Fernando Villela de Andrade Vianna

A autorização como instrumento juridicamente válido para a delegação de serviço público é um tema que passou a despertar reflexões mais aprofundadas nos últimos anos, principalmente em razão de alterações legislativas que passaram a prever, de forma expressa, essa possibilidade. Pode-se citar, como exemplo, a <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L12996.htm">Lei 12.996/2014</a>, que modificou a Lei 10.233/2001 e previu a autorização para a delegação do serviço público regular de transporte terrestre coletivo interestadual e internacional de passageiros.
É verdade que essas medidas legislativas encontram sua base no art. 21, XII<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, da Constituição Federal, que prevê a exploração indireta de diversas atividades econômicas (atividade econômica em sentido estrito ou serviço público, na clássica divisão do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Eros Grau) por meio de autorização, concessão ou permissão. Exemplo dessas atividades são os serviços de radiodifusão sonora, de sons e imagens, os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de água, a navegação aérea, aeroespacial e a infraestrutura aeroportuária, os serviços de transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais e os serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros.
A doutrina está longe de ser pacífica com relação à interpretação desses dispositivos constitucionais. Há quem defenda que os serviços públicos só poderão ser delegados mediante concessão ou permissão, sempre através de licitação. Para tanto, empreendem uma leitura conjunta do art. 21, XII, com o art. 175<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, que estabelece incumbir ao Poder Público, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, a prestação de serviços públicos. A autorização, por essa corrente doutrinária, por não ter sido expressamente prevista no caput, do art. 175, da Constituição Federal, estaria reservada àquelas atividades econômicas em sentido estrito em que se reconhece a sua relevância a ponto de justificar uma participação estatal mais intensa, principalmente na regulação e na fiscalização. É dizer, a autorização não se presta a delegar serviços públicos, de titularidade do Poder Público, mas tão somente a serviços de utilidade pública.
Outros defendem que a delegação de serviço público por meio de autorização seria possível, mas estaria restrita às hipóteses de transitoriedade, especificamente para evitar a solução de continuidade na prestação daquele serviço público à sociedade. Nessa situação, quando há o encerramento de um contrato de concessão ou permissão e não há tempo hábil para a conclusão de todas as medidas administrativas para uma nova licitação (estudos técnicos de viabilidade, realização de audiência pública etc.), a Administração Pública poderia se valer da autorização para delegar aquele serviço público a um parceiro privado até que se conclua o devido procedimento licitatório.
Há, contudo, uma prática histórica que merece atenção. Como tradicionalmente os serviços públicos passaram a ser delegados exclusivamente pelo regime de permissão ou concessão, sempre através de licitação, as autorizações se restringiram às atividades econômicas em sentido estrito (i.e., serviços de utilidade pública).
E, até a alteração legislativa mais recente e citada na parte inicial deste artigo, esse era o state of the art na delegação de serviços públicos no Brasil. Mas isso não significa que o legislador ordinário não possa se valer da intenção do constituinte originário de lhe conferir discricionariedade (“compete à União explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão”) para definir o instrumento de delegação mais adequado para a exploração indireta de determinado serviço público.
As alterações promovidas no setor de transporte coletivo de passageiros interestadual e internacional de passageiros, por meio da Lei 12.996/2014, geraram uma complicação adicional.
Isto porque, a autorização passou a ser adotada expressamente para a delegação de um serviço público, diferentemente do que ocorre em outros setores regulados (a exemplo do marco legal das ferrovias), nos quais o que se autoriza é o exercício de uma atividade econômica em sentido estrito, mas de interesse estatal (serviços de utilidade pública). Não fosse isso, o legislador não dividiria entre concessão e autorização, a depender do regime público ou privado, nos termos do art. 8º, I e II<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, da Lei 14.273/2021.
Em breves palavras, passou-se a adotar a autorização, a permissão ou a concessão para a delegação de serviços públicos e a autorização para atividades econômicas em sentido estrito (serviços de utilidade pública). E daí decorre a confusão que se instaurou em determinados setores acerca do alcance e limites da regulação infralegal.
Afinal, se é autorização – presumiu-se –, não pode ser serviço público ou este não deve merecer as precauções e proteções legais dos regimes de permissão ou concessão. Este autor já se deparou inclusive com a interpretação de que, por se tratar de autorização, o serviço público atrairia a aplicação da Lei 13.874/2019 (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/lei-liberdade-economica">Lei de Liberdade Econômica</a>).
Trata-se de uma premissa equivocada que merece reparo. A autorização para serviço público em nada se confunde com aquela para determinadas atividades econômicas em sentido estrito previstas no mesmo art. 21, da Constituição Federal. A definição de que determinada atividade se enquadra na categoria de serviço público decorre do texto constitucional ou da lei, não da sua forma de outorga. E as proteções legais aplicáveis ao serviço público, por se dirigirem à sociedade, são inafastáveis independentemente da forma de outorga.
No atual estágio de dinamismo das relações público-privadas e a crescente necessidade de buscar formas criativas de atrair o capital privado para atividades de titularidade do Poder Público, não nos parece razoável impor barreiras e custos elevados de transação para o Estado e o particular na prestação de serviços públicos. Especialmente quando inexiste um antagonismo constitucional entre o regime autorizativo e a prestação de serviço público.
Qual seria então o alcance do art. 175, da Constituição Federal, que estabelece expressamente os regimes de permissão ou concessão, sempre mediante licitação, para a prestação do serviço público? É importante lembrar que a licitação é, antes de tudo, um instrumento que busca concretizar, no campo prático, os princípios da isonomia e da impessoalidade nas relações público-privadas.
