Carlos Almeida José

No último dia 10, a 4ª Turma do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stj">STJ</a> julgou o Recurso Especial 1.951.988/RS, decorrente de litígio entre uma grande prestadora de TV por assinatura e uma consumidora. Esta, moradora do município de Giruá (RS), alega que estava sendo cobrada indevidamente por decorrência de outros dois contratos em seu nome, ambos, porém, com serviços prestados em Amélia Rodrigues (BA).
Tanto a 2ª Vara Judicial da Comarca de Giruá com5o o próprio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/tjrs">TJRS</a>) assentiram parcialmente com a pretensão da consumidora, reconhecendo à prestadora de TV por assinatura o dever de restituir sua cliente pelos débitos cobrados indevidamente, desde que observado, contudo, o prazo prescricional trienal por aplicação da norma previsto no art. 206, §3º, IV, do CC/2002:
<blockquote class="jota-article__citation">Art. 206. Prescreve [...] § 3º Em três anos: [...] IV - a pretensão de ressarcimento de enriquecimento sem causa;</blockquote>
Irresignada, a consumidora interpôs o Especial para que fosse aplicado, ao caso, o prazo prescricional decenal, por força do art. 205 do CC/2002:
<blockquote class="jota-article__citation">Art. 205. A prescrição ocorre em dez anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor.</blockquote>
Eis o ponto jurídico controverso enfrentado pelo tribunal, definir, afinal, se ao caso aplicava-se o prazo trienal do art. 206, § 3º, IV ou o decenal do art. 205, ambos do Código Civil. Como bem sumarizou a ministra <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/laurita-vaz">Laurita Vaz</a> em seu voto relatório:
<blockquote class="jota-article__citation">“Portanto, no presente recurso busca-se definir o prazo prescricional aplicável à pretensão de ver condenada a ré na obrigação de restituir valores decorrentes de contrato de TV por assinatura, notadamente em razão da cobrança indevida de ponto extra e de taxa de licenciamento de software e segurança de acesso".</blockquote>
Em sua decisão, a ministra, relatora para o caso, vencedora por unanimidade, deu provimento ao recurso da consumidora para que fosse aplicado o prazo prescricional decenal, isto é, aquele previsto no art. 205 do CC/2002. Para tanto, ela concluiu que não seria o caso de enriquecimento sem causa, vez que tal instituto demandaria a “inexistência de causa jurídica” e, no caso em exame, a cobrança, ainda que indevida, deu-se da existência da relação contratual relativa à prestação de serviço de TV por assinatura via satélite. Por fim, a decisão também se arvora no precedente EAREsp 750497/RS, cuja ementa assim dispõe:
<ol start="4">
<li>
<blockquote class="jota-article__citation">Embargos de divergência conhecidos e providos, de sorte a vingar a tese de que a repetição de indébito por cobrança indevida de valores referentes a serviços não contratados, promovida por empresa de telefonia, deve seguir a norma geral do lapso prescricional (10 anos – art. 205 do Código Civil), a exemplo do que decidido e sumulado (Súmula 412/STJ) no que diz respeito ao lapso prescricional para repetição de indébito de tarifas de água e esgoto. (EREsp 1523744/RS, Rel. Ministro OG FERNANDES, CORTE ESPECIAL, julgado em 20/02/2019, DJe 13/03/2019)</blockquote>
</li>
</ol>
Da leitura do acórdão citado, vê-se que o Tribunal da Cidadania, em 2019, ao julgar o EREsp 1523744/RS, valeu-se da analogia: considerando por premissa que não haveria regra para os contratos de telefonia fixa, aplica-se o prazo prescricional decanal, utilizado para as ações de repetição de indébito de tarifas de água e esgoto. E a ratio decidendi desta recisão foi replicada agora pela 4ª Turma, diante do REsp nº 1.951.988/RS.
O que causa espanto nesta história toda é que, em momento algum, seja em 2022 ou em 2019, o tribunal se atentou para o fato de que a matéria já está normatizada em escala supralegal desde 2014, com a edição do Regulamento Geral de Direitos do Consumidor de Serviços de Telecomunicações (RGC), aplicável aos quatro grandes serviços de telecomunicações de interesse coletivo, dentre eles a TV por Assinatura (SeAC<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>) e a telefonia fixa (STFC)<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
O RGC, norma especial aplicável a tais espécies de contrato prevê em seu artigo 81 que o prazo para contestação de cobrança indevida pelo consumidor é de três anos. Vejamos:
<blockquote class="jota-article__citation">Art. 81. O Consumidor, no prazo de 3 (três) anos, pode contestar junto à Prestadora valores contra ele lançados, contado o prazo para a contestação a partir da data da cobrança considerada indevida.</blockquote>
Por óbvio, o tribunal julga a causa como ela se apresenta a ele e se a aplicabilidade do RGC no caso em concreto não foi aventada por qualquer das partes, poderia se questionar se sua aplicabilidade poderia ser o ponto central da ratio decidendi do julgado.
O que se pretende demonstrar aqui é que o desconhecimento das normas setoriais levam a decisões judiciais como as supracitadas, que ignoram en passant, a existência de arcabouçou normativos robustos erigidos pelas agências regulatórias os quais buscam, sobretudo, dar segurança jurídica a relações jurídicas em setores estratégicos da nossa economia – como as telecomunicações.
Ao invés de pacificar o entendimento jurídico quanto a questão, o acórdão do REsp nº 1.951.988/RS deixa como legado a dúvida jurídica: afinal, os consumidores de TV por assinatura podem contestar a cobrança indevida no prazo decenal, por força do art. 205/CC ou no prazo trienal, por força da norma específica do art. 81 do RGC? E como as prestadoras devem reagir diante desta decisão, deverão provisionar por dez anos os valores recolhidos indevidamente para caso sejam contestados pelo consumidor?
O ponto a ser firmado aqui é que a opção do legislador constituinte à redação ao art. 21, XI da Constituição Federal<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> foi por delegar à União, por meio de agência regulatória, o poder para organizar a prestação dos serviços de organização.
É em atenção a tal comando que, por força da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9472.htm">Lei Geral das Telecomunicações</a>, a afamada Lei 9.472/1997 criou a Agência Nacional de Telecomunicações (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/anatel">Anatel</a>), dando-lhe poderes normativos, vide art. 19, X:
<blockquote class="jota-article__citation">Art. 19. À Agência compete adotar as medidas necessárias para o atendimento do interesse público e para o desenvolvimento das telecomunicações brasileiras, atuando com independência, imparcialidade, legalidade, impessoalidade e publicidade, e especialmente: [...] X - expedir normas sobre prestação de serviços de telecomunicações no regime privado;</blockquote>
Vê-se, portanto, que, talvez sem querer, ao decidir a questão jurídica relativa a um setor regulado com base tão somente na interpretação do Código Civil, o STJ acabou por ignorar o mandamus constitucional de que, em específico, as relações jurídicas daquele setor fossem normatizadas por agência regulatória específica, com qualificação técnica para edição de regulamentos especiais. E, por fim, resta enfraquecida a força congente de tal norma quando ela sequer é aventada nos Tribunais Superiores.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Serviço de Acesso Condicionado
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Serviço de Telefonia Fixa Comutado
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> XI - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais;

STJ fachada

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JOTA

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