Constituição Federal que estabelecem as hipóteses de foro por prerrogativa de função; e 2) o estabelecimento de um marco temporal a partir do qual a competência para processar e julgar ações penais não seria mais afetada em razão de posterior investidura ou desinvestidura do cargo por parte do acusado (i.e., um marco temporal para a perpetuatio jurisdicionis). 
O pleno do STF, por maioria e nos termos do voto do relator, resolveu a QO com a fixação das seguintes teses: “1) O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas; e 2) Após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo”. A nova linha interpretativa seria aplicada de imediato aos processos em curso, ressalvados os atos praticados e decisões proferidas pelo STF e pelos demais juízos com base na jurisprudência anterior. 
No caso concreto, o julgamento foi suspenso, determinando-se a baixa da AP 937 ao juízo da 1ª instância para julgamento. 
Em seu voto, o ministro Barroso defendeu que o sistema do foro por prerrogativa era altamente disfuncional, impedindo não só a efetividade da justiça criminal, mas gerando cenários de impunidade que destoavam de princípios constitucionais, contrariando, assim, valores republicanos basilares. Além disso, não se harmonizaria com acordos internacionais firmados pelo Brasil relativos ao princípio do duplo grau de jurisdição em matéria penal. 
Alegou que o foro por prerrogativa de função, com a extensão aplicada, não encontra correspondência no direito comparado. Afirmou que, mesmo no Brasil, o instituto admitia inicialmente rol reduzido de autoridades, mas a prerrogativa teria sido progressivamente ampliada até chegar ao modelo atual. Ao “extenso rol de autoridades” ter-se-ia acrescido interpretação extensiva dos crimes abrangidos pela prerrogativa. Toda essa conjuntura, estaria afastando o STF do seu verdadeiro papel de Corte Constitucional concebida para discutir teses jurídicas. Sustentou, também, que teria havido mudança na realidade fática, já que o Constituinte não teria imaginado que haveria tantos processos de natureza criminal tramitando perante o STF. 
Ademais, um dos maiores gargalos do sistema do foro por prerrogativa seriam as frequentes mudanças de competência, o chamado “sobe e desce”, “zig-zag”, “montanha-russa” ou “elevador” processual (todas expressões utilizadas ao longo do julgamento). 
Como solução, propôs mutação constitucional, com interpretação restritiva da regra do foro por prerrogativa de função, nos termos das teses acima citadas. Ainda que a decisão tenha sido tomada por maioria, prevalecendo as teses do relator, houve divergências entre os votos dos ministros. 
Apesar de, após o julgamento da AP 937-QO, <a href="https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=489564&amp;ori=1">a quantidade de inquéritos e ações penais ter tido redução da ordem de 80%</a>, considera-se que a importância da temática vai além de números. Tendo isso em mente, à continuação, serão apresentados pontos, segundo os quais entende-se que a posição adotada não foi de todo acertada. 
Já de partida, quanto às imunidades material (inviolabilidade) e formal (processual) dos parlamentares, deve-se repetir o mantra: “imunidade não é impunidade”. O foro por prerrogativa (ainda que também referido como foro privilegiado ou foro especial) não é um privilégio, mas uma proteção ao livre exercício das funções públicas, uma garantia constitucional do agente público, no interesse da sociedade. No caso do Parlamento, trata-se da previsão, na CF, do juiz natural para as infrações penais comuns, um direito instrumental de garantia de liberdade ao Poder Legislativo (inclusive, assegurando a salutar separação dos Poderes). Assim, não seria descabível interpretar o foro por prerrogativa como um direito fundamental parlamentar e as ações tendentes a abolir tal direito como violadoras de cláusula pétrea (cf. artigo 60, §4º, III e IV, da CF). 
Neste sentido, <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/adeus-imunidade-parlamentar-03032021">Nascimento já criticou</a> a “linha hermenêutica que vem sendo usada pelo STF para [...] ‘reescrever’ o estatuto constitucional dos congressistas”, apontando a “deterioração das prerrogativas parlamentares no país” e traçando um panorama do que chamou “caminho ladeira abaixo”, iniciando com a <a href="https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur83851/false">AP 292</a> (julgada em 1989), passando – para citar alguns – pela <a href="https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur191372/false">AP 396</a> (caso Natan Donadon), pelo <a href="https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur99972/false">Inq 1.710</a> (caso José Roberto Batochio), pela <a href="https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur432616/false">Pet 7.174</a> (caso Wladimir Costa), aos quais se soma a AP 937-QO, aqui discutida, que, em matéria de foro por prerrogativa de função, <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/sera-tao-absurdo-assim-09072020">representou um verdadeiro overruling dos julgados que a antecederam</a>. 
