Antônio Pedro Machado

A exemplo do que aconteceu no passado, quando se chegou a declarar a inconstitucionalidade da Lei 11.516/2007, que criou o Instituto Chico Mendes, por considerar que não foram respeitadas as regras para tramitação da medida provisória que lhe deu origem [1], o Supremo Tribunal Federal voltou a enfrentar os limites constitucionais impostos ao trâmite das Medidas Provisórias.
Naquela oportunidade, a Corte, por maioria, assentou que deveriam ser consideradas inconstitucionais as leis oriundas de Medida Provisória não submetidas à Comissão Mista do Congresso, conforme prevê o art. 62, §9º da Constituição da República.
Na última decisão tomada, o debate ocorreu em torno da constitucionalidade de matérias estranhas àquelas veiculadas pela Medida Provisória tal como editada pelo Presidente da República, os chamados “jabutis”.
O pano de fundo foi o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5127/DF, em que Confederação Nacional das Profissões Liberais (CNPL) questionava a legitimidade constitucional das alterações feitas na MP 472/2009, convertida na Lei 12.249/2010, que resultaram na extinção da profissão de técnico em contabilidade, uma vez que a MP tratava de temas diversos, que não guardavam qualquer relação com a profissão de contador.
Vale mencionar que a Lei oriunda da Medida Provisória 472/2009, assim como aquela que deu origem ao Instituto Chico Mendes, também não foi submetida à apreciação da Comissão Mista.
O curioso é que as duas Medidas Provisórias mencionadas foram editadas e tramitaram já sob a égide da Emenda Constitucional nº 32/2001, que, buscando moralizar a utilização do instituto, vedou a edição de MP para determinadas matérias bem como a possibilidade de reedição, ao mesmo tempo em que reviu os prazos de tramitação e os efeitos decorrentes da não aprovação ou da não apreciação da MP, “o que força ou a votação (aprovando, modificando ou rejeitando) ou a caducidade da decretação de urgência por decurso de prazo” [2].
Na mesma linha, o Congresso Nacional regulamentou o novel regramento constitucional das MPs, por meio da Resolução nº 1/2002- CN, prevendo, em seu art. 4º, § 4º que são vedadas apresentação de emendas que versem sobre matéria estranha àquela tratada, cabendo ao Presidente da Comissão o seu indeferimento liminar.
Muito antes disso, o inciso I do art. 7º da Lei Complementar 95/98 já previa que “excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único objeto. ”  Isso significa que, ressalvadas as chamadas codificações, a lei deve ter objeto único e não tratar de várias matérias simultaneamente. Como se não bastasse essa previsão, o inciso II do mesmo art. 7º também já determinava que “a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão”.
Como visto, os tais “jabutis” já são repelidos pelo ordenamento jurídico há dezessete anos, e desde 2002, existe instrumento regimental valioso para rejeitá-los de plano, no nascedouro do trâmite legislativo, mas mesmo assim todas essas regras eram solenemente ignoradas, revelando que as tentativas de moralizar a utilização das MPs fracassaram quase que miseravelmente.
De qualquer forma, a decisão do Supremo, ao garantir mais efetividade ao marco institucional que regula as relações entre os Poderes Executivo e Legislativo, muda a perspectiva de análise das Medidas Provisórias que tramitam perante o Congresso Nacional e nos convida a avaliar seu impacto sobre as relações entre os Poderes.
Vamos a um caso.
O Projeto de Lei de Conversão nº 17, de 2015, cuja origem é a Medida Provisória 678/2015, foi aprovado pelo Senado e imediatamente apelidado de “o último jabuti”.
De fato, não foram poucos os “jabutis” que tomaram carona no texto do Projeto de Lei de Conversão aprovado na última semana. Mas um deles, se é que pode ser chamado de “jabuti”, demonstra que os “jabutis” ainda podem levar um bom tempo para desaparecer.
Dentre as alterações feitas no âmbito da Comissão Mista e mantidas pela Câmara dos Deputados, a possibilidade de execução indireta das atividades materiais acessórias, instrumentais ou complementares desenvolvidas em estabelecimentos penais, ainda que sob supervisão e fiscalização do Poder Público, tem causado bastante controvérsia, por sugerir a “privatização” do sistema carcerário.
Segundo a exposição de motivos da MP 678/2015 “a relevância e urgência da medida se baseiam nos atuais dados que refletem a realidade das ocorrências de mortes violentas no País, que fazem premente a construção de alternativas normativas que possibilitem aos gestores públicos dos órgãos de segurança formas diferenciadas de enfrentamento dessa grave questão”.
Uma das questões jurídicas que se coloca no caso dessa alteração é se a ideia de “construção de alternativas normativas”, também constante da exposição de motivos, estaria restrita à utilização de Regime Diferenciado de Contratações Públicas - RDC nas ações de segurança pública, conforme originalmente previa o texto da Medida Provisória.
