Gustavo Badaró*

A imprensa divulgou recentemente que houve interceptação telefônica judicialmente autorizada de conversa entre acusado Roger Abdelmassih e seu psiquiatra. Claro, em uma situação excepcionalíssima, em que não se tratasse de assuntos cobertos pelo sigilo médico paciente, isso seria perfeitamente possível.
Mas no caso, eram gravações do conteúdo de um paciente – o acusado – com o seu psiquiatra. E o teor das conversas revela que se tratava efetivamente de conteúdo relacionado à atividade profissional de um psiquiatra com o seu paciente. Aliás, uma das reportagens traz um subtítulo “o médico no divã: o que o estuprador dizia ao seu psiquiatra”. E, mais, consta em reportagem: “Abdelmassih reservava uma linha telefônica exclusivamente para sessões à distância com um psiquiatra que o atendia em São Paulo”.
Cabe então a pergunta: como fica o sigilo médico em consultas por telefone? Ou, mais genericamente, a tecnologia pode justificar o fim dos sigilos profissionais ou religiosos?
O sigilo da relação advogado e cliente não se liga ao local em que o atua o profissional. A proteção destina-se ao exercício da atividade advocatícia. Não está protegido somente o documento que o cliente leva em mãos para o advogado. Se enviá-lo por e-mail, gozará da mesma proteção. E se houver uma consulta, não na sala de reunião do escritório, mas por telefone, isso muda a natureza da atividade? A resposta só pode ser negativa. Está protegida pela relação de sigilo entre cliente e advogado, o teor das conversas mantidas por telefone.1
O Superior Tribunal de Justiça, no caso que envolvia a entrevista concedida por Suzane Von Richthofen ao programa Fantástico, em que foram captadas conversas da acusada com o seu advogado, decidiu que a “conversa pessoal e reservada entre advogado e cliente tem toda a proteção da lei, porquanto, entre outras reconhecidas garantias do advogado, está a inviolabilidade de suas comunicações. Como estão proibidas de depor as pessoas que, em razão de profissão, devem guardar segredo, é inviolável a comunicação entre advogado e cliente”. E, o que é mais relevante para a análise da situação atual: “hipótese, conquanto tenha a paciente concordado em conceder a entrevista ao programa de televisão, a conversa que haveria de ser reservada entre ela e um de seus advogados foi captada clandestinamente. Por revelar manifesta infração ética o ato de gravação – em razão de ser a comunicação entre a pessoa e seu defensor resguardada pelo sigilo funcional –, não poderia a fita ser juntada aos autos da ação penal. Afinal, a ilicitude presente em parte daquele registro alcança todo o conteúdo da fita, ainda que se admita tratar-se de entrevista voluntariamente gravada – a fruta ruim arruína o cesto. A todos é assegurado, independentemente da natureza do crime, processo legítimo e legal, enfim, processo justo”.2
E o segredo religioso, como fica em tempos modernos, de missas que são televisionadas e, até mesmo, transmitidas pela internet?  Estaria acobertado pelo sigilo religioso uma confissão feita a um padre, mas por videoconferência, ao invés de no genuflexório do confessionário? A resposta será, igualmente, positiva. Seja pessoalmente, seja por meio virtual, o penitente dirige-se ao seu ministro de confissão religiosa em busca de uma absolvição de seu pecados. Reconhece sua culpa e busca, por meio da penitência, o perdão de seu pecados, na fórmula Te absolvo! É por isso que o segredo se justifica.
A relação médico e paciente, de alguma forma, se assemelha àquela entre o penitente e seu sacerdote. Tratando do corpo e da alma daqueles que busca ajuda, o médico muitas vezes entra nos recônditos mais profundos da intimidade, não só do doente, como de seus familiares. E isso é potencializado no caso de psiquiatras para os quais são narrados os segredos mais profundos, as angústias mais dilacerantes e, até mesmo, os crimes mais bárbaros.
