Paulo Fernando Pinheiro Machado

<blockquote class="jota-article__quote">“Conheça o verdadeiro valor do tempo; agarre, segure e aproveite cada momento dele. Sem ociosidade, sem delongas, sem procrastinação; nunca deixe para amanhã o que você pode fazer hoje.”
- Lorde Chesterfield</blockquote>
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A diplomacia é, antes de mais nada, uma atividade simbólica. Nas relações entre Estados soberanos, cada gesto possui um significado preciso e nada é feito de maneira improvisada ou espontânea. A aderência estrita ou não ao protocolo, a posição fixa de um visitante na sala, a língua de comunicação, tudo, enfim, se envolve de um significado multifacetado, que ora oculta ora desvela as relações de poder entre os atores envolvidos. Em diplomacia, a forma é uma substância por e em si mesma.
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Muitas vezes, o exercício simbólico do poder se dá por influenciar os ritmos de vida e de organização do outro. A moda, a culinária, a circulação das idéias e todos os elementos de “soft power” denotam a constituição de relações centro-periferia, nas quais a forma e a dinâmica são ditadas a partir de um ponto nodal mais forte para outros pontos mais fracos de uma rede de conexões. Um eloquente exemplo desse exercício de poder simbólico é a edição de um calendário, a partir do qual se organiza mesmo a estrutura do tempo e se dita o ritmo e o sentido da vida daqueles que por ele se regem e se ajustam.
<blockquote class="jota-article__eye">O calendário estrutura uma forma de vida cíclica, denotando o sentido dos eventos cósmicos refletidos no cotidiano das pessoas. Ao longo da história, a adoção de um determinado calendário tem sido, invariavelmente, um fenômeno diplomático.</blockquote>
Tome-se, cara leitora, o exemplo do Calendário Juliano, estabelecido por Júlio César em 46 a.C. como uma reforma do Calendário Republicano de Roma. O significado político e diplomático do evento não pode ser minimizado. A edição do Calendário Juliano se deu no contexto da conquista romana do Egito, celeiro do mundo conhecido de então e primeiro Estado a adotar um calendário no modelo solar, mais adequado para prever as cheias do Nilo. Os outros povos organizavam suas vidas com base em calendários lunares ou luno-solares. César envolveu-se na guerra pela sucessão ptolomaica do Egito, em 48 a.C., quando conheceu Cleópatra e a apoiou contra as pretensões do irmão dela. A edição do Calendário Juliano, assim, foi um gesto diplomático de aproximação de Roma com o Egito, que unificou a organização do ritmo de vida, tanto público quanto privado, por todo o mundo romano com base no modelo ptolomaico e que vigeu praticamente inconteste até 1582 d.C. Tamanha a sua influência, que ele continua ainda a ser usado, por exemplo, por algumas alas da Igreja Ortodoxa e pelos povos berberes. Um enorme tributo à importância do Egito na antiguidade e, também, à beleza de Cleópatra.
O Calendário Juliano, contudo, padecia de um erro de cálculo astronômico. Ele estabeleceu um ano regular de 365,25 dias ao longo de 12 meses, com um dia subtraído do mês de fevereiro a cada 4 anos. Esse erro de cálculo – uma vez que o movimento de translação da terra ao redor do sol é ligeiramente mais curto, de cerca de 365,2422 dias -, fazia com que o calendário perdesse cerca de 4 dias a cada século. Essa disjunção do calendário, por volta do ano 1500 da era moderna, havia se tornado demasiado evidente, fazendo com que o equinócio, tradicionalmente previsto para 21 de março, estivesse tão desajustado que havia se tornado extremamente difícil calcular a data móvel da Páscoa, para não mencionar as previsões mais gerais de plantio, colheita e, como não poderia deixar de ser, recolhimento de impostos.
Uma reforma era tão necessária, que parecia ser um ponto unânime da comunidade científica da época. Em 24 de fevereiro de 1582, então, o Papa Gregório XIII tomou a iniciativa e editou a bula Inter Gravíssimas, pela qual se instituía um novo calendário, batizado de “Gregoriano”, em homenagem a ele. O Calendário Gregoriano era mais acurado e corrigia as falhas do Calendário Juliano, adiantando, na sua adoção, 10 dias para dar conta dos lapsos da contagem anterior. A reforma, ainda que fundamentada em uma clara necessidade técnica, gerou um intenso furor diplomático.
Era a época das chamadas “Guerras de Religião” na Europa. Entre 1524 e 1648 o continente europeu foi assolado por uma série de conflitos armados e guerras civis no contexto da Reforma Protestante. A adoção do Calendário Gregoriano, nesse contexto, era, simbolicamente, um ato de submissão à autoridade do papado. Gregório XIII era, de fato, um gênio diplomático. A adoção do calendário pelos países católicos se deu via instruções diplomáticas do Vaticano para os Núncios Apostólicos que firmaram Concordatas com os príncipes locais.
Mesmo na França, “Filha Primogênita da Igreja”, houve conflitos locais entre os huguenotes e os católicos, que justificaram gestões diplomáticas do Vaticano junto a Paris para conter a violência. Os países ortodoxos, bem como a maioria dos países protestantes, obviamente, recusaram inicialmente a adoção do Calendário Gregoriano, por temor de que se tratasse de uma manobra diplomática do Vaticano para reestabelecer o catolicismo em seus estados.  Há relatos de que a Rainha Elizabete I da Inglaterra era favorável à mudança por motivos técnicos, mas diante da oposição interna, resolvera não adotar o novo calendário. A política geralmente se sobrepõe à ciência.
