Alex Silva dos Santos

O recente anúncio da Apple sobre a criação de ferramenta capaz de monitorar, escanear e analisar fotos para combater o abuso infantil, diretamente dos celulares e computadores dos usuários, reacendeu os fervorosos debates sobre privacidade, vigilância, segurança cibernética e criptografia.
Dentre outras funções, a novidade da gigante tecnológica traz a possibilidade de acionamento do controle parental para monitorar o envio e o recebimento de imagens por usuários menores de 18 anos. As imagens são escaneadas por tecnologia de machine learning e, em caso de identificação de conteúdo sexualmente explícito, são tratadas com efeito de desfoque (blur), impedindo a visualização. Além disso, os pais podem optar por receber um alerta, caso as imagens sejam visualizadas ou enviadas por crianças.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>O ponto de maior polêmica é a possibilidade de escaneamento automatizado e não autorizado de imagens diretamente dos dispositivos dos usuários, com o intuito de detectar, limitar e combater o compartilhamento de conteúdo relacionado a abuso sexual infantil (“Sexual Abuse Material Child – CSAM”). Todo o acervo de fotos do aparelho eletrônico é constantemente analisado, e, uma vez identificado, o material suspeito é reportado aos moderadores, que, por sua vez, após uma conferência, podem acionar as autoridades competentes para providências.
Sobre esse tema, há interessante artigo<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> de Ronaldo Lemos que suscita aparente contradição entre o discurso historicamente adotado pela Apple sobre a privacidade e a introdução desse novo sistema, que, de fato, interfere no conteúdo privado dos usuários. O texto também traz reflexões sobre os riscos dessa iniciativa, em especial da possibilidade de abertura de “porta de entrada” (backdoor) para exploração de vulnerabilidades, comprometendo a segurança dos dispositivos (e de seus usuários) em troca de vigilância permanente.
A inquietação é justificável, afinal, a companhia sempre se posicionou favoravelmente à proteção da privacidade, estabelecendo limites para a coleta de dados, encriptando mensagens privadas e dificultando o acesso a registros eletrônicos de seus clientes por autoridades policiais. Com essa novidade, além do potencial perigo de ataques cibernéticos, especula-se que o controle dos usuários com seus celulares e seus computadores ficará enfraquecido, ficando eles sujeitos à discricionariedade da Big Tech e, eventualmente, das autoridades – que poderão aproveitar a oportunidade para avançar com o discurso de prevalência do interesse público em detrimento do privado.
Aliás, o conflito de interesses entre privacidade e segurança pública é fato notório e poderá ganhar novos contornos com essa iniciativa. Há forte pressão das autoridades para que empresas de tecnologia viabilizem “portas” de acesso (backdoor) aos conteúdos submetidos ao sistema de criptografia de “ponta a ponta”, cuja impossibilidade técnica vem sendo reconhecida pela jurisprudência brasileira<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, muito embora os debates ainda estejam em aberto<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Com efeito, a criptografia de “ponta a ponta” tem sido apontada como um entrave para as investigações e, de certa forma, um “porto seguro” para criminosos. Como sugerido por Lawrence Lessig<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, a própria arquitetura da aplicação pode regular, controlar e restringir a possiblidade de acesso de terceiros às comunicações - para o bem e para o mal. Caberá ao Direito regulamentar essas arquiteturas de controle<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, sem prejuízo da introdução espontânea de adaptações técnicas e pontuais, como a novidade anunciada pela Apple.
<blockquote class="jota-article__eye">É evidente que, ao viabilizar um canal de acesso para monitoramento, escaneamento, análise e tratamento de fotos armazenadas no próprio hardware, são potencializadas as possibilidades de extensão dessa funcionalidade para outros dados disponíveis nos equipamentos.</blockquote>
Consequentemente, surge novo caminho para exploração de vulnerabilidades e cometimento de abusos e de ilícitos por criminosos e por autoridades totalitárias, o que torna legítimo o receio esboçado por especialistas, sobretudo diante do atual cenário de exponencial transformação digital, com altos índices de incidentes de segurança. Nessa perspectiva, tanto a privacidade quanto a segurança da informação dos usuários podem restar comprometidas.