Para começar, a via escolhida para a fixação das teses foi no mínimo heterodoxa, já que as QO têm por escopo solucionar incidentes eminentemente procedimentais, não se prestando a resolver aspectos de direito material objeto da controvérsia, ainda mais no caso de matérias doutrinárias complexas. 
A CF autoriza a responsabilização penal durante o exercício do mandato, estabelecendo o STF como juiz natural para o processo e julgamento. Apenas por Emenda Constitucional seria possível mudança na competência jurisdicional penal em relação aos parlamentares. Neste aspecto, <a href="https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/111574">o Senado aprovou a PEC 10/2013</a>, que restringe o foro por prerrogativa de função aos chefes dos Poderes e ao vice-presidente da República. <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2140446">A PEC espera inclusão em pauta no plenário da Câmara dos Deputados</a> (há cerca de cinco anos!). A esse respeito, ressalta-se que não produzir normas, antes de caracterizar omissão, trata-se de um posicionamento legítimo e mesmo legiferante. 
Tomando-se as teses fixadas pela AP 937-QO fica claro que: 1) terminada a instrução processual, tem-se a prorrogação da competência independentemente de o agente público deixar o cargo ou vir a ocupar outro; 2) um político que não seja reeleito perde o foro por prerrogativa e a ação ajuizada passa a tramitar na 1ª instância; 3) caso o parlamentar mantenha o mandato, a ação segue tramitando junto ao tribunal atinente. Estes são os easy cases. 
Contudo, as teses firmadas têm alguns “pontos cegos” que vão se tornando evidentes diante dos casos concretos, e.g., parlamentar eleito para mandato em Casa Legislativa distinta, sem solução de continuidade, contra quem se tem ajuizada ação quando não ocupa mais o cargo que possuía à época dos fatos que lhe são atribuídos. É o caso de “mandatos cruzados”, em âmbito federal (e.g., <a href="https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur450076/false">Pet 9.189</a>, caso Márcio Bittar), ou com mudança de esfera estadual para federal (e.g., <a href="https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur461549/false">Rcl 41.910</a>, caso Flávio Bolsonaro). Nos dizeres do ministro Gilmar Mendes, relator na Rcl 41.910: “[s]ão justamente pontos cegos desse tipo que corroboram a tese de que a decisão na AP 937-QO trouxe mais desacertos do que acertos”. 
Ao restringir a aplicação do artigo 102, I, “b”, da CF, o STF reconheceu, implicitamente, quando não aplicável o foro por prerrogativa de função, a competência de milhares de juízes de 1ª instância para a decretação de medidas cautelares contra congressistas. Entende-se que isso deveria ser revisto, pois, mesmo que a execução de cautelar se deva a fatos passados, sem relação com a legislatura em curso, <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/sobre-as-medidas-de-busca-e-apreensao-no-congresso-nacional-05082020">sua decretação tem potencial para atingir o mandato atual</a>, atraindo a competência do STF. 
A AP 937-QO criou uma outra situação sui generis: em casos nos quais não se reconhece a inviolabilidade das palavras dos parlamentares, admite-se, ainda que implicitamente, que as falas não ocorreram na posição de parlamentar, logo, <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/defensor-legis/adeus-imunidade-parlamentar-03032021">o julgamento de um suposto crime seria competência do juízo de 1º grau e não do STF</a>. Esse ponto realça o paradoxo de decisões tomadas no âmbito da <a href="https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur432616/false">Pet. 7.174</a> (caso Wladimir Costa) e do <a href="https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur446255/false">Inq 4.781</a> (caso Daniel Silveira), já que em ambos, apesar de julgados pelo STF, reconheceu-se que as declarações foram proferidas em contextos considerados desvinculados das funções parlamentares. 
A decisão tomada na AP 937-QO, tratou apenas da competência do STF, entretanto, é evidente que repercutiu em prerrogativas semelhantes concedidas a outros agentes públicos na medida em que o STJ, os Tribunais de Justiça e os Tribunais Regionais Federais têm estendido as premissas adotadas pelo STF para limitar a incidência do foro por prerrogativa (e.g., <a href="https://www.stj.jus.br/websecstj/cgi/revista/REJ.cgi/ITA?seq=1719868&amp;tipo=0&amp;nreg=201302580525&amp;SeqCgrmaSessao=&amp;CodOrgaoJgdr=&amp;dt=20180803&amp;formato=PDF&amp;salvar=false">AP 866</a>, <a href="https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201602573774&amp;dt_publicacao=23/11/2018">AP 839-QO</a>, <a href="https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201702003371&amp;dt_publicacao=03/06/2019">AP 874-QO</a>, todas julgadas no STJ). 
De todo o exposto, tem-se que o acórdão na AP 937-QO abriu uma verdadeira “caixa de Pandora”, tentando resolver um problema, criou toda uma série de outras situações complexas e problemáticas que não existiam a priori.

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JOTA

Revisitando a AP 937-QO, que criou uma série de outras situações complexas e problemáticas

A caixa de Pandora do foro por prerrogativa de função

Foro por prerrogativa: o acórdão na AP nº 937-QO abriu uma verdadeira “caixa de Pandora”, tentando resolver um problema