FGV Direito SP Especial para o JOTA

Em entrevista, o professor e diretor da FGV DIREITO SP Oscar Vilhena Vieira fala da necessidade de se promover as reformas política, tributária e da segurança pública e das dificuldades no encaminhamento desses temas pelos governos e pelo Poder Legislativo.
FGV DIREITO SP - Desde a Constituição Federal de 1988 foram feitas várias reformas, mas algumas outras, também importantes, deixaram de ser feitas. Quais são as reformas que devem ser feitas e que o próximo governo federal terá que encarar?
OSCAR VILHENA VIEIRA - A Constituição brasileira tem uma característica que é a sua ambição. Ela regulou muitos setores da vida brasileira, seja econômica, política e social, distintamente de uma Constituição clássica, que se limita a organizar o sistema de separação de poderes e a estabelecer alguns direitos. A Constituição brasileira, neste sentido, é ubíqua, está em todo lugar. Ela regulou todos os setores, e isso leva naturalmente a um processo de constante atualização para atender as exigências da sociedade brasileira. Ao longo desses 25 anos percebemos que algumas opções tomadas em 1988 ou eram inadequadas desde a sua origem ou se tornaram inadequadas face às mudanças do contexto econômico brasileiro ou da conjuntura internacional. Ao longo especialmente dos governos de Itamar Franco, de Fernando Henrique e, em alguma medida, do governo Lula, estabeleceu-se uma agenda bastante ambiciosa de reforma da Constituição.
Mas há ainda três áreas essenciais onde o modelo adotado em 1988 não atende a contento as exigências da sociedade brasileira neste momento, mas que nenhum governo foi capaz de reformar. O primeiro deles é o sistema de segurança pública. Em 1988 a decisão foi pela manutenção do modelo concebido durante o regime militar, onde a segurança pública é basicamente responsabilidade dos Estados, que obrigatoriamente deverão enfrentá-la por intermédio de duas polícias, uma civil e uma militar. Nesses 25 anos, o aumento da criminalidade foi crescente no Brasil, com importantes exceções,  por uma série de razões: seja porque o país passou por um processo de ampla migração do meio rural para o urbano, seja porque houve desindustrialização em muitas das grandes cidades e o contexto da periferia dessas cidades se tornou mais violento, seja porque o padrão e consumo de drogas aumentou. Esse modelo de polícia bipartida, em que uma compete com a outra, não tem se demonstrado minimamente suficiente para enfrentar a dimensão assumida pela criminalidade em nossos dias. Isso pode ser mensurado de diversas maneiras, seja pelo número de 56 mil mortes por homicídio no ano passado, seja pelo fato de o Brasil ter passado da condição de um mero corredor de drogas para um país que está em segundo lugar no índice de consumo de cocaína. Estou falando apenas de dois indicadores, mas poderia citar outros. O regime democrático e o modelo institucional criado em 1988 em nada contribuiu para a redução da criminalidade. As polícias são claramente antiquadas, a formação desses policiais é inadequada para o combate à criminalidade nos dias de hoje, as polícias são muito pouco republicanas, não têm a confiança da população e isso gera um círculo vicioso: a população não confia na polícia, a polícia não tem apoio e informações da população, não consegue prover serviços a contento e as pessoas começam a fazer justiça com as próprias mãos, o que aumenta a violência e ela se retroalimenta. Sem dúvida nenhuma nós precisamos fazer uma reforma e talvez criar uma nova polícia. Não é fácil fazer isso, mas certamente a Constituição Federal impede, como está disposto nela, que os Estados façam experiências institucionais que talvez sejam muito positivas. Por exemplo, nos poderíamos ter uma polícia metropolitana de ciclo único nas grandes cidades. Ou seja, uma polícia de ciclo único que faça prevenção, investigação, inquérito, planejamento, que é como funciona a polícia americana, a inglesa e a de muitos países. Aqui temos uma polícia cindida, uma faz uma coisa e outra faz a outra. A Constituição Federal poderia, sem criar uma obrigatoriedade para que todos os Estados sejam obrigados a reformar suas policias imediatamente e em uníssono, estabelecer princípios básicos a partir do qual cada Estado poderia conceber um modelo que lhe fosse mais adequado. Essa é uma reforma urgente que temos que fazer.
