ataque à democracia

A barbárie de Brasília e a memória que nos falta

País paga preço amargo por não ter desenvolvido uma cultura sobre os crimes cometidos na ditadura militar

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Golpistas escalam estátua da Justiça, em frente ao prédio do STF, na Praça dos Três Poderes. Crédito: Marcelo Camargo/Agência Brasil

A barbárie de bolsonaristas radicais em Brasília, destruindo as sedes dos três Poderes sob a justificativa de reivindicar uma ditadura militar e o afastamento do presidente da República eleito há pouco mais de dois meses, depois de sucessivas afrontas à democracia por parte do ex-presidente Jair Bolsonaro, tem muitas explicações. Pouco lembrada, uma delas está associada à contemporização, após a redemocratização do país, da violência e dos delitos cometidos durante 20 anos de ditadura militar.

Durante a Assembleia Constituinte, por exemplo, o ministro do Exército, general Leônidas Pires Gonçalves, pressionou os constituintes para a inclusão de um artigo, o de número 142. O texto que define o papel das Forças Armadas como “instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Além de tautológico, a redação foi tão mal escrita que até hoje dá margens a interpretações equivocadas, da qual a mais absurda é a de que o Exército, a Marinha e a Aeronáutica teriam um “poder moderador”. Essa interpretação é a que foi amplamente invocada pelo então presidente Bolsonaro durante seus quatro desastrosos anos de gestão.

Outro ponto digno de nota foi a discussão sobre a responsabilização judicial dos envolvidos nos trabalhos sujos do regime militar. Ela começou na década de 1970, quando surgiram o Movimento Feminista pela Anistia e o Comitê Brasileiro pela Anistia, integrado por vários setores da sociedade civil. Em resposta a essa mobilização, em 1979 o governo da época, presidido pelo general João Baptista Figueiredo, enviou ao Congresso o PL 14, que concedia “anistia a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares e outros diplomas legais”.

A implementação dessa lei se deu sob muita tensão. Enquanto entidades de defesa dos direitos humanos e órgãos corporativos como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) passaram a afirmar que essa lei não anistiava “agentes do Estado” envolvidos em casos de prisões ilegais, torturas, homicídios e desaparecimento forçados, a ala militar mais radical do regime e grupos paramilitares se opuseram contra essa lei por meios violentos, praticando atentados terroristas contra a distensão política no país.

Após a promulgação da Constituição, em outubro de 1988, “agentes do Estado” processados por terem sido torturadores alegaram que a Lei da Anistia de 1979 fora aprovada nove anos antes. Por esse motivo, o artigo da Constituição que proibia anistia a torturadores não valeria para os crimes cometidos anteriormente à sua promulgação, “tendo em vista o princípio constitucional da irretroatividade da Lei Penal”.

Com isso, a discussão foi judicializada por meio de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) impetrada em 2008 pela OAB no Supremo Tribunal Federal. Em seu recurso, a entidade pediu à corte que declarasse que a Lei da Anistia não incluía crimes praticados por “agentes do Estado” durante a ditadura militar.

“Impetramos essa ADPF para que os torturadores não fiquem a salvo da história”, dizia a entidade. Mas, em 2010, o STF rejeitou esse pedido. Em seu parecer de 67 laudas, o relator afirmou que não cabia ao Poder Judiciário rever o acordo político que, na transição do regime militar para a democracia resultou na anistia de todos (grifo meu) aqueles que cometeram crimes políticos no país entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. Se a revisão tiver de ocorrer, essa tarefa caberia não à Justiça mas ao Legislativo, disse ele, “porque a anistia integrou-se à nova ordem constitucional inaugurada no país pela Emenda Constitucional 26, que convocou a Assembleia Nacional Constituinte”. Por isso, “o acompanhamento das mudanças do tempo e da sociedade, se implicar necessária revisão da Lei da Anistia, deverá ser feito pela lei, vale dizer, pelo Poder Legislativo, não por nós (…). Ao Supremo Tribunal Federal, repito-o, não incumbe legislar”, concluiu.

Tanto a decisão quanto os argumentos que a fundamentaram causaram grande repercussão. No exterior, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil por não investigar, processar e condenar os “agentes de Estado” culpados pelos crimes no enfrentamento da chamada guerrilha do Araguaia.

No plano interno, parlamentares, juristas e operadores jurídicos protagonizaram muitas polêmicas. Alguns defenderam a tese da OAB e criticaram a decisão contemporizadora do Supremo. Outros classificaram como “revanchismo” a não concessão de anistia aos torturadores e assassinos da ditadura militar. A discussão foi tão acirrada que resultou em rompimento de relações nos meios acadêmicos e forenses, após vários juristas e professores de direito assinarem manifestos de protesto contra ministros que eram seus colegas no corpo docente da universidade.

Há muitos outros episódios semelhantes aos dois a que me referi acima. Foi essa somatória de pressões de militares com base na presunção de que o artigo 142 da Constituição lhes conferiria “poder moderador” e das sucessivas acomodações ou contemporizações com relação à violência da ditadura militar que, a meu ver, gerou ao longo do tempo uma cultura de inimputabilidade amplamente disseminada nos meios militares. O desastroso governo Bolsonaro, o que contou com maior número de militares após a redemocratização, é exemplo disso.

Em que medida os vândalos que destruíram criminosamente as sedes dos três Poderes e aqueles que estimularam e financiaram a barbárie teriam ido tão longe se, na decisão de 2010, o Supremo Tribunal Federal não tivesse contemporizado? Em que um deputado tosco, ignaro autocrata e inconsequente teria elogiado publicamente um torturador como o coronel Brilhante Ustra ao votar no processo de impeachment de 2016?

Se, em 1988, o Superior Tribunal Militar não o tivesse absolvido da acusação de elaborar um plano para explodir bombas em quartéis e em sistemas de abastecimento de água em protesto por melhores salários para militares, teriam ele e os boçais da extrema direita que o seguem ido tão longe em suas tentativas de desmoralização do sistema eleitoral, pondo em dúvida a urna eletrônica, de captura dos órgãos de controle, como a Procuradoria-Geral da República e do próprio Judiciário, e de golpes típicos de republiquetas bananeiras?

Esse é o amargo preço que o país está hoje pagando por não ter desenvolvido, ao longo das gerações, uma memória ou uma cultura sobre as brutalidades, os crimes e as atrocidades cometidas no período ditatorial.