Matheus Carvalho

Pink Floyd é, sem dúvida alguma, uma das maiores bandas de rock de todos os tempos. Atravessando gerações, o grupo pode, até mesmo, ser adjetivado como “atemporal”, visto que, até os dias atuais, conta com legiões de fãs ao redor do mundo.
Um dos maiores discos da banda, talvez a maior obra-prima deles, é o álbum “The Dark Side of the Moon”, com mais de 30 milhões de unidades vendidas. Estima-se que, no Reino Unido, uma em cada cinco casas possuía a obra. Questões musicais à parte, uma singela análise do título do disco gera reflexões que podem contribuir com o debate concorrencial do país.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Bem, a expectativa de boa parte da comunidade antitruste brasileira é a de que, ainda em 2021, seja convertida em Lei o PL nº 11.275/2018, que altera a Lei 12.529/2011, que estrutura o Sistema Brasileira de Defesa da Concorrência a fim de fomentar as ações privadas de reparação por danos concorrenciais.
Dentre as principais inovações, visando fortalecer o enforcement privado da concorrência, encerra-se uma antiga discussão quanto ao termo inicial de contagem do prazo prescricional. Antes do PL, não havia nenhuma disposição normativa quanto ao momento em que a prescrição seria iniciada, o que acabava por aumentar o nível de insegurança. Também havia dúvidas quanto ao prazo prescricional aplicável.
Caso convertida em Lei, até o momento, definiu-se como início de contagem do prazo prescricional de 5 anos, a publicação da decisão final da autoridade da concorrência, o que possui uma dupla vantagem: por um lado, confere segurança ao lesado, o qual tem a garantia de que o seu prazo só iniciará após o trânsito em julgado do Processo Administrativo e, de outra banda, garante que a ação poderá ser direcionada aos que (em tese) fizeram parte do cartel.
<blockquote class="jota-article__eye">Contudo, importante ressaltar que o PL não resolve todas as questões referentes a marcos temporais. Por exemplo, qual a eficácia desse prazo? Ex nunc ou ex tunc? Ou seja, para os casos em que tenha havido decisão final da autoridade antes do advento da norma, o prazo de 5 anos é aplicável?</blockquote>
Outro ponto de destaque do PL é que nas ações reparatórias por danos decorrentes do cartel, o repasse do sobrepreço não é presumido, cabendo ao(s) réu(s) prova(rem) que aquele que pleiteia a reparação internalizou o aumento de preço dentro de sua cadeia produtiva.
Essa questão é particularmente interessante porque mitiga o risco de ser imputado ao autor, como tantas vezes vista na práxis forense, a produção de prova negativa (no caso, que não repassou o sobrepreço para a cadeia a jusante), que tende a ser vedada pelo ordenamento jurídico por ser considerada prova diabólica<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Outrossim, busca, também, reduzir a assimetria informacional em muito decorrente do sigilo de dados que cerca os processos administrativos<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, o que prejudica, sob a perspectiva dos prejudicados, a coleta de dados que possam indicar ao juiz, com maior clareza, a materialidade da conduta e a extensão do dano.
Por fim, outro ponto digno de nota é o esforço do PL em compatibilizar o estímulo às ações reparatórias com o consagrado programa de leniência da autoridade. Isso porque, muitas vezes, através dele, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) obtém provas cruciais da prática de cartel, de modo que o acordo de leniência se tornou importante instrumento de combate às infrações contra a ordem econômica<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
O receio, portanto, era o de que o fomento ao enforcement privado desestimulasse a leniência. Ciente dessa preocupação, o PL afasta dos signatários dos acordos (leniência e TCC) o dever de reparação em dobro e a responsabilidade solidária.
Nesse sentido, ao imputar responsabilidade solidária aos causadores do dano e instituir um fator multiplicador (ressarcimento em dobro), o PL acaba por desencorajar o conluio, bem como, no caso de infração, estimula que o agente procure o CADE para negociar um acordo.
Todavia, para além dos pontos positivos, há, também, pontos significativos de melhoria. Um deles reside na inclusão compulsória, no TCC assinado junto ao CADE, de cláusula compromissória.
