Guillermo Glassman

<p>Em um cenário onde a transparência nas relações entre médicos e a indústria da saúde é cada vez mais demandada, o <a href="https://oglobo.globo.com/saude/noticia/2024/08/28/cfm-estabelece-novas-regras-para-relacao-entre-medicos-e-farmaceuticas.ghtml">Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou a Resolução 2.386/2024</a>. Essa norma tem como objetivo principal regular os vínculos entre médicos e indústrias farmacêuticas, de insumos e equipamentos médicos, exigindo que tais vínculos sejam devidamente informados e publicados.</p>
<p>No entanto, essa resolução levanta questões cruciais sobre sua constitucionalidade, especialmente quanto à competência dos conselhos de classe para criar novas obrigações sem base legal específica. Este artigo examina detalhadamente a Resolução CFM 2.386, discutindo seus impactos, as dificuldades de implementação em face da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), sua possível inconstitucionalidade, e as ações judiciais que podem ser movidas para contestá-la.</p>
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<h3>Contexto e detalhes</h3>
<p><a href="https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2024/08/31/entenda-o-que-muda-com-decisao-do-cfm-sobre-medicos-terem-que-declarar-vinculos-com-farmaceuticas-e-empresas-do-setor.ghtml">Divulgada no último dia 28 de agosto</a>, a Resolução CFM 2.386/2024 foi um passo significativo do CFM para regulamentar as relações entre médicos e a indústria da saúde, incluindo farmacêuticas, fabricantes de insumos e equipamentos médicos.</p>
<p>A norma exige que os médicos que tenham qualquer tipo de vínculo com essas indústrias informem essa relação ao Conselho Regional de Medicina (CRM) em que estão inscritos, sendo obrigados a registrar tais informações na plataforma CRM-Virtual. Esses dados, por sua vez, são publicados pelo CFM, visando dar transparência às potenciais situações de conflito de interesse.</p>
<p>Detalhamento das exigências da Resolução:</p>
<ul>
<li><strong>Declaração Obrigatória de Vínculos:</strong> Médicos com qualquer tipo de vínculo com indústrias farmacêuticas, de insumos ou equipamentos médicos, devem informar esses vínculos ao CRM. Os vínculos incluem contratos formais, prestação de serviços remunerados, participação em pesquisas, desenvolvimento de produtos, entre outros. A obrigatoriedade se estende também a médicos que realizem palestras ou divulgações remuneradas para essas indústrias.</li>
<li><strong>Publicação de Conflitos de Interesse:</strong> Uma vez informados os vínculos no CRM-Virtual, o CFM se encarrega de publicar esses conflitos de interesse em uma plataforma própria. Essa medida visa a transparência, garantindo que o público, incluindo pacientes e outros profissionais da saúde, tenha conhecimento sobre os potenciais conflitos de interesse que possam influenciar as decisões médicas.</li>
<li><strong>Vedação de Benefícios:</strong> A resolução proíbe que médicos recebam qualquer tipo de benefício relacionado a medicamentos, órteses, próteses e equipamentos hospitalares que não possuam registro na Anvisa, exceto quando tais benefícios estejam relacionados a protocolos de pesquisa aprovados pelos Comitês de Ética em Pesquisa.</li>
<li><strong>Declaração em Eventos Públicos:</strong> Médicos são obrigados a declarar seus conflitos de interesse em eventos públicos, entrevistas ou debates, sempre que estiverem abordando temas relacionados à medicina.</li>
</ul>
<h3>Dificuldades de implementação em face da LGPD</h3>
<p>A implementação da Resolução CFM 2.386/2024 enfrenta desafios significativos quando confrontada com as disposições da LGPD, Lei 13.709/2018. Ela estabelece regras rígidas sobre o tratamento de dados pessoais, incluindo a necessidade de consentimento explícito dos titulares para o processamento de seus dados, a garantia de que os dados sejam utilizados apenas para as finalidades para as quais foram coletados, e a proteção contra acessos não autorizados.</p>
<p><strong>Principais dificuldades de implementação:</strong></p>
<ul>
<li><strong>Consentimento para Tratamento de Dados:</strong> A Resolução CFM 2.386 exige a publicação de informações sobre vínculos e potenciais conflitos de interesse dos médicos com a indústria, o que envolve o tratamento de dados pessoais relevantes, como informações sobre relações contratuais e financeiras. De acordo com a LGPD, o tratamento desses dados requer o consentimento explícito dos médicos, o que pode ser um obstáculo para a implementação da norma, especialmente se os médicos se recusarem a fornecer tal consentimento.</li>
<li><strong>Finalidade e Necessidade: </strong>A LGPD exige que o tratamento de dados pessoais seja limitado à estrita necessidade para a finalidade pretendida. A Resolução CFM 2.386, ao requerer a publicação de dados sensíveis, pode ser vista como uma medida excessiva, especialmente se não houver uma justificativa clara e adequada sobre como essa divulgação contribui para a proteção da saúde pública e o cumprimento da ética médica.</li>
<li><strong>Direitos dos Titulares:</strong> A LGPD garante aos titulares dos dados uma série de direitos, como o acesso às suas informações, a correção de dados incompletos ou desatualizados, e a exclusão de dados desnecessários. Médicos podem invocar esses direitos para limitar o escopo da divulgação de suas relações com a indústria, dificultando a implementação integral da Resolução CFM 2.386.</li>
</ul>
<h3>A competência dos conselhos de classe e a criação de novas obrigações</h3>
