Wesley Bento

Suponhamos a existência de um Estado Constitucional de Direito que distribua competências entre seus entes, órgãos e agentes, mas lhes negue os instrumentos adequados para o exercício dessas atribuições, criando uma competência-fantoche, um jogo de cena que reconhece o dever sem conferir o poder.
Esse cenário hipotético, teoricamente passível de acontecer, não é constitucionalmente tolerado. A Suprema Corte dos Estados Unidos da América, ainda em 1819, no julgamento do caso McCulloch Vs. Maryland, decidiu que a Constituição, ao outorgar função a determinado órgão ou instituição, também lhe confere, implicitamente, todos os meios e poderes inerentes necessários para o desempenho daquela atividade. Essa concepção jurídica é conhecida entre nós como a Teoria dos Poderes Implícitos e o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">Supremo Tribunal Federal</a> do Brasil a tem aplicado reiteradamente nas últimas décadas, com casos paradigmáticos como o reconhecimento do poder cautelar do Tribunal de Contas da União e do poder investigativo do Ministério Público.
No caso da Corte de Contas, é frequentemente mencionado como referência o voto do ministro Celso de Mello, o qual registrou que a atribuição de poderes explícitos ao órgão “supõe que se lhe reconheça, ainda que por implicitude, a titularidade de meios destinados a viabilizar a adoção de medidas cautelares vocacionadas a conferir real efetividade às suas deliberações finais, permitindo, assim, que se neutralizem situações de lesividade, atual ou iminente, ao erário público”.
Já quanto ao <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ministerio-publico">Ministério Público</a>, a maioria do tribunal fez o mesmo silogismo de que quem pode o mais, pode também o menos: se o MP pode propor a ação penal, deve poder conduzir por si a investigação preliminar, também como manifestação dos poderes inerentes à competência constitucional, ainda que não haja omissão, tendo em vista competência constitucional expressa conferida à polícia federal, no parágrafo 1º do artigo 144.
Em tempos presentes, na significativa reforma da Lei de Improbidade Administrativa realizada pela <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14230.htm">Lei 14.230/21</a>, o legislador expressou sua descrença na capacidade de a Fazenda Pública, por seus advogados, ajuizarem as ações de improbidade de forma isenta, cautelosa e suficientemente embasada e, como resultado, optou por suprimir a competência, entregando-a exclusivamente ao Ministério Público. Tal medida apresenta até alguma coerência com a natureza jurídica que a reforma conferiu expressamente à ação, ou seja, repressiva, de caráter sancionatório, destinada à aplicação de sanções de caráter pessoal, com feição aparentemente mais alinhada com o papel constitucional do MP do que com o da advocacia pública.
Em recentíssimo julgamento, porém, o STF apreciou duas ações diretas de inconstitucionalidade (<a href="https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6315635">ADI 7.042</a> e <a href="https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6315955">ADI 7.043</a>) propostas por associações nacionais de advogados públicos e decidiu ser verticalmente incompatível com o texto constitucional usurpar da Fazenda Pública a capacidade de propor ações de improbidade. Com essa decisão, a Corte assegurou a respectiva competência, a ser exercida pela advocacia dos entes, faltando dizer com quais ferramentas se poderá contar para alcançar o desiderato da norma.
É que, apesar do entendimento do STF de que a ação de improbidade não tem natureza “penal”, é fora de dúvida que ela se encontra no seio do direito público sancionador e que algumas reprimendas por ela cominadas podem repercutir mais severamente na vida do indivíduo do que expressiva parte daquelas previstas no <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm">Código Penal</a>.
Por isso, a quem a Constituição outorga atribuição para seu ajuizamento, devem também ser garantidos os meios eficazes para que possa bem desempenhar a função, e eles compreendem, de um lado, a capacidade efetiva de obter as informações suficientes para o ajuizamento de ações bem embasadas; e, de outro, a segurança de que os advogados públicos estarão livres de pressão e não sofrerão represálias pelo exercício da competência constitucionalmente reconhecida.
Não é sem motivo que, de acordo com a Constituição Federal, o Ministério Público detém autonomia funcional, administrativa e financeira; e seus membros são dotados de vitaliciedade e inamovibilidade. Também não é sem propósito que o procurador-geral de Justiça e o procurador-geral da República são necessariamente escolhidos entre integrantes da carreira e que os membros do MP podem promover inquérito civil, expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los; requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial.
Todo esse arcabouço blinda a instituição e lhe confere os utensílios indispensáveis para atuar com destemor e eficiência. E foi esse ponto que faltou ao STF aclarar quando reconheceu ser incumbência da advocacia pública propor as ações de improbidade, ou seja, expor quais os poderes inerentes ou implícitos a Constituição entrega a ela juntamente com o encargo.
Minimamente, a Advocacia Pública — alçada à legitimação paritária com o Ministério Público para esse fim — pode se valer da prerrogativa do artigo 22 da Lei de Improbidade Administrativa até então reservada ao MP, ou seja, instaurar inquérito civil ou procedimento investigativo assemelhado e requisitar a instauração de inquérito policial, pois, sem essas prerrogativas, o órgão jurídico fica despojado de meios para conhecer a verdade dos fatos e fazer um juízo mínimo de adequação da ação de improbidade no caso concreto.
Sob outro enfoque, sem as necessárias garantias, os advogados públicos, especialmente em unidades da federação de menor porte, ficariam vulneráveis à reação dos detentores de poder, a partir de uma proteção constitucional insuficiente para o exercício de função de alta sensibilidade política e institucional, capaz de enfraquecer a missão ao ponto de inviabilizar o poder-dever que a Suprema Corte lhe conferiu.
A solução para esse impasse, que poderia ter vindo por produção legislativa — por meio da <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=354302">PEC 82 de 2007</a> —, cabe vir por interpretação constitucional, de modo a se preencher a lacuna que expõe a Advocacia Pública aos humores do mandatário de plantão. É dizer, quando o STF não apenas admitiu constitucional o ajuizamento de ações de improbidade pela Advocacia Pública, mas considerou inconstitucional o afastamento dessa atribuição, também deve ter considerado — a partir de sua longeva jurisprudência sobre a Teoria dos Poderes Implícitos — que os advogados públicos detêm inerentemente prerrogativas mínimas para o exercício da função, como a vitaliciedade, a inamovibilidade e a independência funcional de seus membros; a autonomia funcional, administrativa e financeira dos órgãos e a exigência de que o chefe seja membro da carreira.
Com esse desenho institucional, fortalece-se a Advocacia Pública como órgão de Estado, que age em cooperação com as demais instituições para a defesa do ente público de múltiplas formas, com eficiência, independência e dignidade.

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JOTA

Sem as garantias e poderes necessários, o exercício da atribuição seria utopia

A ação de improbidade e a Advocacia Pública

Sem as garantias e poderes necessários, o exercício da atribuição seria utopia