FGV DIREITO SP - Isso somente poderia ser feito com a reforma da Constituição?
OSCAR VILHENA VIEIRA - Hoje a Constituição engessa. Como há uma diversidade muito grande na União, o sentido da reforma seria flexibilizar um pouco a possibilidade de que Estados pudessem montar polícias mais adequadas para as suas necessidades. É evidente que a polícia na Amazônia tem que ser diferente da de São Paulo. O que parece consenso hoje é que polícias de ciclo único são indispensáveis para se obter maior eficiência. E a Constituição impede que ela seja de ciclo único.
FGV DIREITO SP - Além do ciclo único, que outras reformas na segurança pública são necessárias?
OSCAR VILHENA VIEIRA - Um outro ponto necessário quando se trata da reforma da segurança pública é a ausência de mecanismos mais consistentes de controle da atividade policial, da mesma forma que na reforma do Judiciário se criou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Seria urgente criar um conselho nacional de polícia, que seria nacional, portanto composto por representantes das polícias estaduais, do parlamento, da cidadania, etc., que pudesse estabelecer as macro políticas de segurança, com uma corregedoria subsidiária às corregedorias estaduais. Então esses são os dois componentes principais: a flexibilização para que os Estados possam adequar a parâmentros mais democráticos e republicanos e uma instância de coordenação e fiscalização mais efetivas.
FGV DIREITO SP – A segurança pública é sempre um tema presente nas campanhas eleitorais. No entanto, nunca se tentou mexer no atual sistema. Qual o papel de cada instância de governo nessa reforma?
OSCAR VILHENA VIEIRA – Por que nunca se consegue reformar a polícia, mesmo que todas as pesquisas de opinião feitas no Brasil apontem que a questão de segurança gera enorme insatisfação? Dois são os motivos fundamentais. O primeiro é que não há consenso sobre qual  modelo seguir. Por isso digo que a alternativa é criar uma diretriz constitucional que permita que vários modelos sejam testados. É o que se chama de experimentalismo institucional. Não é factível ou desejável que num país como o nosso se estabeleça um modelo único. O segundo motivo é que as polícias estão entre as corporações policiais  mais poderosas em seus respectivos Estados. Os governadores são absolutamente dependentes das polícias para manter a ordem pública, para lidar com o sistema penitenciário e em algumas circunstâncias são até refém das polícias. Então é muito difícil que os próprios Estados sejam capazes de propor reformas que afetem interesses das corporações. Da mesma forma, é também muito difícil que uma reforma na polícia saia do Senado, que é composto por governadores e por candidatos a governador. Só a Presidência da República tem essa capacidade, porque não é diretamente responsável pelas polícias. Me parece que esta é a razão política pela qual até hoje não conseguimos dar um passo rumo à reforma, embora a questão da segurança pública seja um problema há 20 anos.
FGV DIREITO SP – O debate da segurança pública em um cenário eleitoral ainda precisa amadurecer?
OSCAR VILHENA VIEIRA - Toda vez que se fala em segurança, as propostas se concentram no aumento das penas, o que ao meu ver é uma reposta meramente: vamos ser mais duros. Nunca em nenhuma campanha presidencial até hoje o tema da reforma das instituições entrou na pauta. E o Brasil tem um problema muito maior de deficiência das instituições do que de falta de rigor da lei. É aquela velha frase: o tamanho da pena é menos importante do que a certeza da pena. E a certeza da pena não é um problema da lei, é da instituição que aplica a lei. O problema de violência, que há 20 anos era localizado nas principais capitais do sul do país, passou para um outro patamar. A criminalidade violenta está difusa em grande parte das cidades brasileiras, demostrando que se tornou um problema efetivamente  nacional. Por isso é necessário o engajamento dos presidentes na questão da segurança.
FGV DIREITO SP - Mas novamente as campanhas não estão focando nessas reformas institucionais...
OSCAR VILHENA VIEIRA – Exatamente. Se se quer ser duro, é preciso corrigir o que não está funcionando: polícias que são altamente ineficientes e violentas e que, ao serem violentas, geram uma enorme desconfiança na população. Quais os principais elementos para se apurar e punir um crime? A informação. E qual a única forma de prevenir um crime?  Informação.  E quando se tem boa informação? Quando a população confia na polícia, especialmente a população que está próxima do crime. Quando ela é violenta, corrupta, a última coisa que a pessoa vai fazer é contar à polícia sobre um crime. Todos os processos de reformas das polícias que foram bem sucedidos passaram por fazer a polícia próxima da população. Reformar a polícia é criar uma polícia mais eficiente e menos arbitrária para que a população comece a confiar nela.
