Diego Nunes

Desde 2013, quando iniciaram manifestações que poderíamos enquadrar como “antipolítica” no sentido de rediscutir em termos radicais o establishment político nacional, várias pautas buscavam a hegemonia, todas com o mote de morte ao sistema por conta da corrupção: crítica aos gastos com as sedes da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016 no Brasil; aumento da tarifa do transporte coletivo; Operação Lava-Jato; Impeachment da presidenta Dilma.
Desde ali começaram a surgir em meio aos uniformes canarinho da Seleção Brasileira fardas camufladas e verde-oliva. Do mesmo modo que não eram jogadores de futebol a protestar, também não vimos grupos castrenses às ruas. Trata-se, na verdade, de núcleos civis com pautas nitidamente antidemocracia, como a volta do regime militar.  Estes grupos começaram a ganhar corpo desde o anúncio de Jair Bolsonaro como candidato a presidência e, desde a sua eleição, passaram a ser o mote principal de alguns dos protestos periódicos aos domingos pela manhã.
No último deles, em pleno 19 de abril (aniversário do Exército Brasileiro) e em meio às ordens locais de isolamento social devido à pandemia de Covid-19, o presidente da república discursou a um destes grupos no Distrito Federal em frente ao quartel-general do Exército, em meio a pedidos como “intervenção militar (com Bolsonaro no poder)”, o “fechamento do STF e do Congresso” e a “volta do AI-5”.
<a href="https://conteudo.jota.info/risco-politico" target="_blank" rel="noopener noreferrer"><img class="aligncenter wp-image-244336 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico.png" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
Diante disso, o Ministério Público Federal pediu, em 20 de abril, a abertura de inquérito junto ao Supremo Tribunal Federal diante da suposta participação de parlamentares, com apoio de empresários, na organização de tais manifestações. Segundo o Procurador-Geral da República, o “Estado brasileiro admite única ideologia que é a do regime da democracia participativa. Qualquer atentado à democracia afronta a Constituição e a Lei de Segurança Nacional”<a href="#_edn1" name="_ednref1">[i]</a>.
O inquérito corre em sigilo sob relatoria do Ministro Alexandre de Moraes, que permitiu o início das investigações em 21 de abril, segundo informação do Supremo Tribunal Federal. O ministro “apontou que a Constituição Federal não permite o financiamento e a propagação de ideias contrárias à ordem constitucional e ao Estado Democrático (CF, artigos 5º, XLIV; 34, III e IV), nem tampouco a realização de manifestações visando ao rompimento do Estado de Direito, com a extinção das cláusulas pétreas constitucionais – voto direto, secreto, universal e periódico; separação de poderes e direitos e garantias fundamentais (CF, artigo 60, parágrafo 4º) –, com a consequente instalação do arbítrio”.
Segundo ele, “são inconstitucionais, e não se confundem com a liberdade de expressão, as condutas e manifestações que tenham a nítida finalidade de controlar ou mesmo aniquilar a força do pensamento crítico, indispensável ao regime democrático. Também ofendem os princípios constitucionais aquelas que pretendam destruí-lo, juntamente com instituições republicanas, pregando a violência, o arbítrio, o desrespeito aos direitos fundamentais. Em suma, pleiteando a tirania”<a href="#_edn2" name="_ednref2">[ii]</a>.
O jornal Valor publicou que o partido Cidadania requereu a inclusão do presidente na investigação<a href="#_edn3" name="_ednref3">[iii]</a>. Mas até o momento, nem a PGR nem o STF se manifestaram sobre a sua inclusão, do que se pressupõe que até o presente momento o Presidente da República não é investigado.
A pergunta que fica é: os manifestantes violaram a Lei de Segurança Nacional? E os tais deputados, empresários e o presidente? Caso sim, em qual delito? Antes disso, porém, gostaria de fazer uma pequena digressão: o que significa ser enquadrado na “Lei de Segurança Nacional”? Do que (e de quem) ela nos protege?
Apesar da lei e do nome dela nos remeterem à ditadura militar – de fato, trata-se de uma lei de transição, fruto de compromisso – os bens jurídicos expressos na Lei nº 7.170/1983 já possuem uma roupagem diferente: “Art. 1º - Esta Lei prevê os crimes que lesam ou expõem a perigo de lesão: I - a integridade territorial e a soberania nacional; II - o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito; III - a pessoa dos chefes dos Poderes da União”.
