Laura Mastroianni Kirsztajn

O dia 8 de janeiro de 2023 entrou para a longa lista de atos e práticas antidemocráticas que ocupam as páginas da história brasileira. Nesse dia, <a href="https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64205792">apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes</a>, levantando bandeiras como a intervenção militar, o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal (STF), e a não aceitação da vitória eleitoral do atual presidente da República.
Para que esse evento não se repita, precisamos compreender que as falhas na proteção à democracia constituem reincidência histórica. Na realidade, 8 de janeiro foi somente o estopim de algo cuja reprodução permitimos desde o início da transição democrática, antes mesmo da Constituição de 1988.
O atual governo adotou algumas medidas após os ataques, <a href="https://www.nexojornal.com.br/ensaio/debate/2023/A-resposta-do-direito-brasileiro-aos-ataques-%C3%A0-democracia">como a aplicação da Lei 14.197 e demais condutas previstas no Código Penal</a>. Entretanto, se pensarmos no âmbito preventivo, o Direito Penal sozinho é incapaz de evitar novas ameaças. Em relação ao STF, o <a href="https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/Inq4923FixaCompetenciaMilitares.pdf">ministro Alexandre de Moraes determinou que a competência para julgar os crimes praticados pelos militares nessa ocasião seria da Justiça Comum, especificamente o STF</a>. Do contrário, tais condutas poderiam ser interpretadas como “crimes militares”, respondendo então à Justiça Militar. Essa medida casuisticamente retirou um dos principais mecanismos de autoproteção que a classe militar garantiu para si com a redemocratização. Entretanto, combater a origem dos ataques significa traçar um problema ainda mais profundo em nossas instituições.
Durante a Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88, os militares reivindicaram a manutenção da Justiça Militar, com prerrogativas novas e antigas.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> Ao passo em que o <a href="https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5980771/mod_resource/content/1/Rizzo%20Eliezer%20-%20De%20Geisel%20a%20Collor%20Forc%CC%A7as%20Armadas%20transic%CC%A7a%CC%83o%20e%20democracia.pdf">Anteprojeto Afonso Arinos atribuía à Justiça Militar a competência de processar e julgar “os militares nos crimes militares definidos em lei”, a Constituição de 1988, ampliando seus poderes, fixou que seriam “os crimes militares definidos em lei”</a> (art. 124). Portanto, venceu a iniciativa que viabiliza o julgamento de civis em determinadas ocasiões, o que só aumenta o escopo de atuação dos militares.
Ainda se tratando da Constituição de 1988, alguns setores militares promovem interpretação equivocada do art. 142, que atribuiria às Forças Armadas um suposto “poder moderador” em relação às instituições democráticas, o que permitiria sua intervenção. Durante a Constituinte, o <a href="http://periodicos.pucminas.br/index.php/Direito/article/view/24616">ministro da Guerra lutou pela inserção desse artigo no texto constitucional, pois seria uma salvaguarda para as Forças Armadas</a>, que, utilizando-se de seu conteúdo ambíguo, adicionaria a doutrina militar para reinterpretá-lo a seu favor. A “doutrina do poder moderador” <a href="http://periodicos.pucminas.br/index.php/Direito/article/view/24616">é propagada entre os militares ao menos desde a Era Vargas</a>, que <a href="http://periodicos.pucminas.br/index.php/Direito/article/view/24616">se fortaleceu e ganhou novos moldes com o golpe de 1964</a>. Assim, como sugere<a href="https://www.nexojornal.com.br/colunistas/2023/H%C3%A1-algo-de-podre-na-Rep%C3%BAblica-do-Brasil-os-militares-e-o-poder"> Schwarcz, é preciso propor Emenda Constitucional para modificar essa norma</a> e afastar enfim intentos golpistas há tanto tempo disseminados.
