Thomaz Pereira

A necessidade de autorização prévia era apenas um dos entraves para a publicação de biografias. Certamente o mais absoluto, mas longe de ser o mais importante. Em um país em que uma peça de teatro ficcional, inspirada em fatos reais, mas sem se propor biográfica ou usar o nome de pessoas existentes, <a href="http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2014/09/justica-de-sp-condena-autor-de-peca-pagar-indenizacao-mae-de-isabella.html">pode ser proibida</a>, o buraco é muito mais embaixo.
Como observou Ivar Hartmann em <a href="https://www.jota.info/mais-regras-e-menos-principio-para-a-liberdade-de-expressao">texto publicado neste mesmo espaço</a>, a principal ameaça à liberdade de expressão são os potenciais processos por parte de qualquer um retratado em uma obra que sinta sua honra e imagem lesadas. Se o medo de ser processado por ofendidos for generalizado e o seu desfecho imprevisível, por mais cuidadoso que o autor seja, todos sairemos perdendo. Hartmann, porém, é muito mais otimista quanto aos parâmetros supostamente estabelecidos pelo Supremo na ADI 4.815 para equacionar liberdade de expressão e direito à honra, bem como quais as formas de tutela disponíveis ao vencedor.
Alguns ministros decerto tentaram estabelecer tais parâmetros, mas o alcance dessa tentativa é limitado por duas razões: Primeiro, é difícil afirmar que houve efetivamente um consenso – ou pelo menos uma maioria – em alguma direção substantiva. Segundo, não é óbvio que essa discussão era de fato relevante para o desfecho dessa ADI – ou se estamos apenas diante de uma cacofonia de “obiter dicta”.
O primeiro ponto esta aparentemente oculto pela unanimidade da decisão, celebrada por toda a imprensa. Mas, apesar de todos acompanharem a relatora, houve discordâncias quanto à quando liberdade de expressão pode violar o direito a honra (um problema de quais os parâmetros para resolver o conflito), e quanto à possibilidade de retirar livros de circulação em caso dessa violação (um problema de quais as tutelas aceitas para fazer valer o direito que prevalecer). Discordâncias que não foram claramente resolvidas no plenário – seja porque o processo de decisão no Supremo não o permitiu, seja porque essas questões não estavam no objeto da ação.
Quanto ao processo decisório, como saber quais ministros de fato acompanharam todos os elementos e argumentos do voto da relatora? No caso, a ministra Cármen Lúcia produziu um voto de mais de 119 páginas que não foi lido em plenário. Distribuiu o texto aos seus pares, mas, para poupar tempo, e seguindo praxe do tribunal, apenas enunciou os pontos que considera principais. Mas, se é assim, o que foi acompanhado? O que foi escrito e não lido, ou apenas o que foi dito publicamente? Sem entrar nos detalhes, como saber se há pontos no voto com os quais, lendo com atenção, outros ministros discordariam. A ministra Cármen Lúcia não é responsável por inaugurar essa prática, que já é parte do funcionamento normal do tribunal, mas esse caso explicita os problemas de se continuar com ela.
Ao anunciar o procedimento que adotaria, a ministra Cármen Lúcia mencionou ainda que essa prática é também adotada por tribunais de outros países. Mas existe um mundo de diferença entre fazer isso no momento da deliberação (Brasil) e no momento da divulgação do acórdão (como ocorre no EUA). Em nosso caso, o plenário é o local onde se colhem os argumentos e se tomam os votos do tribunal. No caso dos Estados Unidos, a decisão é tomada a portas fechadas e o anuncio resumido ocorre no momento de publicação do acórdão. Adotar apenas parte desta praxe nos coloca em situação problemática: decide-se sobre um voto longo que não chegou de fato a ser publicizado em detalhes para todos os ministros.
E o que havia de tão complicado neste caso para exigir votos tão longos da relatora e de outros ministros? Quanto à parte unânime da decisão, os ministros pareceram não ver nenhuma dificuldade. Conforme a própria relatora, “parece de tal clareza a inconsistência constitucional das regras dos arts. 20 e 21 do Código Civil”. Mas havia mais em jogo do que isso? Em termos do que foi pedido na inicial da ADI, não. O que se questionava era a necessidade de autorização prévia, cuja inconstitucionalidade parece ter sido evidente para todos ministros.
No plenário, para além de seguidas exposições sobre a importância da liberdade de expressão, a discussão se centrou em como estabelecer os limites e, mais ainda, o que fazer quando eles são violados. Para citar apenas alguns exemplos de divergências nesses sentidos, a ministra Cármen Lúcia parece recusar a possibilidade de “recolhimento de obras após a sua divulgação”, que iguala à “censura judicial”. O ministro Celso de Mello parece concordar – apesar de excluir qualquer proteção ao chamado hate speech. Porém, os ministros Lewandowski e Gilmar Mendes discordam: havendo lesão, a possibilidade de tutela específica decorreria do próprio direito constitucional de acesso à jurisdição (art. 5o, XXXV). O ministro Barroso pretendia estabelecer a posição preferencial do direito à liberdade de expressão, mas sua tese não foi encampada pelos demais. Quanto às possibilidades de tutela, seguido pelo ministro Lewandowski, afirma que o recolhimento só deveria ocorrer em casos extremos e teratológicos. Mas que casos seriam esses?
A posição do próprio ministro Barroso tem diversas nuances. Mais difícil ainda é estabelecer o grau de concordância e discordância entre os demais ministros quanto a essas duas dimensões do problema. Com isso, essas questões continuarão a ser decididas por juízes e tribunais por todo o país sem qualquer parâmetro do Supremo – ainda que vários ministros tenham chegado a discutir esses problemas
Sem parâmetros claros, o tribunal em larga medida continua deixando os autores e editores sem a proteção de que realmente precisam para produzir. E enquanto isso, juristas se agarram a diferentes frases de diferentes votos para extrair desses fragmentos individuais aquilo que gostariam que o tribunal tivesse efetivamente decidido.

SUPRA-ALTA-HORIZONTAL-MEDIO-AZUL

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Tribunal não estabeleceu parâmetros claros aos liberar biografias não autorizadas 

Falta de parâmetros ainda é risco para produção de biografias

Tribunal não estabeleceu parâmetros claros aos liberar biografias não autorizadas