Fake news e coronavírus

Covid-19, segurança cibernética e desinformação online

Perfis de um inimigo comum

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Crédito: Pexels

A escalada da pandemia do Covid-19 despertou enorme atenção da comunidade internacional e especialistas em tecnologias quanto aos riscos trazidos à segurança cibernética e aumento da desinformação online. Governos, órgãos legislativos e judiciários, empresas de internet, sociedade civil e academia têm respondido de distintas formas e velocidades enquanto ataques cibernéticos, criminalidade e notícias falsas nas redes se sofisticam em curto período de tempo.  Segundo recente relatório da Europol, o quadro de pandemia e as medidas de isolamento em resposta à emergência sanitária global, decretada pela Organização Mundial de Saúde, criaram o cenário propício para a atuação de criminosos cibernéticos em distintos países da União Europeia. Evidentemente, isso ocorreu pelo aumento do número de pessoas em quarentena em suas casas, a executar tarefas de trabalho remoto, sozinhas ou a cuidar de familiares, a consumir produtos e serviços online, a se comunicar e interagir com o mundo digital em larga escala.

O relatório da Europol observa, ainda, que a organização tem monitorado os desdobramentos da expansão do Covid-19 sobre a internet e verifica a relação dos indicadores com a elevação dos incidentes de segurança e crimes cibernéticos. Eles não são novos, porém, de acordo com a agência, tornam-se potencializados com o cenário da pandemia. Dentre eles são destacados: a disseminação de aplicativos maliciosos para roubo de dados e vigilância de usuários de internet; ataques distribuídos de negação de serviço (conhecidos como  DDOs- ‘Distributed Denial of Service’, em inglês, e que resultam em acesso negado ao usuário); exploração sexual infantil; operações arquitetadas e executadas a partir da ‘dark web’ (que não se confunde com a ‘deep web’); e as já conhecidas “ameaças híbridas”.  No campo da política e relações internacionais, ameaças híbridas resumem as principais formas e procedimentos envolvendo  campanhas de desinformação e operações de interferência em sistemas informáticos e computacionais de organizações, governos e empresas.

Essas práticas, importante observar, têm autores variados, desde indivíduos, grupos organizados, empresas e agentes governamentais dentro de um mesmo país ou estrangeiros. Por essa razão, a área de segurança cibernética, cada vez mais sob holofotes, estrutura-se de modo a compreender não apenas as características, tipificação e incentivos para de práticas de ameaça, incidentes de segurança e atividades criminosas. Elas levam em conta, também, os múltiplos arranjos e relacionamento entre atores estatais e não estatais (para além do Estado, portanto) que organizam atos que atentam contra a segurança das redes, dos dados e da informação. E, de modo deliberado, tais atos buscam causar dúvidas, induzir comportamentos e, em certos quadros mais graves, como o da pandemia do Covid-19, promover ou o pânico ou a aparência de normalidade.

A dificuldade de percepção, contudo, está na sutileza das formas. Nesse momento, é sempre prudente evitar confusões entre categorias de desinformação online, manipulação de conteúdo e notícias falsas, para que as respostas em termos de políticas e atuação de advocacia sejam consistentes em relação a imperativos constitucionais, como segurança, justiça e liberdades civis.  Essa tem sido a carência, muitas vezes, dos sucessivos apelos e narrativas de leis e programas nacionais de controle e repressão de crimes cibernéticos, ao buscar tipificações para crimes de “fake news”, com riscos efetivos à liberdade de expressão e imposição de novas manifestações de autoritarismo digital. Deixamos o debate, contudo, para outra oportunidade. Ele é extenso.

O fato é que, ainda em meio à repercussão do COVID-19 em diferentes partes do globo, ações de desinformação online, especialmente por manipulação de conteúdo e produção de notícias falsas passaram a servir de estratégia de indivíduos, grupos e agentes de governo para desestabilizar medidas de políticas de segurança sanitária recomendadas pela OMS e adotadas por Estados. No Brasil, Ministério da Saúde, secretarias estaduais e municipais foram acompanhando boletins e diretrizes da organização e consultando especialistas para esclarecer e incentivar a população a medidas de distanciamento social e quarentena. Aos poucos, a realidade de convivência com o Covid-19 e a destruição causada em várias partes do globo também serviram para antecipar uma série de premissas a serem validadas entre nós: a inadequação do modelo vigente de política economia brasileira de absenteísmo quanto às demandas de proteção social; intensa dependência industrial e tecnológica por insumos essenciais em graves emergências sanitárias; e a obsessão de agentes de poder por postulados provinciais, obscurantistas e de ‘junk science’, e que inspiram, inclusive, alguns projetos de leis e decisões judiciais no país.

