Susana Henriques da Costa

Carlos Alberto De Salles

Marina Garrote

Mariana Tonolli Chiavone Delchiaro

Tinham chamado a gente prá festa de um livro que falava da gente e a gente se comportava daquele jeito, catimbando a discurseira deles. Onde já se viu? Se eles sabiam da gente mais do que a gente mesmo? Se tavam ali, na maior boa vontade, ensinando uma porção de coisa prá gente da gente? Teve uma hora que não deu prá agüentar aquela zoada toda da negrada ignorante e mal educada. Era demais. Foi aí que um branco enfezado partiu prá cima de um crioulo que tinha pegado no microfone prá falar contra os brancos. E a festa acabou em briga... (LÉLIA GONZALEZ, 1984:223)<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
Com o isolamento social decorrente da pandemia, inúmeros eventos acadêmicos passaram a ser realizados em ambientes virtuais. As conhecidas “lives” e webinários tornaram-se a forma de produção e propagação de conhecimento em tempos de quarentena, possibilitando a realização de um enorme número de eventos, bem como o estreitamento de fronteiras e intercâmbio de professores/as e pesquisadores/as em ambiente virtual.
Se, por um lado, o ambiente virtual tornou-se campo fértil para os debates acadêmicos e difusão de conhecimento, por outro lado, há maior exposição a manifestações de intolerância. Grupos de ódio e ideologias discriminatórias (racistas, sexistas, LGBTIfóbicos), de forma organizada e recorrente, valendo-se do anonimato das redes, têm invadido eventos acadêmicos com o intuito de silenciar vozes de grupos minoritários e frustrar a produção de conhecimento voltado aos direitos humanos.
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No último dia 24, o grupo de pesquisa “Acesso à justiça e litigância repetitiva”, da Faculdade de Direito da USP, teve seu evento invadido por um grupo racista no debate do tema “Acesso à justiça e o racismo estrutural”<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[2]</a>.
Tratando-se de um grupo acadêmico comprometido com o debate do acesso à justiça, o racismo não poderia ser excluído da agenda. Sendo um grupo composto por homens brancos e mulheres brancas, não possuindo lugar de fala, assim foram expositores do evento Amarilis Regina da Costa Silva, advogada, presidenta da Comissão de Graduação, Pós Graduação e Pesquisa da OAB-SP, professora negra e Vinicius Conceição Silva, defensor público, coordenador auxiliar do Núcleo Especializado de Defesa da Diversidade e da Igualdade Racial, professor negro.
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<li>+JOTA: <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/serie-voz" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Tudo sobre a Série Voz</a></li>
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Enquanto a responsável do grupo pela introdução do evento foi ouvida sem nenhuma intercorrência, o ataque se deu justamente no início da fala de Amarilis, evidenciando a intenção de silenciar a sua participação no debate.
Em um país no qual uma mulher é assassinada a cada duas horas, sendo 68% delas negras, em que negros são 75,7% das vítimas de homicídio, em que 420 pessoas LGBTQI+ foram mortas simplesmente por existirem, qualquer postura que não seja proativamente antidiscriminatória pelas Universidades fica aquém do seu papel social.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[3]</a>
O evento atacado faz parte desse compromisso em repercutir e amplificar as vozes, conhecimentos, histórias e lutas de grupos marginalizados pelo acesso à justiça, direito crucial em uma perspectiva democrática para garantia de cidadania a todas e todos. Especificamente, o episódio destaca o papel da Universidade em romper com as estruturas sociais racistas.
<blockquote class="jota-article__eye">Os ataques, por outro lado, se inserem no contexto político atual, fomentador de posturas antidemocráticas no debate público.</blockquote>
No entanto, como disse Jurema Werneck, no texto “Nossos passos vêm de longe”<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[4]</a>, a luta das mulheres negras e do povo negro acontece desde sempre e não será oculta. Esperança Garcia, mulher negra africana, escravizada no século XVIII, escreve em 1770 uma carta de próprio punho direcionada ao governador do Piauí expondo os atos de violência por elas sofridos e requerendo sua intervenção para que voltasse a morar com seu marido e filhos. Luiz Gama, advogado, jornalista e escritor, dedicou-se ao combate à escravidão e defesa de uma República, tendo libertado mais de 500 escravos de forma completamente gratuita.