<p>A Constituição Federal de 1988 atribui aos conselhos de classe a competência para regulamentar e fiscalizar o exercício das profissões que eles representam. No entanto, essa competência regulamentar deve ser exercida dentro dos limites impostos pela lei. Os conselhos, como o CFM, não têm o poder de inovar no ordenamento jurídico criando novas obrigações para os profissionais que regulam, sem que exista uma base legal específica que autorize tal inovação.</p>
<p>A Resolução CFM 2.386, ao impor obrigações como a declaração obrigatória de vínculos e a proibição de recebimento de benefícios, parece exceder os limites dessa competência. Essas imposições, que criam novas obrigações para os médicos, deveriam, em princípio, ser estabelecidas por meio de lei, conforme o princípio da legalidade estrita. A existência de projetos de lei em tramitação sobre o tema reforça a ideia de que a matéria deve ser regulada em âmbito legislativo, não por meio de resolução de um conselho profissional.</p>
<h3>O debate legal: projetos de lei e legislação estadual</h3>
<p>No Brasil, a regulamentação da relação médico-indústria não é um tema novo. Em Minas Gerais, por exemplo, a questão já foi tratada por meio de leis estaduais (Leis 22.440/2016 e 22.921/2018), que obrigam a divulgação das relações entre profissionais de saúde e a indústria, estabelecendo que as informações sejam publicadas em uma plataforma estadual.</p>
<p>No âmbito federal, os Projetos de Lei 204/2019 e 7990/2017, atualmente em tramitação, visam a estabelecer um marco regulatório claro e detalhado para essas relações. Esses projetos buscam garantir que todas as relações financeiras entre médicos e a indústria sejam divulgadas publicamente, ampliando a transparência e minimizando os conflitos de interesse que possam prejudicar a saúde pública. A tramitação desses projetos sugere que a matéria é complexa e demanda um tratamento legislativo, com ampla participação e debate público, e não apenas uma regulamentação infralegal por meio de resoluções.</p>
<h3>A inconstitucionalidade potencial da Resolução CFM 2.386</h3>
<p>É interessante notar que a própria Exposição de Motivos da Resolução CFM 2.386, assinada pelo conselheiro relator Rafael Câmara Medeiros Parente, já inicia indicando que seria necessária uma lei para regular a matéria ao afirmar que “Diversos países têm <u>legislação</u> referente à relação da indústria com profissionais de saúde”.</p>
<p>De fato, a Resolução CFM 2.386 pode ser considerada inconstitucional pela imposição de novas obrigações aos médicos, sem que exista uma lei específica que as autorize, extrapolando a competência regulamentar do CFM. Esse tipo de inovação no ordenamento jurídico deve ser feito por meio de lei, respeitando o princípio da legalidade.</p>
<p>Faz sentido que o tema esteja sujeito à reserva legal, já que a regulamentação de temas como a transparência nas relações entre médicos e a indústria farmacêutica é uma questão de ordem pública que afeta toda a sociedade e, portanto, deve ser tratada por meio de legislação formal, aprovada pelo Congresso Nacional. Afinal, se é verdade que uma relação pouco transparente entre médico e indústria pode trazer prejuízos gerais, é igualmente verdade que inibir essa relação, lançando sobre ela um manto de suspeita, pode, por exemplo, dificultar a capacitação dos médicos para a adoção de novas tecnologias.</p>
<h3>Consequências e medidas jurídicas possíveis</h3>
<p>Diante da potencial inconstitucionalidade da Resolução CFM 2.386, diversas medidas podem ser tomadas por associações de indústrias e outras partes interessadas:</p>
<ul>
<li><strong>Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF):</strong> Confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional ou partido político com representação no Congresso Nacional, dentre outros legitimados, podem ingressar com uma ADPF no Supremo Tribunal Federal (STF), questionando a validade da resolução e solicitando a sua anulação.</li>
<li><strong>Mandado de Segurança Coletivo:</strong> Para proteger os direitos de seus associados, associações de indústrias e sindicatos podem impetrar mandado de segurança coletivo, buscando garantir que os médicos não sejam obrigados a cumprir as disposições da resolução até que sua constitucionalidade seja definitivamente julgada.</li>
<li><strong>Ações Individuais:</strong> Médicos afetados diretamente pela resolução podem ingressar com ações judiciais individuais, buscando o reconhecimento da ilegalidade das obrigações impostas pela resolução e a proteção de seus direitos.</li>
</ul>
<h3>Conclusão</h3>
<p>A Resolução CFM 2.386/2024 representa uma tentativa do Conselho Federal de Medicina de regulamentar a relação entre médicos e a indústria da saúde, trazendo maior transparência e controle sobre possíveis conflitos de interesse. No entanto, ao criar novas obrigações sem base legal específica, a resolução pode estar violando o princípio da legalidade e excedendo os limites da competência regulamentar do CFM.</p>
<p>Diante disso, é essencial que as partes interessadas, especialmente as associações de indústrias, estejam preparadas para contestar judicialmente essa norma, garantindo que qualquer regulamentação sobre o tema seja feita de acordo com a Constituição e as leis vigentes.<a href="#_ftnref1" name="_ftn1"></a></p>


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JOTA

A Resolução CFM 2.386/24 e seus potenciais problemas de constitucionalidade

Um olhar profundo sobre a regulação da relação médico-indústria

A Resolução CFM 2.386/24 e seus potenciais problemas de constitucionalidade