Felipe Recondo

Um homem se sente aprisionado num corpo de mulher, faz cirurgia de mudança de sexo e, a partir daí, altera toda sua identidade social – a aparência, o nome e o registro de gênero nos documentos oficiais. Essa história já é conhecida nos tribunais e a jurisprudência, pacificada. Mas imagine o caso de uma pessoa que quer alterar a identidade de gênero sem mudar, anatomicamente, o sexo. Esse é o tema do Recurso Extraordinário 670.422, que teve repercussão geral reconhecida pelos ministros do Supremo Tribunal Federal.
O placar do plenário virtual mostra que o relator do processo, Dias Toffoli, e os ministros Ricardo Lewandowski, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Celso de Mello, Cármen Lúcia, Marco Aurélio, Gilmar Mendes e Luiz Fux consideraram que o tema envolve questão constitucional e tem repercussão geral. Apenas o ministro Teori Zavascki considerou não haver repercussão geral ou questão constitucional a ser debatida.
A causa em questão é patrocinada por Maria Berenice Dias, advogada conhecida pela atuação de vanguarda na proteção dos direitos homoafetivos. O cliente dela, S.T.C., se reconhece como homem. Para se sentir melhor com sua aparência, submeteu-se a tratamentos médicos com hormônios, deixou a barba crescer e retirou os seios. Ficou satisfeito e não quer fazer a cirurgia de mudança de sexo. S.T.C. foi à Justiça e pediu a alteração de seu nome e do sexo no RG. O pedido foi negado em primeira instância e também pela 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
O caso abre a seguinte discussão: uma pessoa tem o direito de ser identificada com um gênero diferente do que seu corpo exprime? Na definição oficial do gênero do cidadão, o que pesa mais: o sentimento ou o corpo? Um sentimento, subjetivo por natureza, basta para alterar uma informação de natureza tão objetiva? Ou a definição de gênero não deve ser vista como algo tão objetivo?
Qual a necessidade de o Estado saber o gênero de seus cidadãos? Que consequências a alteração de identidade social sem as correspondentes mudanças físicas traria para o sistema de saúde? Se um garoto trocar de gênero, é dispensado do serviço militar obrigatório? E se no RG constar “gênero masculino”, mas a pessoa engravidou e quer seis meses de licença maternidade?
São essas perguntas que o STF terá de responder no recurso que pleiteia “a possibilidade de alteração de gênero no assento de registro civil de transexual, mesmo sem a realização de procedimento cirúrgico de redesignação de sexo”. Em jogo estão os seguintes princípios constitucionais: dignidade da pessoa humana, promoção do bem de todos, sem preconceito de sexo e a garantia fundamental de não ter a intimidade violada.
Para Maria Berenice Dias, tudo se resume ao direito de ser feliz. Sobre isso, ela falou ao JOTA:
Qual é a tese principal do recurso?
As pessoas têm direito constitucional à própria identidade. É uma das características do direito de personalidade. Há um punhado de direitos individuais em jogo. O Estado não pode continuar negando a essas pessoas o direito constitucional de identidade. Daí a necessidade de poder haver a adequação do nome e da identidade de gênero com o sexo com o qual a pessoa se identifica.
A senhora questiona a necessidade da operação de mudança de sexo para que essa alteração no registro fosse feita?
O Estado não pode impor que alguém se submeta a uma intervenção cirúrgica. Até porque é assunto de direito à saúde, à intimidade, ao direito ao próprio corpo. Especialmente porque, neste caso, trata-se de um trans masculino, do feminino para o masculino. A cirurgia de redesignação da identidade de gênero (no caso do feminino para o masculino) é experimental, ela não tem resultado comprovado. E a pessoa pode simplesmente não querer fazer esse tipo de cirurgia. Há toda uma adequação de outras características secundárias, como hormonoterapia, mas algumas pessoas não querem se submeter à cirurgia.
E por isso o Estado não admite a alteração do gênero nos registros oficiais?
O Estado não pode se negar a assegurar a essas pessoas o direito à identidade. Neste caso, o meu cliente tem todas as características externas do sexo masculino. Nós fomos buscar essa alteração do nome e da identidade do sexo. O Tribunal de Justiça deferiu apenas a alteração do nome.
E seu cliente não ficou satisfeito...
A maioria se conforma com isso. Mas nesse caso decidimos ir ao Supremo Tribunal Federal para que seja assegurada também a alteração do gênero sem a realização dessas intervenções cirúrgicas de transgenilização.
O recorrente fez algum outro tratamento?
Ele é do sexo masculino, tem barba e fez a retirada das mamas. E no fundo, para eles (transexuais) isso basta. Eles não veem a necessidade de ter órgãos sexuais correspondentes ao do gênero com o qual se identificam. Meu cliente não fez a cirurgia.
Então a identidade dele tem o nome de um homem com o sexo de uma mulher?
Fica um ser híbrido. Entende? Tem nome de homem, mas o gênero é feminino. Eu acho que ainda existe esta afronta aos princípios constitucionais.
Uma decisão como essa do TJRS afronta que direitos?
O direito fundamental à felicidade é o direito mais significativo que a pessoa busca. E o Estado tem o dever de assegurar. Ninguém é feliz se não consegue ser identificado o sexo com o qual se reconhece e se identifica. Para mim, esse é o princípio mais importante. Ele não está expresso constitucionalmente, mas se o Estado garante vida, saúde, moradia, dignidade, igualdade, proíbe a discriminação, está garantindo a felicidade. Para mim esse é o grande compromisso do Estado. Dentre os princípios constitucionalmente consagrados, o da dignidade da pessoa humana é o que mais respalda esse tipo de pretensão.
Que tipo de consequência esse registro duplo acarreta?
Com a alteração só do nome e não do sexo, já existe uma violação da intimidade. Fica muito escancarado que se trata de um transexual. E a pessoa tem o direito à sua identidade preservada. Coloca ali o nome masculino, mas quando aparecer o sexo identificado como feminino, vão saber que só pode se tratar de um transexual. Isso viola esse direito e a dignidade da pessoa humana.
Há alguma outra situação que a senhora mencionaria?
Você acha que uma pessoa consegue se casar se não tem sua identidade de gênero alterada?Ela não tem obrigação de revelar ao parceiro qual a sua identidade sexual. De repente, ele namora uma pessoa e tal, mas quando vai se casar, apresenta a certidão de nascimento e vai aparecer que é do sexo feminino.
Mas o parceiro não teria um dever moral de dizer isso ao outro?
Mas se é moral a Justiça não tem nada a ver com isso. O parceiro deve dizer para o outro que fez cirurgia plástica? Precisa a mulher dizer para o parceiro que fez reconstituição do hímen, que fez lipoaspiração, que usa megahair? A sexualidade não é da ordem da genitalidade.

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JOTA

STF julgará se pessoa pode mudar identidade de gênero sem mudar anatomicamente o sexo

Mudança de gênero sem mudança de sexo

STF julgará se pessoa pode mudar identidade de gênero sem mudar anatomicamente o sexo