A inclusão desse parágrafo é alvo de diversas críticas. Em primeiro lugar, porque vincula somente os signatários do TCC, criando uma vantagem presumida aos signatários da leniência, reforçando o estímulo para que os agentes econômicos busquem ser sempre os primeiros a entregarem provas<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. Contudo, se a intenção é fomentar a via privada, não há motivos suficientemente claros para que a cláusula compromissória não seja estendida, também, ao signatário da leniência.
De outra banda, ensejou, também, a elaboração de uma Nota do Comitê Brasileiro de Arbitragem<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> (CBAr). Em resumo, a crítica reside no fato de que a própria Lei nº 9.307/96 (Lei de Arbitragem) já seria autoaplicável ao caso, por se tratar de litígio que envolve direito patrimonial disponível e em razão de que o dispositivo tem alto potencial de se tornar inócuo.
A justificativa da Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria, Comércio e Serviços, sob a relatoria do Deputado Amaro Neto, é a de que a submissão da lide à arbitragem, mediante assinatura obrigatória do signatário do TCC, tem o condão de “agilizar as ações de reparação de dano, pois torna mais simples o acesso ao instituto da arbitragem para a resolução dessas lides”<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
Como a Nota Técnica da CBAr expõe, o PL dificulta o acesso, pois acaba por criar uma cláusula compromissória patológica. Ainda, não torna mais “simples” a resolução da controvérsia porque, sabidamente, os custos de uma arbitragem tendem a ser bastante elevados.
Uma solução mais simples seria alterar, além da Lei 12.529/11, o art. 1.048 do Código de Processo Civil para incluir um inciso V, conferindo tramitação prioritária às ações reparatórias por danos concorrenciais, tal qual se dá aos casos em que se discute normas gerais de licitação (art. 1.048, IV, CPC).
Outro ponto em que o PL é silente diz respeito ao segredo de justiça dessas ações. Ainda que a regra geral seja pela publicidade dos atos processuais, entende-se que o trâmite processual das ações reparatórias deve estar restrito às partes e aos advogados habilitados.
Isso porque, no bojo de uma ação reparatória por danos concorrenciais, é muito provável que sejam juntados aos autos documentos que contenham informações sensíveis sobre a operação e o segredo do negócio das partes. Nesse contexto, a publicização desses dados permitiria que concorrentes, em uma simples busca no sistema eletrônico, conhecessem de informações de acesso restrito, o que, sem dúvidas, conferiria certa vantagem competitiva.
Nada obstante o rol do art. 189, CPC, ser exemplificativo, a não inclusão de um inciso que trate do segredo de justiça no caso das ações reparatórias deixa sob a discricionariedade do juízo a concessão ou não do sigilo, o que, em caso negativo, pode ter alto potencial lesivo dado o livre acesso a fatores operacionais das partes.
Assim, seria interessante, também, que o PL tratasse sobre o tema, o que, até o presente momento, ainda não ocorreu.
Um outro ponto no qual o PL não se manifesta diz respeito à compatibilização das ARDCs com processos movidos por aqueles que foram condenados no CADE e ajuizaram ações questionando o posicionamento da autoridade.
Sem entrar na discussão quanto à possibilidade de o judiciário ter competência para rever o mérito da decisão proferida pelo CADE, é certa que uma ação que pleiteia indenização na pendência de outra que questiona a condenação, ambas calcadas na mesma decisão da autarquia, guardam entre si óbvia relação de prejudicialidade, razão pela qual seria interessante uma definição sobre o tema.
Por último, mas não menos importante, o PL nada trata sobre o acesso de documentos, por parte dos prejudicados, produzidos no âmbito do Processo Administrativo, os quais podem ser essenciais para a demonstração da responsabilidade civil dos cartelistas.
Recentemente, o CADE editou a Resolução nº 21/2018<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>, que regulamenta os “procedimentos de acesso aos documentos e às informações constantes dos Processos Administrativos para Imposição de Sanções Administrativas por Infrações à Ordem Econômica”. A leitura atenta da Resolução permite concluir que os documentos essenciais à comprovação da responsabilidade permanecem de acesso restrito.