Assim, quando a delegação de determinado serviço público envolver a transferência temporária de ativos de propriedade estatal para o particular, é incontestável que o regime a ser adotado deverá ser o de permissão ou concessão, nos exatos termos do art. 175. Exemplo disso é o que ocorre nos setores de aeroporto e de rodovia.
Ora, a racionalidade econômica não permite a duplicação dessas infraestruturas para a exploração por outros particulares. É exatamente por isso que os serviços públicos sob concessão ou permissão são monopólios naturais: estes são mais baratos para a sociedade pela prestação exclusiva de um único prestador do que pela concorrência com múltiplos prestadores, que neste caso incorreriam em investimentos vultosos para duplicar a infraestrutura necessária (ainda que fosse possível e inexistissem limitações geológicas). O mesmo racional se aplica aos aeroportos: como não é economicamente viável construir um aeroporto ao lado de outro já existente, o constituinte originário estabeleceu que esses serviços públicos só podem ser prestados pela União (diretamente) ou por particulares mediante concessão ou permissão (indiretamente), sempre através de licitação (art. 175).
E no caso de serviços públicos desvinculados de infraestrutura? Nessa hipótese, quer-nos parecer que caminhou bem o legislador ordinário ao estabelecer o regime de autorização, na medida em que permitirá um maior dinamismo na delegação desse serviço público e um incremento no número de empresas prestadoras, em benefício da própria sociedade. Este é exatamente o caso do transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros, previsto expressamente no art. 21, XII, “e”, da Constituição Federal, e que foi objeto de alteração legislativa na forma de delegação em 2014, por meio da Lei 12.996/2014.
Dessa forma, enquanto no regime de permissão ou concessão a concorrência entre parceiros privados para a sua prestação acontece “pelo” mercado (por meio da licitação), no regime de autorização esta se dá “no” mercado. Enquanto no primeiro a disputa ocorre para definir quem será o prestador exclusivo em nome do Estado, no segundo esta ocorre pela preferência do usuário por meio do binômio preço-qualidade, observados os princípios aplicáveis ao serviço público e a regulação infralegal.
Não é por outro motivo que o legislador foi expresso em limitar a delegação por autorização para a prestação regular de serviços de transporte terrestre coletivo interestadual e internacional de passageiros desvinculados da exploração da infraestrutura<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. Nesse caso, a União estaria a delegar única e exclusivamente a prestação do serviço público em si, sem transferir ao particular qualquer infraestrutura estatal, o que possibilita o ingresso de outros prestadores sem as barreiras de entrada e os custos de transação existentes na eventual duplicação de infraestruturas.
O que pode ocorrer no regime autorizativo para a delegação de serviço público é que, em razão de sua maior capacidade de atrair operadores, o órgão regulador deverá avaliar a capacidade econômico-financeira daquele serviço público ser prestado por múltiplos agentes em observância aos princípios aplicáveis, a exemplo de regularidade, eficiência, continuidade e modicidade tarifária.
Na hipótese de o serviço público não ser capaz de absorver uma multiplicidade de autorizatários, o procedimento licitatório será obrigatório para preservar os princípios constitucionais da isonomia e impessoalidade. É exatamente com isso em mente que o legislador ordinário promoveu alterações na Lei 10.233/2001 e incluiu a inviabilidade econômica como critério apto a obstar a outorga de novas autorizações de serviço público.
Não obstante as judiciosas opiniões em sentido contrário, esta é, para este autor, a interpretação constitucional que extrai mais externalidades positivas dos arts. 21 e 175, da Constituição Federal, enquanto preserva as diretrizes estabelecidas pelo constituinte originário, principalmente as de conferir ao legislador ordinário a discricionariedade legislativa para definir o instrumento de delegação mais adequado para determinado serviço público.
O que não se pode permitir é a confusão entre os instrumentos de autorização para serviço público e para aquelas atividades econômica em sentido estrito, devendo a regulação infralegal ser compatível com cada regime. A regulação estatal será mais ou menos intensa a depender da natureza da atividade (serviço público v. atividade econômica em sentido estrito), e não da forma que se dá sua delegação (autorização, permissão ou concessão). Ao mesmo tempo, excluir do legislador ordinário a autorização como instrumento de delegação de serviço público significa reduzir a discricionariedade legislativa conferida pelo próprio constituinte originário, o que não nos parece compatível com o texto constitucional ou mesmo com as aspirações de uma sociedade cada vez mais dinâmica e moderna.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Art. 21. Compete à União:
(...)
XII - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão:
<ol>
<li>
a) os serviços de radiodifusão sonora, e de sons e imagens;
</li>
<li>
b) os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de água, em articulação com os Estados onde se situam os potenciais hidroenergéticos;
</li>
<li>
c) a navegação aérea, aeroespacial e a infra-estrutura aeroportuária;
</li>
<li>
d) os serviços de transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou que transponham os limites de Estado ou Território;
</li>
<li>
e) os serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros;
</li>
<li>
f) os portos marítimos, fluviais e lacustres;
</li>
</ol>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Art. 8º A exploração indireta de ferrovias será exercida por operadora ferroviária:
I - em regime privado, mediante outorga de autorização;
II - em regime público, mediante outorga de concessão.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Art. 13.  Ressalvado o disposto em legislação específica, as outorgas a que se refere o inciso I do caput do art. 12 serão realizadas sob a forma de:
(…)
V - autorização, quando se tratar de:
(...)
<ol>
<li>
e) prestação regular de serviços de transporte terrestre coletivo interestadual e internacional de passageiros desvinculados da exploração da infraestrutura.
</li>
</ol>

transporte rodoviário

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JOTA

Regulação estatal será mais ou menos intensa a depender da natureza da atividade, não da forma de delegação

A autorização como instrumento de delegação de serviço público

Regulação estatal será mais ou menos intensa a depender da natureza da atividade, não da forma de delegação