Aqui, diferentemente do caso julgado pelo Supremo, a discrepância entre a temática veiculada pela MP e as alterações promovidas no âmbito da Comissão e ratificadas pelo Plenário da Câmara não é tão evidente e, por isso mesmo, novos debates decorrerão dessa problemática. Portanto, falar em “o último dos jabutis”, pode ser precipitado.
Assim como antes, a decisão do Supremo, mais do que as previsões constitucionais, legais e regimentais que tratam do processo legislativo e do trâmite das MPs, deve se revelar instrumento capaz de efetivamente modificar a práxis do Parlamento, muito porque a relação Executivo-Legislativo, diante da limitação imposta a esse poderoso instrumento de barganha para aprovação das MPs, representa significativa mudança nas regras do jogo.
Mas há mais. A tese do Ministro Fachin, condutora da decisão em comento, no sentido de que “[...]não é apenas porque o texto constitucional não veda expressamente essa possibilidade que ela seja permitida, especialmente à luz do princípio democrático e do regular processo legislativo por ele desenhado (estampados, entre outros, nos arts. 1º, caput, parágrafo único, 2º, caput, 5º, caput, LIV, CRFB). ” somada ao entendimento [3] já consolidado no STF, de que matéria atinente ao devido processo legislativo é passível de controle preventivo concreto por parte do Poder Judiciário, pela via do Mandado de Segurança,  abre caminho para que as minorias parlamentares possam intentar o writ durante a tramitação das MPs.
Enfim, estamos diante de mais um debate promovido pela via do denominado diálogo institucional [4] entre Supremo e Congresso, que certamente dará novos contornos aos atores do jogo Republicano.
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[1] -  MEDIDA PROVISÓRIA Nº 366, DE 26 DE ABRIL DE2007. Convertida na Lei nº 11.516, de 2007
[2] -  AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Medida provisória e a sua conversão em lei. A Emenda Constitucional nº 32 e o papel do Congresso Nacional, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 266
[3] -  Ementa: CONSTITUCIONAL. MANDADO DE SEGURANÇA. CONTROLE PREVENTIVO DE CONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DE PROJETO DE LEI. INVIABILIDADE. 1. Não se admite, no sistema brasileiro, o controle jurisdicional de constitucionalidade material de projetos de lei (controle preventivo de normas em curso de formação). O que a jurisprudência do STF tem admitido, como exceção, é “a legitimidade do parlamentar - e somente do parlamentar - para impetrar mandado de segurança com a finalidade de coibir atos praticados no processo de aprovação de lei ou emenda constitucional incompatíveis com disposições constitucionais que disciplinam o processo legislativo” (MS 24.667, Pleno, Min. Carlos Velloso, DJ de 23.04.04). Nessas excepcionais situações, em que o vício de inconstitucionalidade está diretamente relacionado a aspectos formais e procedimentais da atuação legislativa, a impetração de segurança é admissível, segundo a jurisprudência do STF, porque visa a corrigir vício já efetivamente concretizado no próprio curso do processo de formação da norma, antes mesmo e independentemente de sua final aprovação ou não. 2. Sendo inadmissível o controle preventivo da constitucionalidade material das normas em curso de formação, não cabe atribuir a parlamentar, a quem a Constituição nega habilitação para provocar o controle abstrato repressivo, a prerrogativa, sob todos os aspectos mais abrangente e mais eficiente, de provocar esse mesmo controle antecipadamente, por via de mandado de segurança. 3. A prematura intervenção do Judiciário em domínio jurídico e político de formação dos atos normativos em curso no Parlamento, além de universalizar um sistema de controle preventivo não admitido pela Constituição, subtrairia dos outros Poderes da República, sem justificação plausível, a prerrogativa constitucional que detém de debater e aperfeiçoar os projetos, inclusive para sanar seus eventuais vícios de inconstitucionalidade. Quanto mais evidente e grotesca possa ser a inconstitucionalidade material de projetos de leis, menos ainda se deverá duvidar do exercício responsável do papel do Legislativo, de negar-lhe aprovação, e do Executivo, de apor-lhe veto, se for o caso. Partir da suposição contrária significaria menosprezar a seriedade e o senso de responsabilidade desses dois Poderes do Estado. E se, eventualmente, um projeto assim se transformar em lei, sempre haverá a possibilidade de provocar o controle repressivo pelo Judiciário, para negar-lhe validade, retirando-a do ordenamento jurídico. 4. Mandado de segurança indeferido.
(MS 32033, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. TEORI ZAVASCKI, Tribunal Pleno, julgado em 20/06/2013, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-033 DIVULG 17-02-2014 PUBLIC 18-02-2014)
[4] - Sérgio Antônio Ferreira Victor, Diálogo institucional e controle de constitucionalidade: debate entre o STF e o Congresso Nacional, São Paulo, Saraiva, 2015 (no prelo).

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JOTA

STF voltou a enfrentar limites constitucionais impostos ao trâmite de Medidas Provisórias

O último dos "jabutis"

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