FGV DIREITO SP – Que outras reformas amplas ainda estão pendentes no Brasil?
OSCAR VILHENA VIEIRA - Nós temos duas outras reformas que são mais difíceis ainda de serem feitas, que são a reforma tributária e a reforma política. A reforma política é tradicionalmente dificílima de ser feita em qualquer país do mundo, porque aqueles que se beneficiam de um determinado sistema político, que são eleitos por um sistema partidário, por um sistema eleitoral – e portanto são bem sucedidos –, dificilmente vão fazer uma reforma contra esse sistema. É um negócio complicado na literatura do sistema político. Quando se faz? Normalmente quando se tem um problema de crise de legitimidade muito forte, ou por escândalos de corrupção, ou por problemas de falta de participação da população, mas geralmente há uma questão de falta legitimidade grave. Só aí o corpo político se sente pressionado para promover uma  reforma. É algo que não faz com boa vontade, mas que pode fazer com a finalidade de sobreviver.
FGV DIREITO SP – Neste caso, é difícil que a reforma venha do Poder Legislativo?
OSCAR VILHENA VIEIRA - É como trocar o pneu com o carro andando. Junho de 2013 provocou uma espécie de curto circuito, demonstrou que partidos políticos e Congresso Nacional não estavam sendo os canais legítimos de veiculação dos interesses da sociedade. Há um sinal claro de que a sociedade brasileira não anda contente com o modelo, com o sistema político, é evidente que isso abre a possibilidade para aprovar uma reforma. O fato de termos dois candidatos provenientes de estruturas partidárias mais fortes não facilitará este movimento. A bipolarização, no entanto, pode criar uma oportunidade. Caso o partido hoje no poder, o PT, chegue à vitória, certamente será uma vitória mais suada e vai estar claro que é preciso mudar o sistema. Nesse sentido a presidente Dilma Rousseff tem dito insistentemente que é preciso fazer um plebiscito para a reforma política. É plataforma de governo dela, porque ela sabe que tem um problema de legitimidade pela frente. Por outro lado, se Aécio for vitorioso, evidentemente tem que propor algum tipo de reforma política, para que possa governar.
FGV DIREITO SP - Quais são as possibilidades de reforma política?
OSCAR VILHENA VIEIRA - É muito difícil pedir para o ator político que faça uma reforma em que ele não seja capaz de prever minimamente os seus resultados. É muito difícil fazer um acordo quando não se sabe qual vai ser a consequência desse acordo, então as reformas políticas mais bem sucedidas são incrementais, são coisas menores onde se pode fazer um acordo e elas vão sendo implementadas paulatinamente. Neste sentido, a Lei da Ficha Limpa é uma reforma importante. O fato do Paulo Maluf, finalmente, depois de 30 anos, não conseguir se candidatar, é sinal de que se está, em alguma medida, criando um constrangimento para pessoas que cometeram crimes contra o patrimônio publico não possam permanecer na política. Outro exemplo são as cláusulas de barreira, que o Brasil aprovou em 1995 e que o Supremo Tribunal Federal derrubou dez anos depois, em 2005 – a meu ver a pior decisão do Supremo em 25 anos de democracia. Isso depende de uma reforma na Constituição. Com isso teremos um Congresso com menos partidos. Hoje temos 32 partidos, é difícil governar, criar coalisão com 32 partidos. Ela depende ou de um esquema ilegal, como foi apurado no mensalão, ou de um sistema muito custoso para a administração pública. Uma democracia, para ser mais governável, precisa ter no máximo  5 partidos competitivos. A cláusula de barreira significa reduzir a fragmentação do Congresso para que maiorias sejam constituídas de maneira mais sólida e mais facilmente.
