Patrick Luiz Martins Freitas Silva

À medida que o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">Supremo Tribunal Federal</a> avança em temas progressistas, ressurgem as discussões sobre o ativismo judicial. Testemunhamos agora o Congresso Nacional reivindicando um papel que muitos acreditam ter sido usurpado: a autêntica representação da maioria nas questões legislativas cruciais. Projetos polêmicos emergem na Câmara e no Senado, como os que buscam proibir o casamento homoafetivo<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> e o aborto<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, ecoando os anseios de uma maioria conservadora que desafia as decisões do STF<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Este panorama destaca a eterna tensão entre os Poderes Legislativo e Judiciário.
A questão central é esta: o Parlamento possui prerrogativa de se sobrepor às decisões do STF quando se trata de direitos fundamentais? É a pergunta que quero desenvolver neste artigo.
Historicamente, a legitimação do direito foi construída por meio de uma perspectiva fundamental: a vontade da maioria, expressa através de representantes eleitos em um sistema democrático, visando espelhar o consenso popular sobre certos temas.
Mas, no período entre guerras, o mundo observou, atônito, como maiorias podiam endossar tragédias de proporções épicas. Judeus, negros, homossexuais e outras minorias, subjugadas por um Estado legitimado na vontade da maioria<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, encontraram-se aprisionadas nos campos de concentração. Em resposta a esses horrores, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 surgiu como um grito de resistência, proclamando que cada ser humano merece respeito e dignidade, independentemente do país ou das leis a que esteja submetido. Independentemente do que legitimam maiorias.
Surgiu, assim, uma segunda forma de legitimação do direito, centrada na proteção resoluta dos direitos das minorias, função frequentemente exercida por órgãos judiciais. Essa combinação de legitimidades assegura que a democracia não se reduza a uma simples "tirania da maioria"<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
Quando o STF se debruça sobre questões de direitos fundamentais, ele está operando precisamente nesse segundo âmbito, garantindo que as minorias tenham seus direitos preservados e protegidos, mesmo frente a possíveis pressões majoritárias. Desta forma, a corte atua como um baluarte na preservação dos direitos fundamentais, assegurando que a dignidade humana seja mantida para todos os cidadãos, independentemente do clamor popular predominante em determinado momento.
A função contramajoritária do STF é essencial para a democracia brasileira<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>. Historicamente, o tribunal tem se posicionado em defesa dos direitos das minorias, assegurando sua dignidade e direitos fundamentais. Entre suas decisões emblemáticas estão: o reconhecimento da união estável entre casais do mesmo sexo (2011); a permissão para o aborto em casos de anencefalia (2012); a afirmação dos direitos indígenas com a demarcação de terras tradicionais (1988/2023); e a validação das cotas raciais em universidades (2012)<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.
A resposta à pergunta do artigo parece se delinear: Direitos fundamentais não são assuntos para maiorias. Assim, mesmo que o Congresso – no exercício majoritário – legisle, seja por meio de lei ou emenda, proibindo a união homoafetiva ou avançando em proibições mais rigorosas do aborto, o STF tem a prerrogativa de revisar e, se necessário, anular essas decisões no exercício do controle de constitucionalidade, garantindo a preservação dos direitos fundamentais.
O casamento entre pessoas do mesmo sexo no Brasil é amparado por direitos fundamentais como o princípio da dignidade da pessoa humana, que garante respeito e valorização igualitária a todos os cidadãos. Além disso, é protegido pelo direito à igualdade, que veda qualquer forma de discriminação, e pelo direito à liberdade, que assegura a todos a escolha de com quem desejam estabelecer uma relação afetiva. O direito à privacidade também é um pilar importante, garantindo que as escolhas pessoais sejam respeitadas e protegidas pelo Estado.
Em relação ao aborto, este pode ser fundamentado pelo direito à autonomia individual, que permite que cada mulher tome decisões conscientes sobre seu próprio corpo e saúde reprodutiva. O princípio da dignidade da pessoa humana também pode ser aplicado aqui, permitindo que as mulheres busquem seu bem-estar e felicidade, mesmo que isso envolva a interrupção de uma gravidez indesejada ou de risco. Além disso, o direito à saúde sugere uma abordagem de redução de danos, promovendo políticas públicas que priorizem a prevenção, o acesso a métodos contraceptivos e o cuidado em detrimento da criminalização da mulher.