O confronto entre desinformação online e saúde pública, por sua vez,  chamou mais uma vez atenção de especialistas para preocupações em torno dos mecanismos reforçados de “segurança informacional” (que não é sinônimo de segurança cibernética). Ela é componente central das capacidades existentes e potenciais de governos, empresas e organizações de produzir e compartilhar informações acuradas, baseadas em fontes confiáveis e, no caso de emergência sanitária, de autoridades internacionais e domésticas, como a OMS e Ministérios da Saúde dos países. Se formos mais além, a fabricação e circulação de notícias falsas ou de conteúdo manipulado sobre origem do coronavirus ou as formas de contágio e transmissão da Covid-19, à semelhança do que já ocorria, em larga escala, com as deliberadas campanhas antivacinação online, revelam outras roupagens de ‘conteúdo nocivo’. Elas escapam das plataformas e redes sociais e transcendem a internet como espaço vital de comunicação, de acesso e construção de conhecimento e de participação democrática.

Exemplos recentes foram potencializados por autêntico casamento de conveniência entre a pandemia do Covid-19 e teorias conspiracionistas, negacionistas e o próprio autoritarismo que ronda as sociedades e a esfera política em escala global. Em episódios envolvendo a Rússia e Serviço de Ação Externa da União Europeia, a mídia estatal russa e pró-Kremilin promoveu  campanha de que o coronavirus representaria a mais letal “arma biológica” desenvolvida pela China, Estados Unidos e Reino Unido. O objetivo das ações seria justamente o de agravar a situação de crise dos sistemas públicos de saúde desses países, além de estimular desconfiança da população nas medidas de enfrentamento do Covid-19.  A China, por sua vez, havia deixado de comunicar precisamente os dados relativos ao início da pandemia no país à OMS, bem como as formas de contágio na população, o que gerou imediata crítica internacional à conduta do governo central chinês. Esse dado isoladamente não poderia, entretanto, validar teses científicas sobre origem do vírus, como inveridicamente circularam, à exaustão, em postagens e mensagens pelas plataformas.

Nas últimas semanas, o Brasil sentiu os efeitos negativos das múltiplas frentes da desinformação e  manipulação de conteúdo online. Elas contribuem para desmantelar os próprios fundamentos da disciplina legal do uso da internet, além de expor a irresponsabilidade de agentes políticos. Postagens do presidente Bolsonaro desautorizaram informações oficiais e base de conhecimento científico sobre a doença com o objetivo de disseminar informações sobre o uso de medicamento ainda não testado inteiramente por protocolos clínicos e de segurança. Em episódio anterior, o deputado Eduardo Bolsonaro reproduziu vídeo do Dr. Dráuzio Varella fora de contexto para endossar opinião não consentânea com o estágio de desenvolvimento da pandemia para contestar as medidas adotadas pela OMC e distorcer debate como mesmo travado nos Estados Unidos. São condutas que corroboram as faces brutais da geopolítica da desinformação e ambivalência dos sentidos dados por governantes e mandatários às liberdades de expressão e de opinião política.  Não se trata propriamente de grau de toxicidade na forma como as ideias são expressadas, mas sim dos efeitos nocivos que elas representam para a vida, saúde pública e meio ambiente. Em graus idênticos, são também efeitos deletérios para os direitos humanos, desenvolvimento da personalidade, exercício da cidadania e a finalidade social da internet. No atual estágio, uma inferência mesma ao Marco Civil da Internet, em seu Art. 2º, não poderia ser meramente consequencialista.

As discordâncias vão mais além de acusações descabidas de censura por parte de opositores políticos e de plataformas de internet, ou movida por forças ocultas externas. Elas pressupõem a discussão sobre imperativos éticos e compromissos com a verdade, a forjar cenários muito sensíveis para a interlocução e os destinatários das mensagens. A construção de narrativas contra a batalha científica e médica para deter a rota de expansão do Covid-19 no globo chegou com força em vários países, ameaçando instituições democráticas e a onipresença do conhecimento. A emergência e a consolidação da pandemia  demonstram, dia após dia, que a desinformação online pela manipulação de conteúdo e notícias falsas tem o manifesto potencial de prejudicar populações, minorias, grupos e, definitivamente, afetar economias nacionais.