Em segundo plano, houve tentativa de frustrar a liberdade de expressão, pensamento e reunião de um grupo acadêmico. O exercício dessas liberdades constitucionais forma o alicerce da democracia e, não por acaso, está protegido entre os direitos fundamentais de nossa constituição. Deve ser garantido às Universidades – como a qualquer cidadão – o livre exercício da liberdade de expressão e pensamento. Como colocado pela Ministra Cármen Lúcia, no julgamento da liminar da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 548, “a única força legitimada a invadir uma universidade é a das ideias livres e plurais”<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[5]</a>.
<blockquote class="jota-article__eye"><a href="#_ftnref1" name="_ftn1"></a>O atentado que atingiu o evento da Faculdade de Direito da USP torna evidente e reforça o papel da Universidade em romper com o racismo arraigado na sociedade.</blockquote>
Às Universidades, as públicas em especial, incumbe permear o ensino com valores democráticos e emancipatórios, promovendo a diversidade na composição de seus quadros de alunos, pesquisadores e docentes. Às Faculdades de Direito, o compromisso se torna ainda mais relevante, na medida em que responsáveis pela formação de operadores do direito.
A Universidade não pode se calar diante da tentativa de silenciamento de vozes de negros e negras, mulheres, LGBTI, indígenas, quilombolas e todos os grupos sociais minoritários de nossa sociedade, bem como da violência contra a liberdades fundamentais.
É momento de transformar a tentativa de silenciamento em força de agir para que os espaços de construção do saber sejam cada vez mais plurais e democráticos. É momento de impedir o retrocesso de direitos já conquistados e avançar no debate para fomentar uma democracia de e para todas e todos.
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JOTA inaugurou "Voz", uma série de artigos com juristas renomados dedicada a discutir questões relacionadas à raça e o direito. O pontapé inicial foi dado com o webinar "Voz: debate sobre direito e raça". Ouça:
https://youtu.be/KcZxQanonT0
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244. Disponível em: <a href="https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4584956/mod_resource/content/1/06%20-%20GONZALES%2C%20L%C3%A9lia%20-%20Racismo_e_Sexismo_na_Cultura_Brasileira%20%281%29.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4584956/mod_resource/content/1/06%20-%20GONZALES%2C%20L%C3%A9lia%20-%20Racismo_e_Sexismo_na_Cultura_Brasileira%20%281%29.pdf</a>
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[2]</a> Na ocasião, a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, bem como o Departamento de Direito Processual da FDUSP emitiram notas públicas de repudio ao ataque racista cibernético, reafirmando o compromisso com valores democráticos e a colaboração para apuração e punição dos responsáveis. Disponíveis em: <a href="https://adobe.ly/2HM9Fdz" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://adobe.ly/2HM9Fdz</a> e <a href="https://www.conjur.com.br/2020-nov-25/webinario-usp-racismo-alvo-ataque-virtual" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://www.conjur.com.br/2020-nov-25/webinario-usp-racismo-alvo-ataque-virtual</a>. Acessos em 29 nov. 2020.
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[3]</a> Dados de 2018, atlas da violência 2020: <a href="https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2020/08/atlas-da-violencia-2020.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2020/08/atlas-da-violencia-2020.pdf</a>
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[4]</a> <a href="https://www.geledes.org.br/mulheres-negras-em-marcha-esses-passos-vem-de-longe/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://www.geledes.org.br/mulheres-negras-em-marcha-esses-passos-vem-de-longe/</a>
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[5]</a> Disponível em: &lt;<a href="http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=394447" target="_blank" rel="noopener noreferrer">http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=394447</a>&gt;. Acesso em 29 nov. 2020.

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JOTA

No último dia 24 de novembro, webinário da Faculdade de Direito da USP foi invadido por um grupo racista

Universidade pública livre: o combate à discriminação em tempos de lives

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