Ana Carolina Haliuc Bragança
LLM em Direito Ambiental pela University College of London, é especialista em Direito Ambiental pela UFPR e procuradora da República no Amazonas
Em 2021, o Brasil presenciou a maior crise hídrica dos últimos cem anos. No mesmo ano, o Rio Negro, no norte da Amazônia, vivenciou sua maior cheia da história registrada. A conta desses extremos veio em energia elétrica encarecida, racionamentos hídricos, agravos à saúde de milhares de pessoas, inundações, perdas de safras por falta ou excesso de chuvas.
Os exemplos, que se proliferam no Brasil e no mundo, mostram não ser nenhuma novidade, mesmo fora da academia, o fato de que as mudanças climáticas causam danos em dimensões diversas. Não é tão simples, porém, compreender 1) se e em que extensão o Direito reconhece esses danos como passíveis de reparação, e 2) em que medida ou quantificação ela se manifesta. Esse breve texto introduz algumas ideias quanto a esses pontos.
Em primeiro lugar, os danos derivados de emissões de gases de efeito estufa (GEE) não necessariamente precisam ser avaliados à luz de prejuízos individualmente causados a seres humanos. As mudanças climáticas aumentam a frequência e intensidade de eventos climáticos extremos e, a partir disso, a incidência de contextos danosos a todas as pessoas, com perda de vidas, aumento de agravos à saúde, perda de patrimônio e comprometimento de atividades econômicas.
Porém, emissões de GEE ocasionam, também, danos ao meio ambiente em si, e a seu equilíbrio. No Brasil, o meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito de todos, um direito difuso e reconhecido tradicionalmente pelo Supremo Tribunal Federal (STF) como direito fundamental. Na linha defendida por Quirico, observo que danos ao equilíbrio do meio ambiente, por si só, já podem ser associados a emissões indevidas, com estabelecimento facilitado de nexo de causalidade, independentemente da posterior vinculação do resultante desequilíbrio a prejuízos individualizáveis para pessoas específicas[1].
Todos sofrem danos em função do agravamento do desequilíbrio ambiental-climático. E basta emitir para agravar esse dano. Como estabelecido no célebre julgado da Suprema Corte dos Países Baixos no caso Urgenda, toda emissão importa, justamente por colaborar para o estado de crise climática do planeta.
Por outro lado, adotada essa premissa, chega-se a outra pergunta: se algumas emissões são inevitáveis e permitidas pelo Direito, como definir o momento a partir do qual surge o dever de indenizar? Veja-se que, aqui, já ultrapassamos a questão do nexo de causalidade. O nexo existe: as emissões contribuem para as mudanças climáticas.
A nova questão é saber a partir de que ponto elas se tornam inaceitáveis juridicamente para o fim de ensejar o dever de reparar. A resposta a essa pergunta não pode estar no nexo de causalidade, uma vez que, tomado o dano ao meio ambiente como parâmetro, esse nexo é inerente a qualquer emissão.
A academia precisa se debruçar sobre essa problemática, mas eu sugiro como ponto de partida a ideia de emissões ilícitas: são juridicamente relevantes, para o fim de gerar o dever de reparar, no Direito brasileiro, no mínimo as emissões ilícitas, isto é, que jamais deveriam ter acontecido porque proibidas pelo ordenamento. Esse é o caso, por exemplo, do desmatamento em espaços territoriais especialmente protegidos, como terras indígenas, unidades de conservação, e projetos de assentamento ambientalmente diferenciados, excluída a hipótese de subsistência. Acentuo o destaque desse parâmetro de ilicitude absoluta das emissões como um parâmetro mínimo, pois haverá espaços cinzentos – como de emissões que poderiam ter sido permitidas, mas não o foram – para os quais deverão ser construídos critérios específicos e vinculados à natureza da atividade emissora, ao local da atividade, ao impacto sobre microclima etc.
Finalmente, ocorridas emissões proibidas pelo ordenamento, e surgindo para o emissor o dever de indenizar, é preciso quantificar os danos. Qual a extensão do dano causado ao meio ambiente em função da emissão de determinado número de toneladas equivalentes de carbono?
O primeiro passo dessa tarefa é, justamente, calcular quantas sejam essas toneladas. A ciência avança bem nesse sentido. Para o desmatamento na Amazônia, por exemplo, podemos usar ferramentas como a Calculadora de Carbono do IPAM (Instituto de Pesquisas da Amazônia). Para precificar o carbono, poderiam ser utilizados critérios como as cotações em diferentes mercados, regulados ou não. Contudo, os mercados são muito variáveis entre si. Não existindo, por ora, uma cotação oficial no Brasil ou no mundo, uma opção, em especial para o caso do desmatamento na Amazônia, é a adoção do parâmetro utilizado para captação de recursos pelo Fundo Amazônia – um fundo instituído normativa e oficialmente pelo Estado brasileiro. O Fundo Amazônia capta recursos atribuindo um valor ao custo de prevenção da emissão de uma tonelada equivalente de carbono na Amazônia, e estima esse custo em US$ 5. Seria o preço a ser pago para que o carbono não seja emitido. Trata-se de um montante que pode ser pensado como parâmetro mínimo de danos, já que evitar emissões tende a ser mais barato do que, por exemplo, capturar carbono. Esse é o critério que o Ministério Público Federal vem usando em ações civis públicas no Amazonas que reclamam, além de demais formas de dano ambiental, danos climáticos associados ao desmatamento.
As questões associadas à construção do conceito de dano climático carecem de aprofundamento acadêmico e doutrinário. As ideias aqui expostas são muito introdutórias e talvez deixem mais perguntas do que efetivas respostas. Há um temor de que a banalização da ideia a conduza à morte precoce, e todo cuidado é necessário para que se estudem e definam precisamente as hipóteses nas quais o dever de indenizar exsurge, e em que dimensão ele o faz. Fica o convite para meditação a respeito do tema, com o zelo e profundidade que o tema exige. O debate promovido no “Diálogos Pelo Clima” é uma boa oportunidade para aprofundamento.
[1] QUIRICO, Ottavio. Climate Change and State Responsibility for Human Rights Violations: Causation and Imputation. In Netherlands International Law Review (2018) 65: 185-215, DOI https://doi.org/10.1007/s40802-018-0110-0