Felipe Recondo

O julgamento da ADPF 347 pelo Supremo Tribunal Federal (STF) trouxe para o Brasil o instituto do estado de coisas inconstitucional. Mais do que aplicar ao caso concreto – a situação caótica do sistema carcerário brasileiro -, esse novo instituto pode levar o tribunal a intervir em situações diversas de violação a direitos humanos.
Professor de Direito Constitucional e advogado do PSOL na ação julgada na semana passada pelo STF, Daniel Sarmento adianta que o instituto poderia ser usado, por exemplo, para enfrentar as altas taxas de homicídio no País.
“O Brasil tem uma taxa elevadíssima de homicídios que não são investigados, às vezes cometidos por agentes de segurança, como polícia, envolvendo população vulnerável, via de regra favelados, na maior parte negros, pobres. São pessoas que não têm muita voz no processo político. A violação aos direitos dessas pessoas é invisibilizada”, afirma.
Mas o instituto, acrescenta Sarmento, deve ser usado de forma comedida. “É uma arma superimportante e superpoderosa que tem que ser usada com parcimônia para casos realmente extraordinários. Não é um instituto banal”, acrescentou.
O STF reconheceu que o quadro do sistema carcerário brasileiro configura um “estado de coisas inconstitucional”. Quais os efeitos da introdução desse instituto no Brasil?
Essa categoria do estado de coisas inconstitucional foi criada pela Corte Constitucional da Colômbia e possibilita um controle não sobre atos normativos, mas sobre situações em que há uma violação maciça de direitos humanos e o equacionamento depende de uma série de medidas complexas de vários órgãos. Isso amplia muito o potencial do STF de intervir em situações em que  há uma afronta grave à Constituição, mas que não será resolvida com a retirada de determinada lei do ordenamento. São situações complexas em que algum tipo de bloqueio institucional.
E qual o potencial desse instrumento?
É uma arma superimportante e superpoderosa que tem que ser usada com parcimônia para casos realmente extraordinários. Não é um instituto banal. Até porque, para esse instituto funcionar, o Supremo deve estabelecer diálogo com os outros poderes e depois acompanhar a efetivação das medidas eventualmente adotadas.
O estado de coisas inconstitucional foi importado, digamos assim, da Colômbia. É algo inédito essa inspiração numa jurisprudência de um país que não seja do grupo de desenvolvidos?
Não sei se é absolutamente inédito, mas é fato que o Supremo não estava acostumado a fazer isso. A nossa tradição era de olhar para o primeiro mundo em matéria de Direito Constitucional, especialmente para os Estados Unidos e para a Alemanha. Hoje temos no Direito Constitucional global vários outros países com produções acadêmicas e jurisprudência muito importantes. Eu destacaria especialmente dois: a Colômbia e a África do Sul. Tem cortes bastante proativas com uma ênfase em direitos fundamentais, na proteção dos grupos vulneráveis. Como são países subdesenvolvidos, enfrentam questões bem mais próximas às nossas do que, por exemplo, aquelas enfrentadas na Alemanha e nos Estados Unidos. É um tipo de diálogo super importante. É interessante a capacidade do Supremo de olhar para o que os outros países, aprendendo com o que fazem da mesma maneira que os outros países têm muito a aprender com o que o Supremo faz.
Há bloqueios institucionais, como os que operam no tema carcerário, que emperram outros setores, gerando violações a direitos fundamentais?
Acho que sim. Como podemos identificar esses temas? Quando, além de existir uma violação grave, maciça e generalizada a direitos fundamentais, verificarmos que os outros poderes do estado não têm incentivos institucionais para atuar nessa área. Eles até podem ter maior expertise técnica, mas não têm incentivos institucionais. No caso dos presos, isso era muito claro porque os presos são uma minoria desprezada pela sociedade e além dos mais não votam. A história vinha mostrando que o Executivo não fazia nada, o Legislativo não fazia nada. E há uma parcela importante de culpa do Judiciário nesse problema. Por isso, a importância da atuação do Supremo. Eu consigo vislumbrar situações em que o mesmo problema acontece.
