Iuri Dantas

O uso dos recursos depositados pelas partes processuais durante um contencioso na Justiça opõe governos estaduais e o sistema financeiro nacional, com o Banco Central do Brasil sendo favorável à tese dos bancos de impedir que governadores usem os recursos para investimentos e pagamento de precatórios.
Na segunda-feira (21/09), em audiência pública convocada pelo ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, para esclarecer dúvidas no julgamento de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, os argumentos pareciam trocados: bancos ressaltaram os riscos jurídicos de permitir aos governos estaduais e municipais o uso de parte do estoque dos depósitos judiciais, enquanto representantes dos Estados ressaltaram vantagens econômicas e financeiras de a sociedade lançar mão dos recursos para efetuar pagamento de precatórios, garantir obras ou fazer investimentos.
No limite, o caso envolve uma disputa sobre cerca de R$ 160 bilhões que estão depositados no Banco do Brasil e na Caixa Econômica Federal por ordem de juízes estaduais, federais e do trabalho, segundo dados apresentados pelo ministro Gilmar Mendes.
<a href="/wp-content/uploads/2015/09/paginador.jsp_2.pdf">Na ADI 5.072, a Procuradoria Geral da República contesta</a> uma lei estadual de 2013 que permitiu ao governo do Rio de Janeiro sacar 30% do estoque relativo aos processos que correm no Estado. Ao se debruçar sobre o problema, o STF convidou também governos que adotam ou pretendem sancionar em breve leis no mesmo sentido: Bahia, Distrito Federal, Minas Gerais, Paraíba, Rio Grande do Sul e o município de São Paulo.
Em disputa está o uso dos recursos pelos Tesouros estaduais, em vez de deixar o assunto nas mãos dos bancos públicos, que também aproveitam os valores para se capitalizar e fazer mais dinheiro. Ao julgar o caso, os ministros do Supremo colocarão na balança ganhos obtidos com leis aprovadas recentemente e de outro, os riscos potenciais e futuros em seguir este caminho, de acordo com as exposições feitas na audiência pública, seja para os litigantes, seja para Banco do Brasil e Caixa, que precisam de tais somas para manter seus balanços no azul atualmente.
"Acaba que fica a inconstitucionalidade por um clima ruim", sintetizou Onofre Alves Batista, representante do governo mineiro. "Há dramalhão em cima desta questão pelos bancos... mas em vez de usados para o bem comum, os depósitos são usados como lastro pelas instituições financeiras, as leis estaduais corrigem essa distorção."
A audiência pública colocou dois fortes argumentos sobre a mesa: de um lado, representantes dos Estados defenderam o uso de recursos públicos ressaltando as benesses previsíveis de uma nova fonte de dinheiro: pagamento de precatórios em dia, criação de fundos de garantia para parcerias público-privadas.
Empiricamente possível
Ao defenderem leis estaduais já em vigor, procuradores ressaltaram a "sustentabilidade" destes arranjos sob o argumento de que os governos sacam menos do que é depositado mensalmente, além de mencionarem os "fundos de reserva", um valor que fica em separado para a eventualidade de o estoque de depósitos ter valor mais baixo que a execução de uma sentença.
Outra forma de preservar o pagamento dos litigantes encontradas pelas assembléias legislativas e citada pelos procuradores foi dar ao Tribunal de Justiça poder de, no limite, bloquear recursos do caixa único para honrar o pagamento de uma decisão judicial.
Os últimos dois anos mostraram que é "empiricamente possível" usar os depósitos judiciais, sem colocar em risco o direito de o vencedor do litígio receber o que tem direito, segundo o procurador estadual Saint Clair Souto, que representou o Rio de Janeiro na audiência pública.  A sanção da lei contestada pela PGR permitiu o pagamento de R$ 4,5 bilhões em precatórios nos anos de 2013 e 2014, quase três vezes o volume do que foi pago com a mesma rubrica nos dez anos anteriores.
"Estamos equilibrados", acrescentou Tarcio da Silva Pessoa Rodrigues, representante do governo da Paraíba. "O Estado da Paraíba consegue pagar em dia os precatórios e consegue efetivar investimentos."
No que foi seguido por Luiz Carlos Hagemann, do Rio Grande do Sul. "A suportabilidade do fundo de reserva é absolutamente saudável", disse. "O fundo de reserva poderia ser facilmente reduzido para 1%, 2%, segundo a secretaria de Fazenda."
Problema econômico ou jurídico?
A procuradora Paola Aires Lima, do Distrito Federal, afirmou que "não é um problema jurídico, mas econômico" que está sobre a mesa dos ministros do STF, ressaltando que os bancos remuneram o Estado usando a TR mais 0,5%, rendimento que seria "dez vezes menor" ao que os bancos ganham ao administrar os recursos.
"Aqui a gente vai falar de Justiça e injustiça, mas não se trata disso", afirmou. "Os bancos estão se sentindo incomodados com essa situação porque era um dinheiro que eles estavam recebendo."