Estudos científicos, por sua vez, são embasados por evidências de que quarentena e isolamento de doentes em crises pandêmicas são cruciais para a recuperação dos mercados e desenvolvimento sustentável em torno da proteção da vida e saúde. A depender do método e das escolhas puramente pessoais de um dos interlocutores, a desinformação é utilizada para deliberadamente levar o público a comportamentos que expõem a sociedade e o meio ambiente a riscos e a danos potenciais ou reais. Eles se expressam em alcance, gravidade e gradação de responsabilidade muito maiores do que aqueles da expressão de ideias ou opiniões indesejadas ou contrárias a “ideologias”. Aliás, a disputa pela vida e suas desavenças já constituem o substrato de uma ideologia relevante.

Como, então, endereçar a desinformação em tempos de Covid-19? Sociedade civil, indústria, advocacia, judiciário e academia têm seriamente conduzido, em ações complementares, as tarefas de compreensão e  enfrentamento das desinformação online associada à pandemia. Elas afetam infraestrutura críticas e de saúde pública, podendo intensificar perdas incalculáveis para as populações. Ferramentas de detecção em plataformas, verificação de fatos, compartilhamento de estudos, relatórios e indicadores científicos por base de dados de universidades e centro de pesquisa, assim como cooperação e capacitação técnicas, permanecem como fontes confiáveis para auxiliar sociedades no combate à pandemia.  São tarefas compartilhadas que reforçam o papel da internet e novas tecnologias como “aliadas sociais cruciais”. No presente estágio, elas reúnem esforços para contenção da infecção e tratamento de doentes do Covid-19. Experiências recentes ao redor do mundo, passando pela China, Coreia do Sul, Japão e Europa demonstraram soluções bem-sucedidas, com as devidas ressalvas às questões de vigilância cibernética e privacidade de cidadãos que ficariam para uma rodada futura de discussões.

O Brasil, em muitas de suas instituições, não deve deixar de responder às formas como o Covid-19 evolui e se estabiliza em picos de contágio e adoecimento. Deve empregar melhores padrões e práticas, dentro da governança da internet e das tecnologias, para conscientizar, acolher e rechaçar qualquer tipo de discriminação, estigma ou segregação de seus cidadãos.  Presente e futuro continuarão devedores de tantas pessoas que sofreram com influenza, poliomielite, ou as que ainda sofrem com tuberculose, hanseníase e HIV/AIDS.  Por isso, profissionais da saúde, garis, caixas de supermercado, entregadores, jornalistas, assistentes sociais e todos aqueles que prestam serviços essenciais, conquistam enorme respeito diante da batalha contra o Covid-19. Contribuem, cada qual a sua medida, para um bem social maior que também se agrega invisivelmente aos frios indicadores de desenvolvimento humano, crescimento econômico e valorização do trabalho.  O depoimento pessoal de todos e as experiências efetivas trocadas constituirão conjunto relevante de informações e conhecimento, cujo valor em termos de auxílio humano a internet não poderá capturar.  A elas e eles nossa enorme gratidão!

Ao retomarmos o mote do artigo, reconheceremos o quanto somos vulneráveis diante de um inimigo comum. Valendo-se de figura alegórica, ele não tem cara, cor, sexo, gênero ou nacionalidade. Trata-se mais de momento de apelo à resistência e sobrevivência e que, em nenhuma circunstância, poderia ser reduzido a imaginário da “crise”. As vítimas em potencial estão hospedadas nos lares, alguns em maior segurança e conforto; outros em comunidades e ocupações, em desespero e sofrimento pelo completo abandono das políticas de assistência, educacionais, de saneamento básico e de pleno emprego. Não diferentemente, todos estarão suscetíveis às várias forma de ameaça- virtual ou não. A brutalidade, talvez, permaneça na insistência dos agentes de poder de rechaçar a importância da vida e validade soberana do conhecimento, da  ciência, da sabedoria, do cuidado e da solidariedade – armas tão poderosas, mas que sofrem de desabastecimento em tantos locais do mundo.

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