Segundo o <a href="https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/30922/Relato%cc%81rio%20ICJBrasil%202021.pdf?sequence=1&amp;isAllowed=y">Índice de Confiança na Justiça de 2021</a> (ICJ), as Forças Armadas, com 63%, são a instituição mais confiável para os brasileiros, seguidas da Igreja Católica (53%), das grandes empresas (49%) e da imprensa escrita (47%). Por outro lado, instituições como o Judiciário (40%), a Presidência da República (29%), o Congresso Nacional (12%) e os partidos políticos (6%) contam com percentuais muito menores. O <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ministerio-publico">Ministério Público</a> (45%) e a polícia (44%) têm maior percentual que todas as outras instituições judiciais e políticas, e as igrejas evangélicas, com 38%, perdem somente para o Judiciário, sobrepondo-se em relação a todos os outros poderes políticos.
Esse cenário coloca as Forças Armadas como a instituição pública com melhor imagem perante a população, e outras instituições democráticas como contaminadas por descrédito, o que facilita protestos como aqueles que pedem uma intervenção militar. Ainda, grupos religiosos como a Igreja Católica e as igrejas evangélicas são vistos como mais confiáveis que representantes eleitos. Cabe citar que <a href="https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/30922/Relato%cc%81rio%20ICJBrasil%202021.pdf?sequence=1&amp;isAllowed=y">as Forças Armadas e a Igreja Católica sempre estiveram no topo do ICJ nos anos do estudo (2011, 2013, 2015, 2017 e 2021)</a>.
Nesse contexto, reforçando a presença de setores militares negacionistas nas instituições, o <a href="https://www.nexojornal.com.br/colunistas/2023/H%C3%A1-algo-de-podre-na-Rep%C3%BAblica-do-Brasil-os-militares-e-o-poder">governo Bolsonaro montou o maior ministério militar</a>, sendo mais robusto que o da ditadura de 1964. <a href="https://www.nexojornal.com.br/colunistas/2023/H%C3%A1-algo-de-podre-na-Rep%C3%BAblica-do-Brasil-os-militares-e-o-poder">Foram empregados mais de 6.000 militares na Administração Pública e tantos outros tornaram-se figuras públicas</a>, disseminando discursos antidemocráticos e que descredibilizam o processo eleitoral.
Diante desse cenário, como agir? A principal resposta é a consolidação da democracia através da justiça transicional. <a href="https://bibliodigital.unijui.edu.br:8443/xmlui/bitstream/handle/123456789/6287/Carla%20Doro%20de%20Oliveira.pdf?sequence=1&amp;isAllowed=y">Um processo de transição em regra segue quatro passos</a>: a reparação simbólica e pecuniária, a valorização da verdade e a reconstrução da memória, a reforma para a democratização das instituições que apoiaram ou foram coniventes com as violações aos direitos humanos e a regularização da justiça por meio da responsabilização individual.
Em caminho contrário, editamos e mantivemos a Lei de Anistia, que<a href="https://revistaperseu.fpabramo.org.br/index.php/revista-perseu/article/view/267"> foi a primeira iniciativa do esquecimento como norma, criando uma “legalidade autoritária negacionista”</a> que influenciou toda a democratização. Tal arranjo foi apoiado por militares, pela elite judiciária e demais atores políticos. Seguimos então uma<a href="https://revistaperseu.fpabramo.org.br/index.php/revista-perseu/article/view/267"> “cadeia de negações”</a>, com a <a href="https://revistaperseu.fpabramo.org.br/index.php/revista-perseu/article/view/267">negação sistêmica das violências e a obstrução de seu conhecimento.</a> O passado foi enterrado como uma recordação que ameaçaria o desenvolvimento da democracia e <a href="https://bibliodigital.unijui.edu.br:8443/xmlui/bitstream/handle/123456789/6287/Carla%20Doro%20de%20Oliveira.pdf?sequence=1&amp;isAllowed=y">o silêncio foi imposto para atingir uma suposta pacificação social</a>.