Há uma terceira reforma que é aquela relacionada ao financiamento das campanhas. Os modelos que estão em discussão, de financiamento público, privado, só por indivíduos, em todos eles há dificuldades, mas acho que temos que ter uma correção de rumos sobre o papel das grandes empresas, especialmente aquelas que prestam serviços públicos. As doações desses financiadores, que fazem obras de infraestrutura, que prestam serviços públicos, que têm uma parte substantiva de investimentos do BNDES, é o que realmente leva ao problema do desvio da verba pública, e consequentemente a escolhas públicas que não são pautadas no interesse público mais sim no interesse dos grupos que financiam o poder. Nos Estados Unidos você tenta reduzir isso dizendo que só o indivíduo pode doar para campanhas eleitorais. Pode-se corrigir de algumas maneiras, aumentando a transparência, reduzindo a quantidade de doação por parte das empresas, tornando as campanhas mais baratas. Ai entra a discussão sobre o voto em lista, sobre o voto distrital, sobre a redução do tamanho dos distritos eleitorais no Brasil. Para ser candidato a deputado federal em São Paulo é preciso correr o Estado todo, é um custo enorme. O Brasil precisa decidir melhor, seja restringindo quem pode doar dinheiro ou quanto dinheiro pode ser doado, seja por um aumento da transparência, mas também pela redução da demanda, ou seja, do custo das campanhas. É uma área enorme de reforma.
FGV DIREITO SP - Curiosamente parte dessas reformas passou pelo Supremo...
OSCAR VILHENA VIEIRA - Não é uma coisa estranha que o Supremo se meta nisso. Posto que os sistemas políticos têm dificuldades de se autorreformar, muitas vezes os tribunais de cúpula, como o Supremo, se envolveram com a reforma política. O caso mais emblemático é o redesenho dos distritos eleitorais nos Estados Unidos. Lá o voto é distrital, tem um deputado por distrito. Vamos supor que num distrito você tem uma população negra que é 25% de uma cidade. Como esse distrito só elege um deputado, sempre ganha um branco. A autoridade eleitoral do Alabama, por exemplo, tomava o cuidado de, toda vez que ia desenhar os distritos, desenhava de forma que os negros sempre perdessem. A Suprema Corte então disse que o sistema não atende um requisito: “one man, one vote”. Ou seja, determinou que os distritos sejam desenhados de maneira que o resultado final guarde alguma proporcionalidade entre eleitores e eleitos. Se num Estado onde 30% da população é negra tem que haver distritos onde haja a possibilidade de que 30% dos parlamentares sejam representativos daquela região. A Suprema Corte entregou às Cortes Federais a fiscalização disso. É natural que as Cortes entrem nesse assunto. O problema no Brasil é que o Supremo entrou mais para atrapalhar. Quando o sistema político produziu uma legislação que criou a cláusula de barreira, a fidelidade partidária, o tribunal foi lá e derrubou. Acho que o Supremo quis dirigir a reforma política, mas, ao interferir, piorou.
FGV DIREITO SP - No caso da reforma tributária, também é muito difícil que se chegue a um consenso?
OSCAR VILHENA VIEIRA – A reforma tributária é muito semelhante à política: todo mundo tem medo de perder, por isso ela não sai. União e Estados, um bloqueia o outro, é um clássico jogo de múltiplos atores com capacidade de veto, como o Conselho de Segurança da ONU, que não faz nada porque um veta o outro. Essa é a macro reforma. Mas tem uma micro reforma aparentemente mais fácil de ser feita e que já levaria a um enorme avanço, que é a da transparência, do acompanhamento dos gastos públicos e sobretudo da facilitação, da redução do custo para a empresa ou pessoa física estar em dia com o fisco. Trata-se de mexer na complexidade do sistema tributário, que não tem nada a ver com carga tributária. Hoje uma das coisas que se coloca é que o custo operacional de você se comportar corretamente é enorme, o que gera uma enorme improdutividade. O Brasil tem três problemas: um de eficiência tributária e outro de justiça tributária. A discussão sobre eficiência é a mais fácil de encarar, pois envolve problemas que não dependem de uma reforma constitucional. Há, porém, um problema central de distribuição justiça, na medida em que sistema tem um viés incrivelmente regressivo, o que tem sido um enorme obstáculo na redução da desigualdade. Por mais que se invistam em programas sociais não se consegue uma mudança do quadro de desigualdade, em parte, por que o sistema tributário é uma fonte que retroalimenta a concentração de riquezas no Brasil.

The National Congress of Brazil.

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JOTA

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