<blockquote class="jota-article__eye">Trata-se de uma lei penal cujo escopo é proteger a ordem constitucional em seus fundamentos basilares. Somente neste sentido, de tutelar o disposto no art. 1º da Constituição de 1988, é que se poderia considerar a LSN recepcionada em nosso ordenamento jurídico.</blockquote>
Em sentido contrário, juristas do calibre de Lenio Streck<a href="#_edn4" name="_ednref4">[iv]</a>. Seria uma operação semelhante aquela feita com a Lei de Imprensa na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 130. As razões seriam as mesmas. Mas isso seria assunto para uma ADPF que nunca foi intentada. Até lá, resta ficar com Heleno Fragoso, que explicara o advento da lei de 1983 como o fim da doutrina de segurança nacional da ditadura<a href="#_edn5" name="_ednref5">[v]</a>.
Certo que há uma série de questões que estão em desacordo com a atual ordem constitucional. Da parte do Judiciário, o STF, nas poucas vezes em que a lei foi invocada<a href="#_edn6" name="_ednref6">[vi]</a>, conseguiu limitar resquícios da ordem jurídica anterior, como a incomunicabilidade de presos.
Da parte do Legislativo, perderam-se várias oportunidades de se criar uma lei de proteção ao estado democrático para aportarmos na Lei Antiterrorismo de 2016<a href="#_edn7" name="_ednref7">[vii]</a>, com o eterno retorno a leis penais excessivamente abertas. Valeria o esforço parlamentar de modo semelhante ao que foi feito com a nova Lei de Abuso de Autoridade: seria um esforço de política criminal que, ao superar determinadas conjunturas (neste caso, rusgas corporativistas com Judiciário, Ministério Público e polícias; no da LSN, atualmente, contra o Executivo), resolveria um problema de estrutura que é a genética autoritária de tais diplomas legais.
Superada esta digressão, vislumbrar-se-ia, em tese, a possibilidade de aplicação dos seguintes dispositivos da LSN: “Art. 22 - Fazer, em público, propaganda: I - de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social; II - de discriminação racial, de luta pela violência entre as classes sociais, de perseguição religiosa; III - de guerra; IV - de qualquer dos crimes previstos nesta Lei. Pena: detenção, de 1 a 4 anos. § 1º - A pena é aumentada de um terço quando a propaganda for feita em local de trabalho ou por meio de rádio ou televisão. § 2º - Sujeita-se à mesma pena quem distribui ou redistribui: 
a) fundos destinados a realizar a propaganda de que trata este artigo; b) ostensiva ou clandestinamente boletins ou panfletos contendo a mesma propaganda. § 3º - Não constitui propaganda criminosa a exposição, a crítica ou o debate de quaisquer doutrinas. Art. 23 - Incitar: I - à subversão da ordem política ou social; II - à animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e as classes sociais ou as instituições civis; III - à luta com violência entre as classes sociais; IV - à prática de qualquer dos crimes previstos nesta Lei. Pena: reclusão, de 1 a 4 anos”.
<blockquote class="jota-article__eye">Os crimes de propaganda e de incitação estão na fronteira entre os crimes de opinião e de mera conduta. Somente as figuras agravadas preveem alguma conduta de ordem material, analógicos, o que levantaria a discussão sobre interpretação extensiva para a internet.</blockquote>
Não parece muito difícil imaginar que a “intervenção militar”, o “fechamento do STF e do Congresso” e a “volta do AI-5” em manifestações previamente convocadas e realizadas em público com grande número de pessoas (em alguns lugares desrespeitando decretos estaduais e municipais) possam ser enquadradas como “fazer, em público, propaganda de processos [...] ilegais para alteração da ordem política ou social” (art. 22, I, LSN) ou “Incitar à subversão da ordem política ou social [e] à animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e as classes sociais ou as instituições civis” (art. 23, I e II, LSN).
Restariam duas questões: a primeira, sobre o fim especial de agir (o velho “dolo específico”) e a excludente de opinião (art. 22, § 3º, LSN). No primeiro caso, seria a possibilidade de se desclassificar para algum crime comum: “Art. 2º - Quando o fato estiver também previsto como crime no Código Penal, no Código Penal Militar ou em leis especiais, levar-se-ão em conta, para a aplicação desta Lei: I - a motivação e os objetivos do agente; II - a lesão real ou potencial aos bens jurídicos mencionados no artigo anterior”. Ficaríamos com crimes como incitação ao crime e apologia a crime ou criminoso (arts. 286 e 287, CP). Também não seria difícil imaginar isso, quando pensamos na exaltação de figuras que praticaram terrorismo de Estado.
