Maurício da Costa Carvalho Vidigal

No século passado, por duas vezes, os oficiais de Registro de Títulos e Documentos da cidade de São Paulo tentaram montar um cartel, pelo qual os serviços a serem prestados seriam distribuídos entre todos sem que o consumidor deles pudesse escolher o cartório de sua preferência. Suas pretensões foram indeferidas pela Corregedoria Geral da Justiça. Em sua terceira tentativa, na gestão do ilustre desembargador Luiz de Macedo, conseguiram que fosse autorizada a formação de um serviço de distribuição de títulos com compensação entre os registradores, desde que houvesse o consenso de todos. 
Infelizmente, não se percebeu na ocasião que a mera divisão equitativa dos serviços entre os seus prestadores caracterizava a formação de cartel, pois a divisão forçada de clientes entre fornecedores de serviços é uma das suas características. Ela é prejudicial aos clientes, porque a livre concorrência, na medida em que incentiva o fornecedor de bens e serviços à busca do bom atendimento para os consumidores, é fator de melhoria da qualidade deles. 
A Constituição Federal ordena que se observe a livre concorrência nas atividades privadas (art. 170, inciso IV), a Lei n. 1.521/51, que trata dos crimes contra a economia popular, em seu art. 3º, II, criminaliza o consórcio, conluio, o ajuste ou aliança que impeça ou dificulte a concorrência e a Lei n° 8.864/94, no art. 21, III, caracteriza como infração da ordem econômica dividir o mercado de serviços. É evidente que o tipo penal não é configurado pelo sucedido, mas a existência dele e das demais regras referidas é suficiente para verificar que o procedimento não é recomendado pelo ordenamento jurídico. Como ensina Eros Roberto Grau, o direito não se interpreta em tiras. O conjunto de suas normas deve ser sempre considerado na análise de qualquer fato jurídico. 
<ul class="jota-article__internal-links">
<li>+JOTA: <a href="https://www.jota.info/assine">Assine o JOTA e não deixe de ler nenhum destaque!</a></li>
</ul>
Não se argumente que, regulamentados os serviços por regras expedidas pelos órgãos públicos, eles não se diferenciam em sua qualidade. No próprio site do Centro de Distribuição de Títulos em São Paulo (CDT), consta que ele fornece “completa assistência técnica na confecção e solução de dúvidas na legalização dos seus documentos” e não há a possibilidade de serem uniformes esses serviços. Quem quer que tenha alguma vez se relacionado com algum cartório, qualquer que seja sua natureza, não pode deixar de ter percebido diferenças no tratamento dado aos clientes, que satisfazem ou não os usuários. É justo e legítimo que estes possam escolher aqueles que mais os agradaram ou em quem confiem mais. Imagine-se se alguém, ao procurar um advogado, se conformaria com não o poder escolher, sujeitando-se à distribuição por sorteio. Os consumidores dos serviços públicos, na medida do possível, têm direito ao mesmo tratamento. 
Passado algum tempo, em 2011, no exercício da Corregedoria Geral da Justiça, editei a pedido da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP) o Provimento de nº19/2011, pelo qual reiterei a disposição anterior, estabelecendo, porém, que os usuários ficavam autorizados a escolher o cartório de sua preferência e apresentar-lhe diretamente o título objeto do serviço solicitado, vedada compensação com os títulos apresentados sem indicação do registrador. Determinou-se também que a livre escolha fosse anunciada aos usuários do serviço.
Essa decisão foi revogada pelo Conselho Nacional de Justiça, estatuindo-se então que, ainda mediante o consenso de todos registradores, haveria distribuição de todos os títulos, com proibição de sua apresentação aos cartórios preferidos e possibilidade de escolha pelos usuários, mas com a “posterior e obrigatória compensação com os títulos livremente distribuídos”.
Em decisão liminar do ministro Lewandowski, o Supremo Tribunal Federal suspendeu a decisão do Conselho Nacional da Justiça. O mandado de segurança ainda não foi decidido, mas há parecer da Procuradoria Geral da Justiça pela concessão da ordem.
