Vitor Gonçalves

Genira Gonçalves Vasconcelos

"Onde existe uma necessidade, nasce um direito." A frase de Eva Perón representa um dos aspectos mais difíceis de implementar nas democracias contemporâneas: o direito a ter direitos. Hannah Arendt já tratava da complexidade do assunto ao abordar tópicos relativos à construção da cidadania, sob as óticas política, jurídica e social. Ao verificar-se as particularidades da sociedade brasileira, tais como a abrupta desigualdade regional e o desnível nas classes sociais, o abismo entre a previsão legal e a eficácia prática dos direitos fundamentais torna-se ainda maior.
Tomando como pressuposto os direitos sociais de segunda geração, a Constituição Federal, cujos dispositivos relativos à efetivação da assistência social encontram-se nos arts. 6º, 203 e 204, trata de maneira rasa o direito a ter direitos. Na prática, o texto constitucional não traz medidas específicas sobre como a população desamparada pode alcançar a cidadania emancipatória proposta por Arendt.
Na América Latina, a efetivação de direitos sociais como previdência, cultura e lazer possuem influência de nomes normalmente associados ao peronismo, como Getúlio Vargas e Carlos Ibáñez del Campo. Na mesma época, a figura do assistente social surgiu no Brasil, a partir de 1936, por iniciativa do Centro de Estudos e Ação Social de São Paulo (CEAS), que fundou a primeira Escola de Serviço Social brasileira na PUC-SP.
Nota-se que a prática da assistência social sempre esteve atrelada a iniciativas privadas. Não decorrendo, assim, de uma ação deliberada do Estado em atendimento a socorrer as reais necessidades que afetam a população em momentos de vulnerabilidade e carência. Nesse contexto, o amparo sobrevém a partir de ações da sociedade, por intermédio de pessoas comuns, as quais reuniam-se para arrecadar ajuda e caridade. Soma-se a isso o apoio da Igreja Católica, que transformou tais ajudas em Ações Sociais de atendimento.
No que se refere à conduta do Estado em relação às políticas públicas em atendimento e auxílio aos desamparados, atendeu-se muito mais ao controle dos problemas do que em atuações que tivessem como finalidade acabar com eles. Isso porque, de acordo com Iamamoto e Carvalho (2020, p. 256), as reivindicações históricas do proletariado, ao serem incorporadas por intermédio de políticas sociais, sofreram um processo de falsificação e burocratização.
Com isso, as políticas públicas passaram a ter elementos centrais ocultos, privilegiando interesses de classes hegemônicas do Estado, por meio da acumulação e do enquadramento da força de trabalho. Assim, as reivindicações do movimento operário têm sido centradas, constantemente, na melhoria de sua situação de vida e de trabalho, como aspirações por condições dignas, acesso à educação, à habitação, dentre outros direitos.
Como exemplo desse fenômeno, tem-se o art. 203 da CF/88, atualizado em 2021, pelo acréscimo de um único inciso. Em outras palavras, o dispositivo em si merece várias adequações ao momento atual. O texto ainda guarda o espírito do constituinte originário, focado em aspectos relativos ao caráter previdenciário e nos debates relativos à implementação de benefícios financeiros às camadas mais pobres da população brasileira. Isso ratifica a ideia de implementar soluções paliativas ao problema das classes mais humildes, sem garantir possibilidades emancipatórias, tendo a burocracia como filtro dos elegíveis ou não aos benefícios assistenciais implementados pelo Estado.
Tal afirmação pode ser corroborada pelos discursos de Raphael de Almeida Magalhães, então ministro da Previdência e Assistência Social (MPAS), e o deputado federal Eduardo Jorge, ambos atuantes na Assembleia Nacional Constituinte<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> que deu origem à Constituição de 1988. Em primeira análise, é preciso destacar a posição de um e de outro na subcomissão de Saúde, Seguridade e do Meio Ambiente, de acordo com os seus pareceres sobre a questão da nomenclatura que embasaria a Assistência Social e a Previdência Social, bem como de onde sairiam os recursos para a manutenção do sistema.
Magalhães buscava conscientizar sobre a necessidade de orientar a política de Previdência Social e da Assistência Social com uma nova conceituação. Nesse sentido, procurou explicitar a adoção do termo “Seguridade Social”. Segundo ele, essa mudança traria uma visão mais ampla e extensa de conteúdo social, além de ajustar-se melhor às necessidades e deveres da seguridade no país. Apesar de suas concepções ajustarem-se, de alguma forma, aos possíveis equívocos de correlacionar pessoas que contribuem ou não, poderia gerar direitos desiguais e de caráter individual.
