Fabrício Polido

Há algumas semanas o debate sobre o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/pl-2630-2020">PL 2630/2020</a> (Lei de Liberdade, Transparência e Responsabilidade na Internet) ganhou o que poderia ser denominado de "virada institucional para espetacularização", sobretudo pela discussão de saber qual "autoridade" seria mais adequada para supervisionar e sancionar plataformas digitais, especialmente as redes sociais, e das vantagens e qualidades das candidatáveis ao posto.
É bem verdade que o PL 2630 previa originalmente a criação de uma entidade supervisora autônoma responsável por estabelecer diretrizes para moderação de conteúdo e aplicar sanções às plataformas. À primeira vista, a ideia parecia muito mais um aditivo ao recrudescimento da demanda legítima de proteção das instituições democráticas diante dos trágicos desdobramentos do infame dia 8 de janeiro, por episódios que não poderíamos sequer cogitar de repetição ou deixar de condenar.
No entanto, na última versão do texto do PL 2630 no final de abril, o deputado Orlando Silva (PC do B-SP), relator do projeto, retirou a previsão de criação de uma entidade autônoma de supervisão das plataformas. Segundo as visões expressadas pelo experiente parlamentar, a criação do órgão, apresentada como uma proposta trazida pelo poder Executivo, não teria apoio suficiente para garantir a aprovação do texto na Câmara, algo a demonstrar tanto dúvidas e reticências próprias do jogo político no Congresso como também a reduzida adesão dos deputados da atual legislatura à matéria em discussão.  
Ainda assim, a alternativa de desenho institucional para "regulação das plataformas" passou a ser tratada entre parlamentares, o próprio Poder Executivo, órgãos da Administração Pública federal, inclusive as agências reguladoras existentes. Muito se falou muito sobre a necessidade de estabelecimento de autoridade regulatória especializada em conteúdo online, independente e livre de interferências políticas, como condição necessária e democrática para aplicação das leis brasileiras no ambiente digital.
Da mesma forma, colocava-se ponto final em uma proposta de autorregulação regulada, um modelo que permitiria às empresas criarem seus próprios códigos de conduta, sob a supervisão de uma entidade independente. A perda de força deu-se justamente pelas dificuldades trazidas por mecanismos de tomada de decisão por organizações corporativas ou representativas da indústria e que não estariam imunes aos crivos de controle interno e externo, incluindo o judicial. Seria muito difícil levar adiante essa proposta sem antes (re)pensar as falhas mais profundas existentes no modelo de regulação da internet no mundo, assim como na necessária revisão do Marco Civil da Internet brasileiro. Por isso, a solução de desenho regulatório pelo PL 2630 – pontualmente considerada e focalizada em redes sociais – seria remédio de baixa eficácia comprovada.  
Dentre as discussões, no entanto, a Anatel surgiu cotada como autoridade para supervisionar redes sociais, com argumentos que justificariam suas vantagens, como profundo conhecimento sobre o setor de regulação; experiência institucional; impacto orçamentário reduzido; capacidade institucional existente e instalada; corpo técnico altamente qualificado; expertise em fiscalizar falhas de funcionamento das redes sociais; abertura para realização de consultas públicas e facilidades de contatos e baixo potencial de interferência governamental. Se somente esses pudessem ser argumentos válidos para uma escolha de política regulatória para Anatel passar a fiscalizar plataformas digitais a partir da estrutura burocrática estatal, encontraríamos praticamente todos os atributos em outras agências e autarquias para supervisão das redes, igualmente equipadas e aptas tecnicamente, como o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), a Ancine e o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), cada qual em suas atribuições legais e experiências setoriais em seus respectivos campos de regulação.  
Contudo, esse exercício de exaltação técnica por parte de agências poderia desaguar em uma espécie de autossabotagem institucional e disputas de narrativas. As agências seriam inevitavelmente expostas ao escrutínio técnico e político a respeito de sua reduzida capacidade de responder a demandas sociais relevantes no campo regulatório, de proteção de liberdades e garantias fundamentais de cidadãos e usuários de serviços públicos, e de fazer valer mecanismos de proteção de direitos de usuários, consumidores, cidadãos vis-à-vs o equilíbrio na concepção de políticas públicas e interesses da indústria regulada. Vale lembrar que no caso, amplamente considerada, a indústria de serviços digitais que não poderia ser reduzida a serviços de telecomunicações e prestação de serviços de conexão de internet, por isso a premissa pela qualificação técnica da Anatel (ou qualquer outra agência da carteira governamental) não seria suficiente.  