O artigo 207 do Código de Processo Penal proíbe de depor as pessoas que “em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo”. Por sua vez, O Código de Ética Médica – Resolução CFM Nº 1931, de 17 de setembro de 2009 – estabelece que é vedado ao medico, em seu art. 73, “Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente”. E, o parágrafo único do mesmo artigo, prevê que “o medico está impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal” (alínea c). Aliás, já no famoso juramento de Hipócrates, consta o seguinte mandamento deontológico: “O que, no exercício ou fora do exercício e no comércio da vida, eu vir ou ouvir, que não seja necessário revelar, conservarei como segredo”. Há, pois, para o médio, o dever de sigilo, inclusive em investigações criminais ou processos penais.
Nos dias atuais, esse segredo não é absoluto. Por exemplo, não se aplica aos médicos que atuam como peritos. Mas entre as hipóteses que admitem a sua relativização não está a autorização judicial para captação de conversa telefônica entre paciente e médico.
Poder-se-á objetar que isso seria uma barreira para a descoberta da verdade e a realização da justiça. De fato, não se concebe um modelo justo de processo, em especial de natureza punitiva ou sancionatória, que não trabalhe com a verdade – ainda que inatingível – como fator de legitimação de seu resultado e critério de justiça. Verdade e justiça são, portanto, noções complementares ao exercício do poder punitivo. Se a verdade fosse indiferente para a justiça, a atividade probatória seria uma grande inutilidade, sendo melhor decidir o processo lançando os dados, com fazia o juiz Bridoye, protagonista de um dos episódios de Pantagruel.3
Isso não significa, contudo, que a verdade deve ser buscada a qualquer custo ou a qualquer preço.  O Tribunal Supremo Federal alemão em famoso julgado, decidiu que: “no Estado de Direito, existem limites intransponíveis à busca da verdade processual: não é nenhum princípio da ordenação processual que a verdade tenha de ser investigada a todo preço; o objetivo de esclarecimento e punição dos crimes é, seguramente, do mais elevado significado; mas ele não pode representar sempre, nem sob todas as circunstâncias, o interesse prevalente do Estado”. 4
No processo, como diz Nobili, a investigação da verdade e a luta contra a criminalidade devem ser conduzidas de acordo com um rito determinado, com a observância de certas regras. A dignidade e a moralidade do próprio instrumento constituem um valor em si, e limitam a atividade estatal. Se a finalidade do processo não é aplicar a pena ao réu de qualquer modo, a verdade deve ser obtida de acordo com uma forma moral inatacável.5
Não é isso que se faz, quando se admite a interceptação de conversas telefônicas entre um acusado e seu psiquiatra. O Poder Judiciário corre o risco de, assim o agindo, beber da sua própria fórmula, podendo se transformar-se no “Estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde”.
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* Livre-Docente, Doutor e Mestre em Direito Processual Penal pela USP. Professor Associado do Departamento de Direito Processual da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Advogado Criminalista. Brasil. email: gustavobadaro@usp.br
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1 - Nesse sentido: STF, MS 23.451-2/RJ, Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, j. 16.09.99, v.u.  Na doutrina: Paulo Luiz Netto Lôbo, Comentários ao Estatuto da Advocacia, 2 ed., Brasília: Brasília Jurídica, 1996, p. 57.
2 - STJ, HC 59.967/SP, 6ª Turma, Rel. Min. Nilson Naves, julgado 29.06.2006.
3 - François Rabelais, O Terceiro Livro dos Fatos e Ditos Heróicos do Bom Pantagruel, trad. Élide Valarin Oliver, Cotia: Ateliè Editorial; Campinas, Editora da Unicamp, 2006, cap. 39, p. 231-234.
4 - BGHSt, 14, 358, 465, citado por Karl Heinz Gössel. Las prohibiciones de prueba como límites de la búsqueda de la verdead en el proceso penal. InEl Derecho Procesal Penal en el Estado de Derecho. Obras completas. Dir. por Edgardo Alberto Donna, Santa Fé: Rubinzal-Culzoni, 2007, p. 148.
5 -Massimo Nobili, Il principio del libero convincimento del giudice, Milano, Giuffrè, 1.974, pp. 23-4p. 24-5.

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JOTA

As sessões psiquiátricas, por telefone, de Roger Abdelmassih

O segredo médico e a interceptação telefônica

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