O desembargador Hamilton Eliot Akel, Corregedor Geral da Justiça na gestão de 2014/2015, restabeleceu as regras do Provimento nº19/2011. Depois, já em 2017, a pretexto de regulamentar o sistema de registro eletrônico de títulos e documentos, a Corregedoria Geral da Justiça editou o Provimento de nº 21/ 2017, ordenando, em todas as comarcas que contenham mais de um registro de títulos e documentos, a distribuição obrigatória equitativa e igualitária do ato constitutivo de nova pessoa jurídica e de todos os títulos e documentos, a ser feita por central estadual, sem previsão de escolha do registrador pelo usuário. Essa norma veio a ser alterada pelo Provimento nº 28/2017 que sujeitou em localidades com mais de um registro a distribuição equitativa e igualitária ao consenso dos registradores.
Há notícias de que a Egrégia Corregedoria Geral da Justiça pretende estabelecer novas regras para a questão. As armas e os barões assemelhados, estes os que sem esforço obtêm o mesmo ganho dos registradores que lutam pela melhoria dos seus serviços, certamente mais uma vez defenderão o cartel. A barca que o conduz mais uma vez está de partida. Ela não é semelhante à do filósofo, referida por Bobbio, que tão logo aporta tem de partir atrás de novas verdades. Ela batalha por uma única bandeira, a dos que buscam o conforto e a tranquilidade em detrimento dos menos favorecidos.
Navegar é preciso, mas num país onde ano após ano luta-se contra privilégios e ano após ano eles, supostamente desaparecidos, surgem novamente, a barca que nos deve conduzir é a que sustenta os interesses dos desfavorecidos e daqueles que batalham pela melhoria dos seus serviços e pela boa qualidade deles.
A meu ver, as novas normas devem antes de tudo privilegiar os usuários, assegurando-lhes o direito de escolher o cartório que realizará o serviço necessário. Não é a toa que associações de advogados lutaram pelo fim do cartel paulistano. Eles, como legítimos representantes dos seus clientes, queriam assegurar-lhes o melhor serviço possível e somente com livre escolha poderiam alcançar esse escopo. Há questões que o uso dos meios eletrônicos pode tornar irrelevantes, mas não deve ser ignorado que numa cidade como São Paulo, não é razoável que todos os cartórios estejam estabelecidos no centro da cidade em torno do Centro de Distribuição de Títulos. 
Antes da distribuição obrigatória, um dos cartórios tinha sua sede em Santo Amaro, atendendo preferencialmente ao povo daquela região. Após editar o Provimento nº 19/2011 fui cumprimentado pelo titular da administradora do condomínio em que morava que me contou que atas anteriores do condomínio estavam registradas em vários cartórios em virtude da distribuição, embora a sede de sua empresa fosse vizinha de um dos cartórios e gostasse muito dos serviços que ele prestava. Diversidade de prestadores facilita muito a vida dos que os procuram. Proibir a estes a livre escolha há de prejudicá-los muito.
Nos últimos anos, o serviço dos cartórios extrajudiciais tem se distinguido por sua qualidade dos serviços públicos propriamente ditos. Isso se deve, em grande parte, à profissionalização dos delegados de serviços, muitos deles jovens estudiosos e dedicados que alcançaram seus cargos depois de concursos disputadíssimos e severos. Impor distribuição equitativa e igualitária, mesmo sendo objeto de consenso dos interessados, desrespeita o idealismo dos servidores que buscam o serviço ótimo e não se cansam de aprimorá-lo. A livre concorrência, como fator de incentivo à qualidade, não pode ser desprezada e como recomendação constitucional não deve ser substituída.

water-3664318_1280

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Pelo direito de escolher o cartório mais eficiente, no balcão e na internet

A barca do cartel

Pelo direito de escolher o cartório mais eficiente, no balcão e na internet