Og Fernandes
ministro do Superior Tribunal de Justiça.

Olinda, tens a paz dos mosteiros da Índia/
Tu és linda/
Pra mim és ainda/
Minha mulher.
(Alceu Valença, formando de 1969 da Faculdade de Direito do Recife)
Sete colinas debruçadas na beira do mar. Becos, ladeiras, igrejas. Ao turista de primeira viagem, aquele sobe e desce pelas ruas de Olinda, na manhã do domingo, inclui a liturgia de uma parada no Mosteiro de São Bento para a missa das 10 horas. Naquele ambiente de moldura barroca, ouve-se o som do silêncio através do canto gregoriano dos monges beneditinos.
A história do mosteiro é a memória da guerra e da paz, características dos primeiros séculos do Brasil. Segunda instalação mais antiga daquela Ordem no país, o mosteiro ergueu-se a partir de 1586. Em 1632, um incêndio provocado pelos holandeses, e que consumiu grande parte da cidade, destruiu o mosteiro. A reconstrução do local veio em 1654. Guerra e paz. Paz e guerra. Ó linda situação para se instalar um dos primeiros cursos de direito no país.
Pernambuco sangrara nos combates libertários de 1710, 1817 e 1824 e na revolta contra o holandês invasor. Colheu dali e dacolá um hemorrágico sentimento de pátria. A semeadura tivera como sementes a filosofia do século XVIII e as ideias da Revolução Francesa e da Americana.
Longe de Olinda, foi a rebeldia de D. Pedro I contra a Coroa Portuguesa, em 1822, que o levou a instituir os primeiros centros irradiadores da cultura jurídica no então Império. Afinal, novas leis imperiais implicavam a afirmação de uma nova cultura do Direito. De pouco valeria essa Independência se a formação humanística dos brasileiros persistisse além-mar, nas cores lusitanas. Que a mão direita do imperador com a espada não saiba o que a esquerda modela.
Dito e feito. A Lei Imperial de 11 de agosto de 1827 faz nascer os cursos jurídicos no Brasil. A dimensão do Império justificava a instalação de dois centros de ensino, em contraponto à Universidade de Coimbra, naquela altura, única academia de Portugal. A ideia das duas escolas fora concebida na Constituinte de 1823, que morreu antes de nascer. Os lentes, segundo a Lei, tinham o mesmo salário dos desembargadores dos Tribunais da Relação e aposentadoria com o ordenado integral, após 20 anos de serviço. Exigia-se, contudo, que as doutrinas ensinadas estivessem de acordo com o sistema “jurados pela nação”.
As escolas de São Paulo e de Pernambuco nasceram quais gêmeas univitelinas. O solo do Largo do São Francisco era propício para os futuros bacharéis oriundos do sul, sudeste e centro-oeste. Já em terras pernambucanas, são os do norte que vêm, mas isso não foi empecilho para que gaúchos, angolanos e portugueses tivessem se formado ali, entre os anos de 1828 e 1909. Ou ainda, como Castro Alves[1] e Rui Barbosa[2], frequentado os dois centros de ensino, tão distantes e tão próximos.
O curso jurídico instalou-se em Olinda no dia 15 de maio de 1828 e as aulas iniciaram-se em 2 de junho com pouco mais de 40 alunos matriculados. Em 1852, transferiu-se do Mosteiro de São Bento para o antigo Palácio dos Governadores, na Ladeira do Varadouro da velha Marim dos Caetés. Sem tardança, a faculdade mudou-se para o Recife. Em 1854, assume o seu destino recifense, mas com CEP provisório. No primeiro momento, padece com as instalações precárias de um casarão na Rua do Hospício, mais conhecido por “O Pardieiro”. De notável é que as más condições de edificação não impediram que ali se fomentasse o turbilhão de ideias que resultou na chamada Escola do Recife, a partir de 1860. Igualmente, testemunhou a formatura em Direito das três primeiras senhorinhas, em 1888: Delmira Secundina da Costa, Maria Fragoso e Maria Coelho da Silva. Daquele prédio, a escola deslocou-se para a Praça Adolfo Cirne.