Por exemplo?
O Brasil tem uma taxa elevadíssima de homicídios que não são investigados, às vezes cometidos por agentes de segurança, como polícia, envolvendo população vulnerável, via de regra favelados, na maior parte negros, pobres. São pessoas que não têm muita voz no processo político. A violação aos direitos dessas pessoas é invisibilizada. Como resolver isso? Esse problema vem sendo apontado por militantes de direitos humanos no Brasil há muito tempo. A questão dos autos de resistência, a inércia da polícia, do Ministério Público e da Justiça para atuar nesses casos. E também não há muitos estímulos institucionais para essa que é, talvez depois do problema dos presídios, o segundo maior problema de direitos humanos no Brasil. Esta é uma situação em que está caracterizado o estado de coisas inconstitucional. Não se pode resolver esse problema com uma lei ou tirando uma lei da ordem jurídica. O correto num caso como esse seria, como no caso dos presídios, uma ordem judicial no sentido de que os poderes competentes formulassem planos para enfrentar a questão. O Supremo apreciaria um plano como esse e passaria a monitorá-lo, jogando luzes para a questão.
Cabe ao STF, importando um instrumento como este, capitanear uma política pública estatal?
Só é legítimo que o Supremo intervenha num cenário de falência da atuação dos demais poderes. No caso dos presos, há um quadro dramático que só vem piorando e se agravando. E que é do amplo conhecimento do Executivo e do Legislativo e que não tomam as medidas necessárias, muito pelo contrário. A maior parte das medidas que a gente ouve falar no campo penal nos últimos tempos diz respeito ao aumento de pena, medidas portanto que agravariam o cenário. Então, digo que não basta que uma situação seja muito grave para caracterizar o estado de coisas inconstitucional. É preciso também que identifique um bloqueio institucional que impede que os outros poderes atuem. A intervenção do Supremo vem daí. Se há uma afronta gravíssima à Constituição e os poderes competentes não atuam, como guardião da Constituição, o Supremo deve atuar. O que tem de novidade é a maneira como ele vai atuar. Ele recorre a técnicas de diálogo institucional de caráter mais flexível. Ao invés de o Supremo determinar que se faça isso ou aquilo – ele não tem a expertise para saber exatamente o que precisa ser feito – ele vai determinar que os poderes públicos busquem a solução, formulem o plano em determinado prazo e depois vai monitorar esse plano. Em geral com auxílio que também detêm expertise – no caso dos presídios se postulou que fosse feito junto ao Conselho Nacional de Justiça.
A liminar foi concedida, mas apenas três medidas pedidas pelo PSOL foram incluídas na cautelar. Que avaliação faz do julgamento?
Considero que o Supremo foi tímido na concessão das cautelares. Eu acho que havia um fantasma pairando que era o medo das reclamações, porque uma boa parte dos pedidos indeferidos, eu diria que praticamente todos eles, tinham como foco a atuação judicial. A minha percepção foi que os ministros do Supremo sabem que ali há um problema muito grave. Os juízes realmente não levam em consideração o quadro dramático do sistema prisional, por exemplo ao fixar pena, ao não aplicar as cautelares para substituir a prisão. Vários ministros admitiram o problema. O argumento de não conceder a cautelar porque a lei já prevê a adoção das medidas pedidas não é argumento que se aplique quando reconhecido o estado de coisas inconstitucional. Não é controle de norma. É controle de realidade. O fato de algo estar previsto na lei é argumento para conceder, não para negar. Pra mim, pode ter havido alguma incompreensão por parte de alguns ministros sobre o que é o estado de coisas inconstitucional – porque é uma figura nova. Eu tenho impressão que foi o medo de reclamação que levou a uma cautelar mais modesta. Eu acho que esse receio podia ser superado por uma sugestão muito boa do ministro Luiz Fux. O Supremo podia dizer: “tem que fazer, tem que considerar, mas não cabe reclamação”. O cabimento de reclamação em controle abstrato é uma relativa novidade. Durante muito tempo, tinha eficácia erga omnes, mas não tinha efeito vinculante. E os juízes não vão descumprir o que o Supremo determinar. Se o juiz descumprir, o tribunal corrige. Eu com todo o respeito acho que o Supremo ficou aquém. Agora acho que a decisão tem alguns aspectos bastante positivos. A audiência de custódia e sua generalização é muito importante. O que o CNJ vinha fazendo - muito meritoriamente - estava baseado em projetos pilotos. Agora terá de haver audiência de custódia em todos os lugares. Outro ponto também: o Funpen (Fundo Penitenciário NacionL). É um fato que há muito dinheiro neste fundo.