A atuação do STF na defesa desses valores não pode ser simplificada como mero ativismo judicial. Como bem pontuou Luís Roberto Barroso, o ativismo se manifesta quando o Judiciário assume uma postura expansiva na interpretação da Constituição, ampliando seu significado e abrangência. Por outro lado, a função contramajoritária do STF tem um propósito específico: salvaguardar os direitos fundamentais estabelecidos na Constituição. Ela atua como um escudo, protegendo esses direitos contra eventuais excessos da vontade majoritária<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>.
A postura desafiadora do Congresso Nacional, que parece não reconhecer a função contramajoritária do STF, se mostra inofensiva diante do robusto sistema de proteção dos direitos humanos e fundamentais vigente. A corte permanecerá firme em sua missão primordial de salvaguardar os direitos e liberdades de todos os cidadãos, alheia às pressões políticas momentâneas e a variadas inclinações ideológicas, mesmo as mais conservadoras
Contudo, em tempos de crescente inclinação conservadora, a atitude do Congresso pode transmitir à população a ideia equivocada de que o STF estaria excedendo seus poderes. Tal narrativa não só desvirtua a crucial função contramajoritária exercida pelo tribunal, mas também pode corroer a confiança da sociedade na instituição que representa a última linha de defesa de nossos direitos e liberdades essenciais.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> O andamento do projeto pode ser consultado no site da Câmara dos Deputados, disponível em: <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=346155">https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=346155</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Importante a reflexão feita por Mariana Muniz sobre o antagonismo entre STF e Congresso Nacional, a partir do julgamento do aborto, inclusive fazendo alusão ao tema do ativismo judicial. Disponível em: <a href="https://www.jota.info/jotinhas/audiencia-aborto-stf-legislativo-ativismo-judicial-06082018">https://www.jota.info/jotinhas/audiencia-aborto-stf-legislativo-ativismo-judicial-06082018</a>
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Sobre o julgamento do aborto e as expectativas em relação à decisão do STF, importante a visita ao texto de Juliana Matias. Disponível em: <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/o-que-o-stf-pode-decidir-no-julgamento-sobre-a-descriminalizacao-do-aborto-20092023">https://www.jota.info/stf/do-supremo/o-que-o-stf-pode-decidir-no-julgamento-sobre-a-descriminalizacao-do-aborto-20092023</a>
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Sobre a relação entre maiorias e Estados totalitários, consultar a tese de Gilbert Isidore Lévy, A matriz do poder totalitário: reflexões sobre a Alemanha nacional-socialista, disponível em: <a href="https://repositorio.pucsp.br/jspui/handle/handle/3991">https://repositorio.pucsp.br/jspui/handle/handle/3991</a>
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> O termo é explorado em diversas obras sobre a história constitucional. Marta Nunes Costa apresenta o debate de uma forma interessante, através da visita ao pensamento de Tocqueville e John Stuart Mill. - Costa, M. N. da. (2015). A tirania da maioria: revisitando o debate. Veritas (Porto Alegre), 60(1), 92–105. <a href="https://doi.org/10.15448/1984-6746.2015.1.16329">https://doi.org/10.15448/1984-6746.2015.1.16329</a>
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> A função contramajoritária, como delineada historicamente, foi articulada de maneira notável pelo juiz da Suprema Corte dos EUA, John Marshall, no caso Marbury v. Madison (1803), onde estabeleceu o princípio da revisão judicial, permitindo que as cortes anulassem leis inconstitucionais (Irons, Peter. (1999). "A People's History of the Supreme Court: The Men and Women Whose Cases and Decisions Have Shaped Our Constitution". Penguin Books). No século XX, Alexander Bickel reforçou essa visão, destacando o papel das cortes como um "freio" contramajoritário, protegendo os direitos das minorias contra as decisões impulsivas da maioria (Bickel, Alexander M. (1986). "The Least Dangerous Branch: The Supreme Court at the Bar of Politics". Yale University Press).
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> O JOTA publicou a íntegra do texto do professor e ministro Luís Roberto Barroso, em que se discute a função contramajoritária do STF: <a href="https://www.jota.info/especiais/a-razao-sem-voto-o-supremo-tribunal-federal-e-o-governo-da-maioria-18072018">https://www.jota.info/especiais/a-razao-sem-voto-o-supremo-tribunal-federal-e-o-governo-da-maioria-18072018</a>.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Para uma compreensão detalhada do ativismo judicial e sua distinção da função contramajoritária, consulte a obra Luís Roberto Barroso, que oferece uma visão abrangente sobre o papel do Judiciário na proteção dos direitos fundamentais: Barroso, Luís Roberto. (2009). "A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: A Construção de um Conceito Jurídico à Luz da Jurisprudência Mundial". Editora Fórum.

53070841627_c933ceca57_k

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

O Parlamento possui prerrogativa de se sobrepor às decisões do Supremo quando se trata de direitos fundamentais?

Tensões democráticas: pautas morais fazem Congresso desafiar STF

O Congresso possui prerrogativa de se sobrepor às decisões do STF quando se trata de direitos fundamentais?