“A praça, a praça é do Povo!
Como o céu é do Condor!
É antro onde a liberdade
Cria a águia ao seu calor!”
(Castro Alves)
Antes da praça, o local era uma coroa arenosa, Rio Capibaribe ali pertinho, a lamber as camboas. A praça circundaria o prédio. O capricho da edificação era cortejar a praça, assim como Castro Alves cortejara a portuguesa Eugênia Câmara. Nesse local, seria construído um bosque de onde se podia enxergar Olinda. O passado do curso – o mosteiro beneditino da vizinha cidade – e o presente – a nova casa – na mesma mirada.
Vista e bosque findaram. Aquela, pela construção de outras edificações; o último, depois da Revolução Comunista de 1935, sob alegação de que as árvores poderiam abrigar franco-atiradores. Ah, essa velha sina pernambucana de ser do contra e arrumar confusão!
A pedra fundamental foi lançada em junho de 1889, com a presença do Conde D`Eu. Obra entregue 22 anos depois, em 2 de julho de 1911, com o seu assoalho de pinho de riga, portas e janelas de madeira nobre e carteiras de estrutura em ferro, vindas da Inglaterra. Outro prédio de igual imponência o Recife somente conheceria em 1930, com a inauguração do Palácio da Justiça.
De quase nada adiantou a tentativa de monopolizar as ideias contidas no édito imperial que criou a Faculdade e estabeleceu o curriculum. O espírito da casa era um convite ao pluralismo.
No século XIX, floresceu a chamada Escola do Recife com Tobias Barreto (formando de 1869), Sílvio Romero (formando de 1873), Castro Alves, Clovis Bevilaqua (formando de 1882), entre outros. No ensaio A Faculdade de Direito e a Escola do Recife (Revista de Informação Legislativa, n. 55, jul/set 1977, p. 6), Pinto Ferreira (formando de 1928) registra que aquele grupo “representou uma abordagem enciclopédica e humanista na cultura, com refluxos na alma popular e no resplendor do pensamento abstrato”.
Como irmãs gêmeas que se afirmam pelas diferenças, as Arcadas Paulistanas optaram pela excelência na área processual, enquanto a escola pernambucana pontuava pelas posições no Direito Civil e na filosofia.
Inquieta e rebelde, a alma daquela Casa nordestina reunia a poesia libertária e hiperbólica do baiano Castro Alves, a visão social do sergipano Tobias Barreto, o apuro científico do cearense Clovis Bevilaqua e o positivismo de Pontes de Miranda num caldeirão fervilhante do pensamento poético e da prosa jurídica. Nascia e se afirmava a personalidade da Escola do Recife.
A efervescência daquela chama jamais foi apagada. Poetas, juristas, professores, jornalistas, filósofos, escritores, magistrados, procuradores e advogados são o bendito fruto daquele ventre generoso nesses quase dois séculos. Impossível traçar em poucas linhas o pensamento daquela Casa no século passado. Lembro-me também do conselho de um maduro desembargador e historiador ao jovem bacharel com alguma veleidade para a escrita: não faça os contornos biográficos de alguém com quem você tenha convivido. Os sentimentos vão interferir.
Decorridos 188 anos de um certo 11 de agosto, a Academia Pernambucana é a segunda escola jurídica que mais formou bacharéis que se tornaram ministros do Supremo Tribunal Federal, logo após sua irmã do Largo do São Francisco.
O que os próximos 188 anos reservam para os cursos jurídicos no Brasil?
Valho-me do bel. Ariano Suassuna (formando de 1950), através do personagem João Grilo, do Auto da Compadecida:
- “Não sei. Só sei que foi assim”.
* Og Fernandes é formando de 1974
[1] Castro Alves – cursou os anos iniciais na Faculdade de Direito do Recife entre 1864 e 1866, quando se transferiu para o sudeste. Matriculou-se na Faculdade de Direito de São Paulo, mas não concluiu o curso, vindo a falecer precocemente.
[2] Rui Barbosa estudou os dois primeiros anos na Faculdade de Direito do Recife (1866/67), mas graduou-se no Largo do São Francisco, em 1870.