Filipe Natal De Gaspari

Encontramos em Eça de Queiroz (1845-1900), o Eça cronista, uma passagem deliciosa. Conta-nos o autor português que, quando da visita da atriz Sarah Bernhardt ao Brasil, os doutores de nosso país – os doutores do final do século XIX – fizeram questão de fazer as vezes dos cavalos que levavam a caleche da estrela de ópera francesa pelas ruas do Rio de Janeiro.<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote1sym" name="sdfootnote1anc">1</a> 
Em adoração, fizeram tirar os cavalos e levaram-na, à tração humana, com toda pomba e circunstância, para uma volta de luxo e ostentação pelas ruas da então capital do país.
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Comentando e lastimando o referido episódio, com a mesma fina ironia que deixa entrever em Os Maias e em O Primo Basílio, Eça de Queiroz relata-nos outro caso também de cavalaria, este agora português, em que os estudantes de sua universidade fizeram o papel de cavalo de carroça para celebrar a benevolência do Rei de Portugal. Nesse caso, por razão mais excelente, jocosamente argumentava o autor – porque o bondoso Rei concedera, àquela ocasião, oito dias de folga aos estudantes coimbrãos.
E aqui vai o novo ano começando, este 2020 de muitas incertezas e temores. E como, em 2019, os brasileiros se viram, na política, apresentados frontalmente à matéria de cavalaria (e congêneres) mais uma vez, a leitura dessa crônica de Eça de Queiroz, que aparece no livro “Ecos do Mundo”, vem muito bem a calhar. 
Além disso, de par com essas histórias curiosas, o livro é rico em perspectivas de elucidação de antigos problemas das instituições políticas no Brasil. A primeira parte dele consiste num mapa imperdível e crítico do Brasil do final do século XIX (Diga-se, de então e de hoje em muitos aspectos...). 
Veja-se, rapidamente, o exemplo da crônica “A Revolução do Brasil”, que integra o livro, em que Eça de Queiroz argumentava, tendo em vista a passagem da monarquia para a república no Brasil, a importância de mudanças políticas excederem as raias do formalismo e das ideias de ocasião e serem ciosas das necessidades reais e culturais dos povos. Até hoje esse modo de ver as instituições jurídicas e políticas, apegado à realidade, infelizmente, costuma faltar aos nossos governantes. 
Mas voltemos ao caso da cavalaria e à prova de servilismo de alguns brasileiros. 
Os que acreditam nos vínculos de simpatia poderiam afirmar que ainda estamos presos àquele tenebroso episódio de Sarah Bernhardt e sempre encontramos alguém para servir de cavalo e prestar serviços de montaria e tração. 
E, é verdade, há muita gente de casta seleta que adora prestar serviços ao ritmo das esporadas de sua excelência, o Sr. Presidente da República, e de seus seguidores. 
Viu-se, no ano passado, um punhado de ministros de Estado relinchando coisas como a volta do AI5 e a saudade da ditadura militar; coiceando a liberdade de expressão, a democracia, as instituições republicanas, o meio ambiente, a verdade histórica, as liberdades individuais, os direitos das minorias etc. 
Mas, se, no Brasil, a política e as instituições são matéria de montaria, certo é que fizemos conhecer também, como nunca, animais de feitio bastante dócil, que antes da esporada já abaixam para o cavaleiro subir. Esses exemplares – capazes de sentir à distância o cheiro do açúcar, da alfafa e do milho – seguem a meta, não reclamam dos antolhos e cacetadas e esperam, quem sabe, ao final, angariar uma suculenta cenoura.
Não foi esse o caso daquele exemplar capenga da espécie que coiceou Glenn Greenwald? Ou mesmo o do Sr. Ministro da Justiça, todo expectativa? Estou certo de que, para o governo federal, a medida mais salutar para 2020, a melhor política pública a se ter em vista, é restabelecer as práticas de antigamente e fazer acabar os transportes movidos a gasolina e álcool, refazer as estalagens e estábulos e reaparelhar a coisa pública ao sabor dos velhos costumes e galopes. 
Porém, não são todos, nem todas, ainda bem, que apoiam as loucuras em curso nos estábulos superiores do Estado – devemos começar 2020 com a esperança em alta, com o grau necessário de revolta, e não nos prestarmos a continuar a levar a república nas costas. A torcida é que, por aqui, episódios similares aos narrados por Eça de Queiroz não se repitam indefinidamente.

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<a class="sdfootnotesym" style="font-family: inherit; font-style: inherit; font-variant-ligatures: inherit; font-variant-caps: inherit;" href="#sdfootnote1anc" name="sdfootnote1sym">1</a> QUEIROZ, Eça de. “Aos estudantes do Brasil: sobre o caso que deles conta Mme. Sarah Bernhardt” In: Ecos do Mundo. 1ªed., São Paulo: Carambaia, 2019.

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2020, a Presidência e os 'cavalos'

Reflexões sobre uma crônica de Eça de Queiroz