Não é segredo algum que há décadas, e de modo geral, a capacidade de agências reguladoras se encontra defasada no Brasil. São vários fatores já denunciados por especialistas, como sucateamento dos órgãos e desmoralização da relevância dos serviços públicos realizados, as sucessivas interferências políticas e capturas nas estruturas organizacionais e decisionais das agências e as dificuldades de diálogo e distanciamento com outros atores relevantes, como legislativo, judiciário, sociedade civil organizada, academia e a ampla maioria dos agentes da indústria que não chegam aos canais dos órgãos e seus técnicos. Aliás, são nítidos esses sintomas tipicamente brasileiros da atualidade, resultados da deletéria negação do sentido afirmativo socialmente relevante de políticas públicas e de programas de desenvolvimento no campo regulatório, e do completo descomprometimento do Estado com funções públicas essenciais.  
O mais gritante em várias das propostas apresentadas para fiscalização das redes sociais é o fato de que praticamente todas elas desconsideram os graus de maturação da indústria de tecnologias digitais, o fortalecimento das políticas de internet ao longo de 30 anos no Brasil (que não seriam resumidas a questões setoriais de infraestrutura de telecomunicações, muito pelo contrário). Tampouco a ampla maioria das propostas de "lege ferenda" sequer refletiram sobre o fato de que redes sociais apenas são apenas um dos atores relevantes no amplo conjunto de atores e questões multissetoriais implicadas na regulação da internet, como também organizações internacionais têm reconhecido e afirmado em várias frentes, como as Nações Unidas, a OCDE, União Internacional das Telecomunicações, em seus comitês e relatorias especializadas. Ali se encontram temas relacionados, dentre vários, o acesso à internet com qualidade e velocidade, letramento digital e informacional, serviços digitais multidirecionais, proteção do consumidor digital, combate à desinformação, aplicação dos direitos fundamentais online e vulnerabilidades digitais.  
Já existe suficiente consenso de que o Marco Civil da Internet, chegando quase aos seus 10 anos de vigência, merece uma revisão de implementação. Seria igualmente oportuno dar uma chance de escolha – positivamente – de articulação entre políticas multissetoriais, agência e modelo regulatório redesenhado para que o Estado também exerça algum grau de indução e participação, e não apenas um sentido policialesco, persecutório e de repressão de conteúdos, comportamentos online e vieses sem oposição política, como se todo esse conjunto garantisse um pleito de proteção democrática desejada e reforçada após os ataques aos Três Poderes em 8 de janeiro.
A simplificação à la carte da agenda regulatória da internet ao controle de redes sociais traz enormes desafios jurídicos, mas também equívocos, e tem sido dessa forma levada a cabo em outros lugares do globo, seja por pressões políticas oscilando entre o conservadorismo e cinismo, como na própria União Europeia, seja pela importação de modelos legislativos indistinta e indiferentemente às necessidades locais.  
Por outro lado, a recente experiência europeia a partir da entrada em vigor dos Regulamentos de Serviços Digitais e de Mercados Digitais (respectivamente, Digital Services Act e Digital Markets Act) trará qualitativamente impulso para que outras áreas, como no campo do consumidor digital, concorrência e mercados digitais e direitos fundamentais online estejam também abertos para um campo de revisão no direito brasileiro, especialmente se observada – mais uma vez, repita-se, a desejada revisão de implementação e aplicação das normas do Marco Civil da Internet. A isso, adiciona-se maior demanda por ações regulatórias transversais, considerando, por exemplo, que agências reguladoras brasileiras cada vez mais passem a exercer suas respectivas atribuições no vasto domínio digital, todavia mantendo suas próprias atribuições, discricionaridades e respeito à legalidade, e de repente voltar a suas premissas originais de instituição.  
Esse percurso nos leva a observar que existem, sim, modelos alternativos para supervisão de agentes atuantes na indústria de internet e mercados digitais. A divisão entre “provedores de conexão” e “provedores de aplicações de internet” foi invariavelmente uma escolha de política normativa compreensível no contexto de discussão legislativa do Marco Civil de Internet, mas já se encontra superada pelo surgimento de novos produtos, serviços e soluções em tecnologias digitais, além da própria diversificação de agentes de vários portes.