Como sói, cara leitora, os fatos falam mais alto do que as versões. As razões matemáticas para a mudança eram sólidas e o uso concomitante de diferentes calendários gerou um fardo pesado para diplomatas e mercadores, especialmente pela necessidade de registro de suas atividades pela chamada “contabilidade de dupla entrada”. Era preciso registrar, para cada tratado, para cada comunicação diplomática e para cada negócio internacional, duas datas, uma referente ao Calendário Juliano e outra referente ao Calendário Gregoriano. Pode-se imaginar a profusão de erros, intencionais ou não. Ironicamente, os países mais afetados eram justamente os protestantes, mais expostos ao comércio internacional. Para a Inglaterra, potência dominante da época, a “dupla entrada” era um aborrecimento burocrático particularmente penoso, já que o seu império ultramarino estava em franca expansão.
No Império Britânico, de fato, a situação se arrastou por exatos 169 anos. Até que em 25 de fevereiro de 1750, o Parlamento adotou a proposta de Lorde Chesterfield para que a Grã-Bretanha e a suas colônias adotassem o novo Calendário Gregoriano. Repare, cara leitora, que a proposta tinha uma autoria eloquente. Lorde Chesterfield era um dos principais diplomatas da sua época. Francófilo, Chesterfield servira em Paris, quando fez amizade com os principais pensadores iluministas do momento, como Montesquieu e Voltaire. Duas vezes embaixador na Haia, foi um dos articuladores do Tratado de Viena de 1731, que evitou uma guerra dinástica na Europa e selou uma aliança anglo-austríaca que duraria por um quarto de século, até 1756. Lorde Chesterfield, em 1750, era um dos líderes do partido Whig, de orientação liberal, e era famoso por seus escritos mordazes, no estilo voltairiano.
A adoção do Calendário Gregoriano pelo Império Britânico era uma medida técnica de urgência para colocar a potência dominante da época em linha com o padrão internacional, já que, tamanho era o descompasso que quando em Londres era fevereiro de 1750, no resto da Europa já se estava em 1751. Mas, além disso, era também um ato de audácia, que somente Chesterfield teria a coragem – e o tato diplomático - para propor e passar.
O “Chesterfield´s Act”, como a legislação tornou-se conhecida, previa que, para ajustar as datas de ambos os calendários, dentre outras medidas, a data de 2 de setembro de 1752 seria seguida diretamente pela data de 14 de setembro de 1752. O dia 3 de setembro de 1752, assim, jamais existiria. Nem os 10 dias subsequentes, para o mesmo efeito. A proposta, como seria de se esperar, encontrou imensa resistência por parte do Partido Conservador, os Tories. Alguns relatos históricos, inspirados na gravura de William Hogarth que ilustra este artigo, dão conta de que teria havido uma intensa revolta popular na Inglaterra. A imagem ilustra uma festa do Partido Whig na qual se pode ver uma revolta dos Tories pela janela. Repare, cara leitora, na faixa sobre a qual pisa um dos comensais, no canto inferior direito da tela. Nela pode-se ler “devolvam nossos 11 dias”. O “Chesterfield´s Act” foi acusado não apenas de ser “papista”, mas de, efetivamente, subtrair 11 dias da vida das pessoas! A diplomacia dos calendários foi um dos principais pontos das disputadas eleições-gerais de 1754, que foram um verdadeiro caos e selaram a hegemonia do Partido Whig com 71,3% dos votos, praticamente excluindo os tories da vida pública por quase um século. Veja, cara leitora, que a politização do erro, contra toda a evidência científica, é uma constante da história humana.
Há quem, contudo, não se deixa abater e busca tirar sempre uma vantagem de tudo. W. M. Jamieson<a href="applewebdata://9AAE51BA-7379-43A2-89AB-FDBE4E1E2F62#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> relata a história de um senhor chamado William Willett que teria apostado que dançaria por 12 dias e 12 noites. Pois bem, no dia 2 de setembro de 1752 Willett saiu dançando pela cidade madrugada adentro e, na manhã seguinte, ganhou a aposta, já que, oficialmente, já se estava no dia 14 de setembro de 1752. O leão tampouco aliviou a mordida: o ano fiscal britânico, pelo Calendário Juliano, iniciava-se em 25 de março. Quando da adoção do Calendário Gregoriano, em 1752, para evitar a perda de arrecadação de 11 dias, o ano fiscal foi estendido até 5 abril de 1753. Em 1800, que seria um ano bissexto no Calendário Juliano, houve nova extensão de mais um dia, para a data de 6 de abril, que é até hoje o início do ano-fiscal britânico. A “Lei de Gérson”, ainda mais nas mãos do governo, é implacável.
A história da diplomacia dos calendários é um exemplo eloquente da inafastabilidade do elemento simbólico que há em todo ato de relações internacionais. Demonstra também as diferenças entre o tempo da diplomacia e o tempo da política, o que torna a adoção interna de um padrão internacional um processo, muitas vezes, assaz doloroso. Mesmo quando o ato diplomático está embasado em sólidas considerações técnico-científicas, as pessoas têm a tendência de sobrepor o elemento simbólico – o aspecto das relações de poder e influência – aos ditames da razão. O ser humano parece feito para viver no mito. Na caverna, “a verdade não é literalmente nada além das sombras das imagens.” Quero meu 3 de setembro de volta.
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<a href="applewebdata://9AAE51BA-7379-43A2-89AB-FDBE4E1E2F62#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Murders Myths and Monuments of North Staffordshire. Londres: Westmid, 1979.

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JOTA

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