Em seu parecer, é salientado a importância de estender as ações do Estado e a proteção para o público vulnerável não contributivo, garantindo a todos a obtenção de condições mínimas de cidadania. E ainda, em um de seus discursos, indicou que os recursos para a sua implementação deveriam ser gerados através dos impostos fiscais pagos pela sociedade. Não comprometendo assim, os recursos pagos à previdência pelos trabalhadores.
Nesse contexto, Eduardo Jorge demonstrou tal entendimento com uma proposta de uma emenda, na Comissão do GT. À medida que o relatório consolidado por Mosconi<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> foi apresentado, Jorge pediu a substituição de todas as menções à “Previdência e Assistência Social” para “Seguridade Social”. O parlamentar defendia que essas mudanças justificam-se por um correto conceito de seguridade, o qual abrangeria a população em maior amplitude. Era inegável que a seguridade possuía capacidade de maior abrangência, no entanto, era preciso questionar as diretrizes que sustentariam tal política, de que forma ela seria implementada, bem como, quais seriam as bases do Serviço Social.
À época, esses questionamentos não foram respondidos. Considerando que o tema relativo à Assistência Social ficou, em muitos momentos, longe do protagonismo das propostas que fariam parte do projeto de Carta Magna, houve um imenso esforço dos membros do Grupo de Trabalho (GT) da Assistência Social para que os recursos destinados à Previdência Social fossem separados dos recursos destinados ao financiamento das Ações Sociais. Ao cabo, as ações e políticas sociais a serem implementadas restaram inconclusas, ante às indefinições que atravessaram o próprio GT responsável pelo texto constitucional referente à Assistência Social, bem como em função da ausência de representantes da Assistência Social na sustentação e na defesa do tema, no âmbito da subcomissão.
O termo “seguridade”, nessa época, já era utilizado em diferentes países europeus que caracterizavam-na como política de proteção estatal, amparando necessidades do cidadão em seu estado de carência e vulnerabilidades. No Brasil, tais políticas eram desenvolvidas de forma inespecífica, marcadas nos debates da Constituinte, o que, segundo Margarites (2020, p. 107), teria levado à escolha do termo espanhol com um “e” no final, em vez de “segurança”, tradução literal para o português. Tal opção teria derivado da carga negativa associada à última palavra, ante o cenário pós-ditadura.
Apesar do esforço perpetrado pelo GT, pode-se dizer que o texto ficou aquém do esperado. Ainda sob o aspecto da vulnerabilidade, o inciso VI do Art. 203 da CF/88 somente trata da vulnerabilidade socioeconômica. Outro caso é o Art. 6˚ da CF/88, o qual apresenta a “assistência aos desamparados” como direito social. Diante disso, pode-se questionar: qual tipo de assistência? Quem são os desamparados, segundo a Carta Magna? O texto só comporta o desamparo econômico? Não é possível afirmar.
A doutrina jurídica, encabeçada pela professora Claudia Lima Marques, na obra Contratos no Código de Defesa do Consumidor, 2016, p. 326, já apresenta outras espécies de vulnerabilidade, conforme delimitação do direito consumerista: i) técnica; ii) jurídica (ou científica); iii) fática (ou econômica); iv) informacional. Portanto, questiona-se: seria possível enquadrar a vulnerabilidade fática, decorrente da violência doméstica contra a mulher, nos casos amparados pela assistência social? O art. 203 da CF/88 ainda não responde a pergunta.
O legislador infraconstitucional vem tentando suprir a lacuna. No caso específico da Lei 11.340/06 (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/lei-maria-da-penha">Lei Maria da Penha</a>), o art. 40-A foi acrescido ao corpo da política pública, por meio da atualização promovida pela Lei 14.550 de 19 de abril de 2023. O novo artigo impõe a aplicação da Lei Maria da Penha às situações previstas no art. 5º da norma,<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> independentemente da causa ou da motivação dos atos de violência e da condição do ofensor ou da ofendida. No mesmo sentido, o inciso I do art. 8º também da Lei Maria da Penha determina que a política pública será realizada mediante integração operacional de diversos atores políticos, dentre eles, a assistência social.
Esses são exemplos que atestam a desatualização legislativa do texto constitucional, considerando-se a expansão da ideia de vulnerabilidade e participação da Assistência Social, independente da condição socioeconômica da vítima.