Perspectivas sociais e econômicas em qualquer escolha de política regulatória não poderiam ser desconsideradas, sobretudo pelas transformações e diferenciação verificadas nos mercados digitais e indústria de tecnologias e das pressões por consideração de interesses públicos relevantes, como manifestados no combate à desinformação, discurso de ódio e a violência online, na proteção dos direitos de propriedade intelectual e em todas potencialidades associadas ao letramento digital e acesso à internet de qualidade.  
Por isso, não seria uma solução de via única a atribuição de novas competências para uma autoridade regulatória existente (ou a ser instituída) para exclusivamente "fiscalizar" redes sociais e exercer algum nível de controle estatal sobre políticas de moderação de conteúdo, como se essa resposta solucionasse os maiores desafios para a internet no Brasil. Não mesmo. O próprio Brasil, aliás, quando exercia algum grau de respeito e influência no espaço de debate internacional envolvendo a governança da internet nos anos 2000 – esteve sempre aliado da representação e participação de múltiplos atores em estruturas multissetoriais. Essas estruturas, inclusive, fizeram parte de experiências relevantes no contexto de redemocratização brasileira, como o advento de conselhos multissetoriais em meio ambiente e direitos humanos em linha com a Constituição da República.  
As questões que ainda seriam tempestivas, na esteira dos próximos passos do PL 2630 (e saber se ele realmente vingará?), são as seguintes: faria sentido o Brasil contar com uma autoridade centralizadora (estatal, autônoma ou não) para regular internet? Ou o desejo estaria apenas em superempoderar qualquer órgão estatal para fiscalizar e aplicar sanções às redes sociais, tarefas que tecnicamente, segundo as leis brasileiras e Constituição, caberiam igualmente às autoridades de aplicação das leis e Judiciário?  
Primeiramente, talvez algo ou alguém não esteja a exercer com diligência os poderes legais já existentes. Em segundo lugar, a regulação da internet permanecerá indissociavelmente relacionada à composição de interesses dos atores – governos, indústrias, academia, sociedade civil – para avançar em modelo que permita algum nível de controle socialmente desejável, transparente e responsivo, capaz de manter ambiente equilibrado entre direitos e obrigações relacionadas ao uso da internet e disponibilidade de serviços digitais, de um lado, e de outro a efetiva aplicação de direitos fundamentais online (como a acesso à informação, liberdades comunicativas e informativas, privacidade e proteção de dados, direitos da personalidade).  
Com base nessas premissas, um órgão regulador independente e autônomo, com abordagem multissetorial e dotado de instâncias de participação social, parece ser algo mais próximo do que temos de ideal para o momento. Nada impediria que esse desenho fosse acompanhado da integração com um Conselho Nacional de Políticas Digitais, em sintonia com experiências democráticas nos campos de direitos humanos, meio ambiente, proteção do consumidor que acompanham a história brasileira, e uma entidade de autorregulação. Essa seria dotada de poderes consultivos, de orientação e tomada de decisão em casos específicos envolvendo moderação de conteúdo em redes sociais, de modo a compartilhar tarefas com a autoridade regulatória independente, contar com apoio de entidades de verificação de fatos e organizações da sociedade civil no campo dos direitos humanos e direitos digitais.
Por fim, o próprio Judiciário brasileiro, a quem compete a solução judicial de disputas envolvendo plataformas, poderia reconsiderar sua relevância técnica e aprimorada, com a criação de unidades para estimular mecanismos extrajudiciais de resolução de litígios nas redes, ao mesmo tempo em que planeje varas especializadas e câmaras nos tribunais de justiça mais atentas às sensibilidades características de litígios da internet, como em infraestrutura, dados e conteúdo.  
A escolha atrapalhada sobre fiscalizar por fiscalizar plataformas, redes sociais ou conteúdo online, no entanto, não poderá vir de uma canetada por decreto executivo, mas deve ser antes pavimentada com o mesmo rigor técnico, democrático e consciente que elevou o Brasil há décadas a um dos países mais importantes para o presente da internet. E que todas as experiências domésticas a partir daí advindas possam servir, inclusive, como fonte de inspiração para outros países do globo na mesma tarefa, essencial para o futuro digital. Praticamente essa dica já pode ser um sinal de esperança.

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JOTA

Escolha atrapalhada não poderá vir de uma canetada por decreto executivo

Uma autoridade para ‘fiscalizar’ plataformas digitais no Brasil?

A escolha atrapalhada sobre a fiscalização de plataformas e redes sociais não poderá vir de uma canetada por decreto executivo