O representante da Bahia, Miguel Calmon Dantas, definiu como "governança colaborativa, que gera estupefamento" o uso dos depósitos judiciais pelo Tesouro estadual.
"Entre o lucro bancário e o interesse constitucional tutelado, me parece que o interesse constitucional tutelado deve prevalecer", disse. "O que está em jogo é a manutenção de um sistema que até então favoreceu os bancos."
O procurador do Mato Grosso do Sul, Ulisses Viana, definiu como "criatividade do bem" a administração de recursos de depósitos estaduais pelos governadores e prefeitos. Falando em nome do Colégio Nacional de Procuradores-Gerais dos Estados, Viana também apresentou o questionamento da PGR como um "conflito econômico" e não jurídico. "Há um jogo semântico que oculta um conflito de interesses que de constitucional não tem nada."
"Risco de insolvência" 
Ex-conselheiro da Caixa e do Banco do Estado do Ceará, o diretor de Regulação do Banco Central, Otavio Dalmaso, afirmou que o tema em disputa no Supremo imputam diferentes tipos de riscos para os litigantes e para os bancos - naturalmente maiores para aqueles que estes.
Segundo o representante do regulador do sistema financeiro nacional, é preciso formatar bem os fundos de reserva, com percentuais que permitam uma atuação prudencial efetiva pelos bancos, algo que caberia ao Supremo decidir numa eventual modulação da decisão sobre a ADI proposta pela PGR.
"Quanto menor for o fundo de reserva, maior será o risco de que o vencedor [do litígio judicial] não receba o recurso que lhe cabe e isso pode gerar conflitos de diversas naturezas na relação entre depositantes,  bancos e entes federados", afirmou.
Dalmaso ressaltou que o ideal do ponto de vista da regulação seria uma norma mesma para todo o país, em vez de diferentes percentuais de fundos de reserva em cada Estado. "Controles mais complexos e riscos mais elevados resultam em riscos mais elevados e provisões [mais altas]", apontou.
Outro aspecto levantado pelo diretor do BC foi a falta de regras claras sobre a responsabilidade dos bancos em relação à disponibilidade do fundo de reserva. '
"A falta de certeza de que, em hipótese alguma, o banco depositário será obrigado a pagar ao depositante, na ausência de recursos no fundo de reserva, ou de transferência deste recurso pelo ente federado, impõe riscos aos bancos", afirmou o diretor, acrescentando que o caso envolve "risco de liquidez, risco de imagem atual ou prospectivo, risco legal e, no limite, risco de insolvência".
Pagando a causa
Administrador de R$ 114 bilhões em depósitos judiciais, o Banco do Brasil fez uma defesa enfática da inconstitucionalidade de leis que permitem o uso destes recursos por governos estaduais e municipais.
"A justificativa apresentada assusta, e não assusta porque é uma inovação ou porque os bancos estão fazendo drama. Estão apresentando aqui crises econômicas, déficit público e esses depósitos como a solução para estes problemas", afirmou Jorge Elias Nehme, advogado do BB. "Depósito judicial é recurso extraorçamentário."
Para rebater os argumentos dos Estados sobre as regras que protegeriam os bancos, por prever a interrupção de repasses e mesmo o sequestro de valores do caixa do Tesouro para permitir o pagamento de uma sentença ou acórdão, Nehme lembrou o que ocorreu com os planos econômicos.
"Os bancos cumpriram as regras e aplicaram o índice de correção definido pelo governo", atualização esta que agora é contestada por depositantes no Supremo. "Será que lá na frente os bancos não vão ter que pagar, se não houver dinheiro no fundo de reserva?"
Nehme citou dois casos ocorridos em São Paulo recentemente: no município de Serra Negra, o BB foi obrigado a reconstituir depósito judicial, usado pela prefeitura. Em Americana, uma liminar impediu que o banco fosse obrigado a reconstituir outro depósito.
"Por que os depósitos judiciais foram parar nos bancos? Porque o Poder Judiciário não tem expertise para gerir. Não há histórico de alguém que tenha ido ao banco sacar um alvará e não tenha conseguido", sintetizou, antes de especular sobre um cenário possível se a ADI for derrubada: alguém vencer uma disputa judicial, mas não receber os recursos, entrar com nova ação para execução e terminar com um precatório nas mãos 10 anos depois.
A avaliação do caso em meio à recessão econômica e queda na arrecadação de tributos impõe uma decisão dura aos ministros do Supremo Tribunal Federal. Caberá ao plenário decidir quem, em última instância, terá uma folga nos balanços usando recursos de terceiros. Se os bancos públicos ou os governos.
Não há data para a ADI ser julgada pelo plenário.

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JOTA

STF decidirá questão em ADI proposta pela PGR

Uso de R$ 160 bilhões em depósitos judiciais opõe Estados e bancos

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