Com ênfase na reparação, tivemos uma <a href="https://bibliodigital.unijui.edu.br:8443/xmlui/bitstream/handle/123456789/6287/Carla%20Doro%20de%20Oliveira.pdf?sequence=1&amp;isAllowed=y">construção fragmentária da memória através de narrativas individuais</a>. Desse modo, várias “verdades” conviveram, o que beneficiou o negacionismo. <a href="https://bibliodigital.unijui.edu.br:8443/xmlui/bitstream/handle/123456789/6287/Carla%20Doro%20de%20Oliveira.pdf?sequence=1&amp;isAllowed=y">A cultura do esquecimento levou à cultura da violência</a>, posto que não cessamos em reproduzir as violências do passado e não trabalhamos para fortalecer sua memória.
O negacionismo ocupa nossas instituições: em 2010, descobriu-se que <a href="https://bibliodigital.unijui.edu.br:8443/xmlui/bitstream/handle/123456789/6287/Carla%20Doro%20de%20Oliveira.pdf?sequence=1&amp;isAllowed=y">os colégios militares adotavam livros didáticos que ensinavam a “louvar a ditadura”, sendo denominada “revolução democrática”. Até essa data as Forças Armadas celebravam o aniversário do golpe militar de 1964</a>.
Até 2014, com a divulgação do relatório da Comissão Nacional da Verdade criada pelo Poder Executivo, <a href="https://bibliodigital.unijui.edu.br:8443/xmlui/bitstream/handle/123456789/6287/Carla%20Doro%20de%20Oliveira.pdf?sequence=1&amp;isAllowed=y">o único relatório no país que investigava a verdade da ditadura militar não partiu do Estado, mas sim do projeto da sociedade civil “Brasil: Nunca Mais”</a>. Os espaços de memória sobre a ditadura no Brasil são <a href="https://bibliodigital.unijui.edu.br:8443/xmlui/bitstream/handle/123456789/6287/Carla%20Doro%20de%20Oliveira.pdf?sequence=1&amp;isAllowed=y">em grande parte afastados do público, em locais secretos, arquivos destruídos e prisões clandestinas</a>. Nesse sentido, não constituímos a nossa memória coletiva, assim como não criamos nossas próprias lembranças sobre esses fatos. Assim, não nos tornamos testemunhas da história. A <a href="https://bibliodigital.unijui.edu.br:8443/xmlui/bitstream/handle/123456789/6287/Carla%20Doro%20de%20Oliveira.pdf?sequence=1&amp;isAllowed=y">maioria dos memoriais existentes são iniciativas locais e sem repercussão midiática</a>, expondo a inércia do Poder Público.
Poderíamos, por exemplo, ter criado um <a href="https://bibliodigital.unijui.edu.br:8443/xmlui/bitstream/handle/123456789/6287/Carla%20Doro%20de%20Oliveira.pdf?sequence=1&amp;isAllowed=y">programa de depuração administrativa daqueles que cometeram abusos de direitos humanos, determinando assim seu afastamento de cargos públicos, além de impor mudanças nas práticas institucionais das forças policiais</a> e seu processo seletivo, em combate direto ao negacionismo. Optamos pela continuidade das violências.
Existe a ideia de que a ausência de um golpe das Forças Armadas representaria que estamos diante de uma democracia consolidada. Na realidade, isso pode ser indício de uma democracia tão frágil que aceita imposições militares por receio de sofrer um golpe. Os civis podem até governar, mas sempre supervisionados por militares nos assuntos que lhes convêm.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
Após 1988, nossa democracia recebeu alta, mas não curou a doença e somente se anestesiou para mascarar os sintomas. Com tanta anestesia, 8 de janeiro parece inesperado, mas é apenas o suplício de um corpo adoecido.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a>ZAVERUCHA, Jorge. FHC, Forças Armadas e Polícia: Entre o Autoritarismo e a Democracia. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2005. v. 01. 285p, p. 54.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a>ZAVERUCHA, Jorge. FHC, Forças Armadas e Polícia: Entre o Autoritarismo e a Democracia. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2005. v. 01. 285p, p. 49-50.

Manifestantes invadem Congresso, STF e Palácio do Planalto.

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JOTA

Após 1988, nossa democracia recebeu alta, mas não curou a doença e somente se anestesiou para mascarar os sintomas

8 de janeiro nunca mais: olhando para o passado para solucionar o presente

Após 1988, nossa democracia recebeu alta, mas não curou a doença e somente se anestesiou para mascarar os sintomas