Mas o Ministério da Justiça alega que os estados não utilizam esses recursos. E que mesmo com o contingenciamento, a execução não é total porque há problemas nos estados para assinatura de convênio e aprovação de projetos.
Acho que esse argumento é verdadeiro. Na inicial não dizemos que o problema é do Funpen apenas do ponto de vista do contingenciamento. Agora falta também, e a culpa é de quem gere o Funpen, uma visão menos burocrática para isso. Uma declaração que foi dada pelo desembargador federal Guilherme Calmon, que foi coordenador no CNJ dessa área de presídios, indica que o excesso de burocracia é um problema para a liberação de verba. A existência desses recursos se torna extremamente importante haja vista a decisão recente do STF de que o Judiciário pode conceder cautelares determinado a reforma de prisões. Se falarem que não há dinheiro, agora tem R$ 2,4 bi do Funpen.
A concessão da medida cautelar não resolve o problema, como admitem os próprios ministros. O julgamento do mérito da ação pode ajudar a enfrentar, por exemplo, a cultura do hiperencarceramento?
O mais importante dessa ação de fato não está na cautelar. O mais importante são os planos que os governos estaduais e federal devem formula para enfrentar o problema. Isso é pedido de mérito. Nós postulamos na inicial medidas também para enfrentar essa cultura. E esse ponto não foi concedido. Há uma dimensão simbólica e pedagógica de o Supremo ficar batendo nessa tecla: não é para generalizar a prisão cautelar. O Supremo tem falado isso em outros casos. Isso pode ajudar a melhorar. Mas cultura que não se consegue alterar com um instalar de dedos ou com decisão judicial. Isso vem com outras coisas, como a formação do magistrado, por onde são selecionados os magistrados. As políticas afirmativas no Judiciário podem fazer com que haja mais juízes pobres e negros no Judiciário. E isso pode ter algum reflexo nisso. O ministro Gilmar Mendes fez uma sugestão no seu voto que eu acho que se fosse acolhida seria muito interessante: que passasse o tema a figurar obrigatoriamente no curso de formação dos magistrados.
Eu não diria que a cautelar é inócua, como também não penso que um plano resolveria. Um plano bem feito, monitorado pelo Supremo para não ficar como uma proposta vazia, eu acho que podia ter efeito muito importante. O procurador do estado de São Paulo, Tiago Sombra, que fez uma boa sustentação no dia do julgamento, ele fez uma observação que não é incorreta não. Ele disse que na Colômbia o reconhecimento do estado de coisas inconstitucional não serviu para equacionamento do problema prisional. Por quê? O foco na Colômbia foi só na construção de presídios. Só construir presídios não adianta. Nós temos um déficit de 250 mil vagas. Se forem construídas 250 vagas, mas for mantido o ritmo de encarceramento, não vai adiantar nada. Outras medidas que foram postuladas nessa ação são importantes.  E o assunto casa com outras ações propostas no Supremo. Esse caso da maconha (descriminalização do porte de drogas para uso pessoal) ataca uma das causas do hiperencarceramento, que é a discriminação na aplicação da lei de entorpecentes. Então, para que o plano dê o s resultados que se espera não pode focar só em criar vagas.

Daniel-Sarmento1

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JOTA

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