Contudo, ainda que se pondere sobre a prevalência da privacidade em detrimento da segurança pública, o direito não é absoluto e pode ser flexibilizado quando colidir com aqueles assegurados a crianças e adolescentes, considerando o princípio do interesse superior (ECA, art. 100, IV) e o da privacidade (ECA, art. 100, V), vigentes no sistema jurídico brasileiro.
Afinal, a proteção dos direitos da criança e do adolescente deve ser tratada com absoluta prioridade (CF, art. 227; ECA, art .4º), sendo dever da sociedade e do Poder Público assegurar a dignidade e protegê-los de toda forma de exploração e de violência (ECA, art. 18), além de prevenir ameaça ou violação de direitos (ECA, art. 70).
Nessa linha de raciocínio, a flexibilização da privacidade em prol do combate ao abuso sexual infantil tem forte amparo constitucional e legal no Brasil, aparentemente atendendo, inclusive, aos requisitos legais para tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes, previstos no artigo 14 da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD.
Restando evidente que o combate ao abuso infantil é dever de todos, o tratamento de dados pessoais para essa finalidade pode ser considerado como de interesse das crianças. Eventual discussão sobre ausência de consentimento dos pais ou responsável legal para monitoramento e escaneamento das fotos pode ser solucionada pela redação do parágrafo terceiro do referido dispositivo legal, que dispensa o consentimento específico para coleta dos dados pessoais de criança, com finalidade de protegê-la, desde que observadas as demais limitações legais.
Em linhas gerais, a observância atenta dos pressupostos formais da regra de ponderação proposta por Robert Alexy conduz à conclusão de que a incidência de todas essas proteções constitucionais e legais asseguradas a crianças e adolescentes permite a flexibilização do direito de privacidade em prol do combate ao abuso infantil no Brasil, tornando válida a iniciativa sob análise.
O alegado “paradoxo da privacidade” talvez seja apenas consequência previsível da permanência da mudança, conforme exaltada por Camões, sobre os ombros de Heráclito. O fomento do avanço tecnológico e a colidência de interesses diversos exigem certa adequação, que, aparentemente, será possível somente por meio da flexibilização da privacidade a uma realidade incômoda, porém necessária.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> <a href="https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ronaldolemos/2021/08/apple-e-o-paradoxo-da-privacidade.shtml" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ronaldolemos/2021/08/apple-e-o-paradoxo-da-privacidade.shtml</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> STJ: RMS 60531 RO 2019/0099392-7, publ. 17/12/2020; AgRg no REsp 1871695RO 2020/0095443-3, pub. 10/05/2021; TJ/SP: AC 1035067-65.2017.8.26.0114; AI 2257197-94.2020.8.26.0000, publ. 08/07/2021.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Recomenda-se a leitura da transcrição de audiência pública realizada perante o Supremo Tribunal Federal em razão do ajuizamento da ADI 5527 e ADPF 403, disponível em: <a href="http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audienciasPublicas/anexo/ADI5527ADPF403AudinciaPblicaMarcoCivildaInterneteBloqueioJudicialdoWhatsApp.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audienciasPublicas/anexo/ADI5527ADPF403AudinciaPblicaMarcoCivildaInterneteBloqueioJudicialdoWhatsApp.pdf</a>
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Em Code version 2.0., versão revista e atualizada da clássica obra Code and Other laws of cyberspace, disponível em: <a href="https://tigerprints.clemson.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1183&amp;context=cheer" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://tigerprints.clemson.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1183&amp;context=cheer</a>
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> LEONARDI, Marcel. Fundamentos de Direito Digital, Thomson Reuters Brasil, 2019, p.39.

A Apple e a flexibilização da privacidade

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JOTA

Reacende debates a ferramenta capaz de escanear automaticamente fotos para supostamente combater o abuso infantil

A possibilidade de acionamento do controle parental para monitorar o envio e recebimento de imagens por usuários menores de 18 anos