Janaína Penalva

Adriene Domingues

O Supremo Tribunal Federal comemora os 10 anos do Conselho Nacional de Justiça com uma ameaça. Conforme recentes decisões, sua competência para julgamento das ações contra o CNJ está restrita às ações constitucionais, cabendo aos juízes federais o julgamento das demais ações. Essa interpretação ameaça a efetividade das deliberações do CNJ e pode enfraquecer o próprio Poder Judiciário. Ao que parece, a constitucionalidade do CNJ foi formalmente declarada, mas ainda não está materialmente resolvida.
Lançando um breve olhar ao passado, vê­-se que as decisões do STF sobre as impugnações dos atos do CNJ foram momentos decisivos para o desenho dos contornos do órgão. No embate de forças com a magistratura, em especial com as associações de classe, o STF vem desempenhando um papel importante na formação da identidade constitucional do CNJ. Nessa primeira década, três momentos foram desafiantes.
O primeiro duelo teve início antes mesmo da publicação da EC/45. A Associação dos Magistrados do Brasil questionou a constitucionalidade do CNJ e perdeu (ADI 3367/2005). Anos depois, o órgão foi novamente desafiado por ocasião da disputa sobre as competências da Corregedoria Nacional de Justiça, ainda pela AMB. A mídia reagiu e o CNJ venceu (ADI 4638/2012). O terceiro momento são as bodas do órgão. Nos 10 anos, a autoridade do CNJ se fragiliza quando o STF decide compartilhar com os juízes federais a competência para o julgamento de ações contra seus atos.
No pós­-10 anos, tem­-se decisões do STF no sentido de que sua competência originária para julgar os atos do CNJ se restringe às hipóteses de impetração de mandado de segurança, mandado de injunção e ‘habeas data’ contra atos do Conselho. Em todas as outras situações é competente o juiz federal.
Deixar aos juízes de primeiro grau a competência para revisar judicialmente atos administrativos referentes à magistratura e aos Tribunais é reinstalar o regime anterior à EC 45/2004. Autorizar que qualquer definição de âmbito nacional seja cassada por juiz de primeiro grau é desconsiderar o que se construiu no cenário judiciário brasileiro nos últimos 10 anos.
É dessa ameaça que se trata.
A partir desse posicionamento, é plenamente possível, por exemplo, a um juiz penalizado com a aposentadoria compulsória pelo CNJ ajuizar ação ordinária, inclusive com pedido de medida acautelatória, para sua reintegração imediata. Esta ação, segundo o entendimento do STF, poderá ser julgada pelo juiz federal.
O mesmo se daria em ações judiciais que impugnassem políticas judiciárias desenhadas pelo CNJ como a obrigatoriedade de processo judicial eletrônico único (Resolução no 185, DE 18 de dezembro de 2013); a uniformização de procedimentos do BACENJUD (Resolução no 61 de 07 de outubro de 2008); além dos normativos que estabelecem o planejamento estratégico, a transparência, que regulam o regime de promoção dos magistrados entre outros. As ações ordinárias interpostas de forma pulverizada nos tribunais federais teriam o condão de desconstituir políticas públicas moldadas para aprimorar o Poder Judiciário. Ou seja, retrocederíamos a um regime anterior à criação do CNJ, reduzindo­-se as possibilidades de controle da atividade judicial e de gestão do poder Judiciário em nível nacional.
Exemplo recente é a Política Nacional de Atenção Prioritária ao Primeiro Grau. Para garantir efetividade a essa política, em maio, a Corregedoria Nacional de Justiça decretou "regime especial de trabalho na Comarca de Salvador" no intuito de corrigir a imensa assimetria de recursos humanos verificada entre o Tribunal de Justiça e a jurisdição de primeiro grau. O ato da Corregedora foi impugnado em mandado de segurança no STF (33.611/BA), sendo indeferida a medida de urgência. Nesse caso, o STF sustentou sua autoridade para julgar o caso, assegurando as ações do CNJ para melhoria da prestação jurisdicional na Bahia. Não há dúvidas de que decisões como essas cabem ao STF e não ao juiz federal, seja se processadas em mandado de segurança ou em ação ordinária.
O STF vacila, entretanto, quanto às razões escolhidas para justificar a redução de sua competência. Hoje a razão é formal, somente ações constitucionais justificam sua apreciação do caso, mas mirando o futuro, vemos pistas de outros fundamentos que justificariam o desinteresse do STF em garantir o accountability judicial. Em obiter dictum, na AO 1814/2013, surge uma nova tese que já se forma com apoio de três ministros e que pode se consolidar. Trata­-se da ideia de que a competência do STF não se define pela classe processual (ações constitucionais), mas pela matéria. Nessa embrionária discussão, o STF apreciaria apenas ações estratégicas para magistratura, ações de repercussão no cenário judiciário. Essa compreensão seguiria mantendo a divisão da competência entre juízes federais e STF, mas a sofistica, somando conteúdo à forma.
Embora pareça razoável, essa é uma interpretação igualmente inadequada constitucionalmente. O critério da importância do caso para a magistratura faria com que os juízes federais tivessem a competência de julgar apenas as ações ordinárias que não dissessem respeito ao interesse de todo o Poder Judiciário – tais como as concernentes a concursos públicos, licitações, deliberações sobre regime jurídico dos servidores.
No entanto, mesmo esses atos de gestão, não podem ficar sob os cuidados da justiça de primeiro grau. Não há ato do CNJ que possa ser considerado afastado de sua atividade finalística. Também a regulação dos cartórios extrajudiciais, a nomeação ou contratação de servidores pelos tribunais, mesmo os concursos públicos e as licitações, a fiscalização de toda essa atividade faz parte do extenso feixe de suas atribuições constitucionais.
Essa tendência a se retirar de cena, deixando que o órgão de controle administrativo duele sozinho com seus controlados, revela que a discussão travada nesses dez anos sobre o caráter nacional da magistratura, o federalismo, a autonomia dos tribunais, etc pode voltar a ser um assunto interno do Poder Judiciário e não uma questão decisiva para o acesso à justiça e para independência judicial.
O pano de fundo dessa relação tensionada entre os órgãos é a dúvida. O STF vacila quando questionado se o poder Judiciário brasileiro pode ser controlado. A constitucionalidade do CNJ foi formalmente declarada, mas não materialmente resolvida. Definindo o que julga e o que não julga, o STF renega sua função de garante e pode desintegrar o CNJ.
Existe um sentido político nas competências originárias do STF. Ao defini­-las, a Constituição assegura a si própria. No que tange ao CNJ, o sentido político é garantir a existência do controle. Esse controle, atribuição principal do órgão, só pode ocorrer se o STF assegurar que conflitos envolvendo questões essenciais ao regime constitucional sejam resolvidos por uma sentença originária que encerra o litígio e se auto confirma.
Nesse dé­jà vu, vemos­-nos a meio caminho do futuro. Ou o STF mantém o sistema constitucional e suporta sua competência originária de julgar as ações contra o CNJ, ainda que isso o leve a decidir ações de menos repercussão para os juízes, ou retrocedemos nesses 10 anos e nos contentamos com um bureau sem autoridade suficiente para proteger a Constituição e assegurar um judiciário livre e independente.

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JOTA

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