Ainda que sem sentença penal transitada em julgado, vários desses agentes da ditadura merecedores de odes de alguns manifestantes aparecem em casos de condenação do Brasil em tribunais internacionais (p. ex., caso Guerrilha do Araguaia e Wladimir Herzog perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos). O segundo caso, a aceitar a manutenção de enquadramento na LSN, a se ver em um mundo de “pós-verdade” e de “morte das ideologias” seria possível enquadrar tais protestos em alguma doutrina política.
De toda a sorte, esta reflexão iniciou pelo fato de o STF ter sido provocado a se manifestar. Isto se deu pela suposta presença de parlamentares a organizar tais manifestações. Sobre eles – e ao presidente – dificilmente serão impostas quaisquer responsabilidades. Os deputados possuem imunidade parlamentar para expressar suas opiniões (art. 53, CF).
Em caso de crimes “comuns” necessitaria de autorização do congresso para prosseguimento e prisão. Todavia, no direito penal pós-Lava Jato, dado o caso Delcídio Amaral, tal garantia talvez fosse novamente removida. No caso do presidente, restaria compreender se a situação seria tratada como crime comum ou de responsabilidade ou como ambos (art. 86, CF). Se autorizado o prosseguimento, não haveria a possibilidade de prisão antes da responsabilização.
Quem, então, poderia ser enquadrado na LSN? Possivelmente alguns manifestantes anônimos, como ocorrera com jovens contra a Copa em 2013 ou com membros do MST nos anos 2000. E, ao chegar no STF, em recurso ordinário (art. 102, II, b, CF), a jurisprudência restritiva no tema, para desclassificação em crime comum ou absolvição, deveria prevalecer. O que demonstra a necessidade de uma lei de defesa ao estado democrático de direito compatível com a nova ordem constitucional.
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<a href="#_ednref1" name="_edn1">[i]</a> <a href="http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/augusto-aras-pede-ao-stf-abertura-de-inquerito-para-apurar-violacao-da-lei-de-seguranca-nacional">http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/augusto-aras-pede-ao-stf-abertura-de-inquerito-para-apurar-violacao-da-lei-de-seguranca-nacional</a>.
<a href="#_ednref2" name="_edn2">[ii]</a> <a href="http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=441751&amp;ori=1">http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=441751&amp;ori=1</a>
<a href="#_ednref3" name="_edn3">[iii]</a> <a href="https://valor.globo.com/politica/noticia/2020/04/20/pgr-pede-inqurito-contra-ato-que-pediu-ai-5-deputados-podem-ser-investigados.ghtml">https://valor.globo.com/politica/noticia/2020/04/20/pgr-pede-inqurito-contra-ato-que-pediu-ai-5-deputados-podem-ser-investigados.ghtml</a>.
<a href="#_ednref4" name="_edn4">[iv]</a> <a href="https://www.conjur.com.br/2012-nov-13/lenio-streck-razoes-pelas-quais-estado-nao-acadelar">https://www.conjur.com.br/2012-nov-13/lenio-streck-razoes-pelas-quais-estado-nao-acadelar</a>
<a href="#_ednref5" name="_edn5">[v]</a> FRAGOSO, Heleno Cláudio. A nova lei de segurança nacional. Revista de Direito Penal de Criminologia, n. 35, Ed. Forense, Rio de Janeiro, jan.-jun. 1983, p. 60-69. Disponível em:  <a href="http://www.fragoso.com.br/wp-content/uploads/2017/10/20171002195930-nova_lei_seguranca_nacional.pdf">http://www.fragoso.com.br/wp-content/uploads/2017/10/20171002195930-nova_lei_seguranca_nacional.pdf</a>
<a href="#_ednref6" name="_edn6">[vi]</a> <a href="http://www.sbdp.org.br/wp/wp-content/uploads/2019/03/LauraMonografia.pdf">http://www.sbdp.org.br/wp/wp-content/uploads/2019/03/LauraMonografia.pdf</a>
<a href="#_ednref7" name="_edn7">[vii]</a> NUNES, Diego. As iniciativas de reforma à Lei de Segurança Nacional na consolidação da atual democracia brasileira: da inércia legislativa na defesa do Estado Democrático de Direito à ascensão do terrorismo. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 22, p. 265-305, 2014; NUNES, Diego. Nova Lei Antiterrorismo: questões teóricas e práticas. In: DE BEM, Leonardo Schmitt. (Org.). Estudos de direito público: aspectos penais e processuais. Vol. 1. Belo Horizonte: D'Placido, 2018, p. 407-413.

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Os manifestantes, deputados, empresários e o presidente cometeram crime contra o Estado Democrático de Direito?

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