Pandemia

A autonomia dos municípios no modelo federativo brasileiro

Análise à luz da pandemia da Covid-19

Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil/ Fotos Públicas

A forma federativa de estado, consagrada como cláusula pétrea na Constituição de 1988, constitui descentralização territorial do poder, a qual pressupõe que os diferentes entes integrantes detenham autonomia política, administrativa e financeira, enquanto somente a entidade personificada pelo conjunto dos membros que a compõem detenha soberania expressa a nível internacional.

Nesse sentido, adotar a forma federativa implica em acomodar objetivos da unidade na diversidade com vistas à consecução de finalidades comuns. A doutrina aponta como características da federação: a) existência de Constituição escrita, com as competências da União e dos entes federados, bem como as hipóteses excepcionais que autorizem a intervenção; b) multiplicidade de âmbitos governamentais e ordens jurídicas; c) participação dos entes federados na construção da vontade nacional; d) defesa judicial da Constituição e e) proibição de secessão.

Assim, considerando se o pacto federativo adotado no país, analisa-se a concretização da autonomia municipal em face da pandemia da Covid-19, um contexto em que se questiona o alcance da competência dos entes federativos, o qual coloca em relevo a necessidade de esforços para concretizar o federalismo de cooperação esboçado na Carta de 1988.

Desde a implantação da forma federal de estado no Brasil, que coincidiu com a proclamação da República, todas as Constituições, com exceção das Cartas de 1937 e de 1967 e atos institucionais, mantiveram o modelo federativo, o qual foi consagrado na forma cooperativa a partir da Carta de 1988, a partir da distribuição de competências de forma a garantir a cada uma das esferas federativas autonomia política, administrativa e financeira, com a peculiaridade de incluir o município como ente federal.

O fortalecimento dos munícipios na federação brasileira se expressa na repartição de competências da Carta de 1988, baseada no princípio da predominância de interesse, o qual estabeleceu as competências próprias da União (arts. 21 e 22 da Constituição), a competência residual dos estados (art. 25 da Constituição), as competências concorrentes – União, estados e Distrito Federal – e as competências comuns – distribuídas a todos os entes (arts. 24 e 23, respectivamente, da Constituição). Além disso, a Constituição deferiu aos municípios competências expressas, calcadas nos assuntos relativos ao interesse local (arts. 29 e 30 da Constituição).

A despeito da corrente que não considera o município como real componente da federação, vez que não detêm participação no processo de elaboração da Constituição Federal e leis federais e considerando que não possuem um Judiciário próprio, municipalistas clássicos como Meirelles[1], defendem a autonomia e a essencialidade do município na organização político-administrativa do país, reconhecendo-lhe autonomia e  condição de parte verdadeiramente integrante da federação.

Além da noção jurídica, cabe enfatizar que na seara política, os entes municipais gozam de inegável importância. Isso porque os integrantes da Câmara dos Deputados trabalham em regime de cooperação com as demandas dos gestores dos municípios brasileiros, os quais conhecedores da realidade local constituem importante instrumento de interlocução entre os interesses do eleitorado e dos seus representantes.

Com o surgimento da pandemia atual, provocada pelo novo coronavírus, e as consectárias discussões jurídicas acerca das medidas adotadas por prefeitos para o seu enfrentamento, nunca se ouviu falar tanto da autonomia municipal, principalmente por conta das recentes decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre tais deliberações.

Apesar de tais decisões se debruçarem, precipuamente, sobre um fenômeno novo e específico – a pandemia que se verifica hoje –, insta sobrelevar, porém, que o entendimento do STF em relação à competência dos municípios está longe de ser um posicionamento hodierno.

Com efeito, a autonomia municipal e sua posição como ente federativo tem sido consagrada mediante a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Isso porque o escólio firmado por aquela Corte Suprema já vem se descortinando, no decorrer dos últimos anos, sob os mais variados aspectos, guardando coerência com as disposições dos arts. 18, 29 e 30, I, da CF/88, em temas variados, que vão desde a competência municipal para organizar o transporte coletivo[2], o tempo de espera em filas bancárias[3], e a titularidade dos serviços de saneamento básico.[4]

Em se tratando de serviços de saneamento básico, quando do julgamento da ADI 1.842/RJ[5], o Supremo deixou consignado que “o interesse comum e a compulsoriedade da integração metropolitana não são incompatíveis com a autonomia municipal”.

Vê-se que tais julgados do STF só refletem o fato de que as deliberações adotadas no âmbito municipal causam impacto, de forma direta, na população, pois compete ao município o disciplinamento de atividades e serviços que dizem respeito ao dia a dia das cidades, como transporte coletivo, ordenamento do uso do solo, funcionamento de lojas, restaurantes, bares, trânsito, utilização de espaços públicos, dentre outras incumbências municipais.

No momento atual, essa percepção também se faz muito presente, principalmente, diante de algumas providências adotadas por diversos municípios brasileiros para conter o avanço da doença causada pelo novo coronavírus, como, por exemplo, redução da frota de ônibus para diminuir a circulação de pessoas, rodízio de carros, utilização de máscaras, fechamentos das praias, instituição do toque de recolher, fechamento do comércio, sem falar do temido “lockdown”.

Foi nesse contexto que o Pleno do STF referendou a decisão liminar do min. Marco Aurélio,  reconhecendo a competência comum da União, estados, Distrito Federal e municípios para as providências relativas aos cuidados com a saúde da população, nos termos propugnados pelo inciso II, do art. 23 do Texto Constitucional.

Sem que houvesse o reconhecimento reiterado do STF acerca da autonomia dos municípios, não só em relação às medidas necessárias para enfrentamento do Covid-19, mas, também, para todas aquelas indispensáveis a disciplinar atividades e serviços da coletividade, o caos seria instalado.

Em uma realidade de existência de mais de cinco mil municípios, é impossível ao poder central avaliar a melhor forma de lidar com as distintas realidades existentes em relação a diversos problemas que demandam decisões eficazes e ágeis do Poder Público.

Conclui-se que, embora a concretização da autonomia municipal tenha ocorrido em distintos níveis ao longo da história da federação brasileira, o momento atual demonstra um grau satisfatório de consolidação do município como efetivamente integrante da federação brasileira, o que se deve em grande parte ao entendimento manifesto em diversas decisões do STF.

 


MEIRELLES, HELLY LOPES. Direito Municipal Brasileiro, 17ª ed., Malheiros Editores, São Paulo: 2013.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MC na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.341/DF. Relator, Ministro Marco Aurélio, julgado em 24.03.2020 e publicado em 25.03.2020.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 10.221 RG. Relator, Ministra Ellen Gracie, julgado em 29.04.2010 e publicado em 20.08.2010.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 266.536. Relator, Ministro Dias Toffoli, julgado em 17.04.2012 e publicado em 11.05.2012.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 1.052.719. Relator, Ministro Ricardo Lewandowski, julgado em 25.09.2018 e publicado em 17.09.2019.

[1] MEIRELLES, HELLY LOPES. Direito Municipal Brasileiro, 17ª ed., Malheiros Editores,São Paulo: 2013, pág. 91.

[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 845. Relator, Ministro Eros Grau, julgado em 22.11.2007e publicado em 07.03.2008

[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 10.221 RG. Relator, Ministra Ellen Gracie, julgado em 29.04.2010 e publicado em 20.08.2010.

[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 1842/RJ. Relator, Ministro Luiz Fux, julgado em 06.03.2013 e publicado em 16.09.2013.

[5] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 1842/RJ. Relator, Ministro Luiz Fux, julgado em 06.03.2013 e publicado em 16.09.2013.