Diante de tais incongruências, é possível afirmar que, atualmente, o Serviço Social possui outro viés, baseando-se na emancipação dos sujeitos. A Lei 8.662/93, que regulamenta a profissão de Assistente Social, se faz um importante instrumento de conquista. O exercício das competências e atribuições previstas na norma demandam profundo conhecimento das diretrizes nacionais, determinação e responsabilidade ético-profissional. Nesse sentido, o Assistente Social adquiriu maior autonomia na deliberação de suas funções e o amparo legal proporciona condições emancipatórias para atuar em questões de alta ou baixa complexidade, as quais demandam intervenção estatal direta.
Ainda de acordo com Iamamoto e Carvalho (2020), o Serviço Social só vai afirmar-se como prática institucional e legitimada na sociedade à medida que responder às necessidades sociais derivadas da prática histórica da população, tanto na produção quanto na reprodução dos meios de vida e de trabalho de forma socialmente determinadas.
No que diz respeito à implementação da emancipação dos sujeitos, algumas entidades já vêm atuando com esse viés, como a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPE-RJ). Tal obrigação decorre da Lei Orgânica institucional, atualizada pela Lei Complementar 132/09, a qual incluiu a promoção, a difusão e a conscientização dos direitos humanos, da cidadania e do ordenamento jurídico como funções institucionais.
Nessa linha, a DPE-RJ promove o projeto “Pop Rua Itinerante”, o qual oferece ajuda na emissão de documentos, assessoria jurídica e encaminhamento para programas sociais, destinado a pessoas em situação de rua. Uma segunda medida é a cartilha “Direitos humanos de pessoas em situação de rua”, desenvolvida pelo Núcleo de Direitos Humanos, também da DPE-RJ. A publicação apresenta informações sobre como essa parcela da população pode acessar os Centros Municipais de Saúde, de Assistência Social, bem como a localização de restaurantes populares e os principais canais de acesso com a instituição.
Apesar de louvável o esforço infraconstitucional, a inconsistência das diretrizes constitucionais relativas à Assistência Social tem feito com que demandas essenciais fiquem a cargo da atuação do Serviço Social, independentemente dos recursos disponibilizados para a Pasta. Exemplo disso é a implementação de direitos relativos ao Estatuto da Criança e do Adolescente, os quais têm tido participação ativa da Assistência Social.
No REsp 889.852/RS, julgado pela Quarta Turma do STJ, em 2010 e de relatoria do ministro Luis Felipe Salomão, deferiu-se a adoção realizada por um casal homoafetivo, tendo como fundamento a estabilidade familiar e a real vantagem ao adotando, confirmados no relatório expedido por uma Assistente Social. A citação, expressa, do documento na ementa do julgado demonstra a sua importância para a decisão da Turma.
Assim, é possível notar que o desempenho da função de Assistente Social extrapolou os limites previstos no texto da Constituição. A emancipação dos sujeitos e a liberdade de atuação tem exigido a participação, cada vez maior, do Assistente Social no desenho e implementação das mais variadas políticas públicas. Hoje, as necessidades vão muito além de questões financeiras e, com isso, resta ao legislador constitucional compreender que o Serviço Social atende não só aos necessitados, mas toda a sociedade.
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BRASIL. Constituição Federal, de 05 de outubro de 1988. Disponível em:  <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm">https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm</a>
__________. Lei 11.340, de 07 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm">http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm</a>
__________. Lei 8.662, de 07 de junho de 1993. Dispõe sobre a profissão de Assistente Social e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8662.htm
__________. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial 889.852/RS. Rel. Min. Luis Felipe Salomão. Quarta Turma. Julgado em 27/04/10. DJe: 10/08/10.
 IAMAMOTO, Marilda; CARVALHO de Raul. Relações Sociais e Serviço Social no Brasil -  esboço de uma interpretação histórico-metodológica. São Paulo. Cortez. 2020.
 MARGARITES, Gustavo Conde. A constituição da Assistência Social como um Campo de Política Pública no Brasil. Fiocruz. 2020, Brasil.
 MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor - o novo regime das relações contratuais. 8. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo. Revista dos Tribunais. 2016.
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> As atas das reuniões encontram-se disponíveis na íntegra, no portal da Câmara dos Deputados: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada/o-processo-constituinte/comissoes-e-subcomissoes/comissao7/subcomissao7b.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Foi o primeiro relatório do Deputado Federal Constituinte Carlos Mosconi, relator da Subcomissão de Saúde, Seguridade e Meio Ambiente. Seus membros seriam os responsáveis pelo texto que definiria as bases para o projeto de leis relacionado à Seguridade e à Assistência Social na Constituição Federal.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> O dispositivo em questão define o conceito de violência doméstica e familiar contra a mulher, fundamentada na ação e omissão baseada no gênero.

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