As hipóteses de “quebra” do sigilo e concessão do acesso às informações está prevista no art. 3º da Resolução e, dentre outras, decorrem da expressa determinação legal e decisão judicial específica. Como dito acima, relegar à atividade jurisdicional o poder de conceder ou não o acesso à documentação, muitas vezes imprescindível em uma ação reparatória, parece não ser o melhor caminho.
Melhor seria, portanto, que a atividade legislativa cuidasse desse ponto, autorizando, quando solicitado pelo prejudicado, após a distribuição da ação reparatória, que, em tese estaria albergada pelo segredo de justiça, a concessão dos documentos previstos no art. 2º, II, da mencionada Resolução.
Uma vez que o PL já se compatibiliza com o Programa de Leniência e TCC do CADE, afastando a responsabilidade solidária e o fator multiplicador, o acesso a tais documentos não coloca o beneficiário da leniência ou TCC em uma posição de desvantagem, mas ao revés, traz maior harmonia e sinergia entre o public e private enforcement no Brasil<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>.
Apesar dos pontos positivos, o que o texto procurou apontar é que há significativos pontos de melhoria. As soluções propostas, também, são algumas das que poderiam ser adotadas. Vê-se, então, que é fundamental o aprofundamento do debate com a comunidade acadêmica visando diminuir lacunas do PL.
Tal qual prenunciou a banda de rock inglesa no título do álbum, há sempre um “dark side” em toda análise. O que o presente artigo se propôs a demonstrar é que, apesar de ser uma iniciativa importantíssima no fomento à persecução privada, há alguns pontos cegos no PL. O aprofundamento do debate, portanto, é fundamental para evidenciar esses e outros espaços ainda não explorados.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Impossibilidade de comprovação de fato negativo (prova diabólica) - Ônus probatório da autarquia de trânsito – RECURSO PROVIDO. (TJ-SP - AI: 01000567320208269012 SP 0100056-73.2020.8.26.9012, Relator: Laís Helena de Carvalho Scamilla Jardim, Data de Julgamento: 31/08/2020, Turma Recursal da Fazenda Pública, Data de Publicação: 31/08/2020)
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Direito da concorrência e enforcement privado na legislação brasileira. RDC, Vol. 1, n° 2, Novembro 2013, pp. 11-31
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> NEVES, Edmo Colnaghi. Acordos de Leniência. In: ZANOTTA, Pedro. BRANCHER, Paulo (Org.). Desafios atuais da Regulação Econômica e Concorrência. São Paulo: Atlas, 2010,  p. 35-48
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> FERNANDES, Micaela Barros Barcelos. RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANOS CONCORRENCIAIS: A INDENIZAÇÃO EM DOBRO E A NÃO SOLIDARIEDADE DOS INFRATORES PREVISTAS NA PROPOSTA DE ALTERAÇÃO DA LEI 12.529/2011. Revista Brasileira de Defesa da Concorrência, v. 7, n. 1 (2019), p. 131-159
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> O inteiro teor pode ser acessado em: <a href="https://cbar.org.br/site/wp-content/uploads/2019/11/2019-10-18-nota-tecnica-pl11275_sem-enderecamento.pdf">https://cbar.org.br/site/wp-content/uploads/2019/11/2019-10-18-nota-tecnica-pl11275_sem-enderecamento.pdf</a>
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> O inteiro teor pode ser acessado em: <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node0ut8yjn77di6ecsvd0frcjxnj23870140.node0?codteor=1766898&amp;filename=Tramitacao-PL+11275/2018">https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node0ut8yjn77di6ecsvd0frcjxnj23870140.node0?codteor=1766898&amp;filename=Tramitacao-PL+11275/2018</a>
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Inteiro teor disponível em: <a href="https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/41422475">https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/41422475</a>
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> MARTINS, Frederico Bastos Pinheiro. In: DRAGO, Bruno de Luca. PEIXOTO, Bruno Lanna (Coord.). A livre concorrência e os tribunais brasileiros – análise crítica dos julgados no Poder Judiciário envolvendo matéria concorrencial. São Paulo: Singular, 2018, p. 95-111.

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JOTA

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