Mario Luiz Sarrubbo

Alexandre Alberto de Azevedo

Está pautado para quinta-feira, 25, o julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) do tema nº 1.075 de repercussão geral, que irá apreciar a constitucionalidade do artigo 16 da Lei de Ação Civil Pública (LACP), o qual restringe a coisa julgada da sentença coletiva aos limites da competência territorial do órgão julgador.
O acórdão recorrido, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), assentou que, diante da impropriedade técnico-processual do artigo 16 da LACP, o equacionamento da questão à luz do microssistema processual coletivo deve observar os artigos 93 e 103 do Código de Defesa do Consumidor (CDC). Caso o STF venha a reconhecer a constitucionalidade do artigo 16 da LACP, haverá grave retrocesso no sistema de tutela dos direitos metaindividuais, com quebra da viga-mestre deste sistema, que é garantir o acesso à justiça, a isonomia, a eficiência e a economia processual por meio da solução dos mega conflitos em um único processo.
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Adequação do instrumento aos conflitos típicos da sociedade globalizada
A explosão dos conflitos típicos da sociedade de massa e da globalização exigiram a adaptação dos instrumentos processuais tradicionais, movimento incorporado em nosso ordenamento: Lei nº 6.939/1981 (Política Nacional do Meio Ambiente); Lei nº 7.347/1985 (Lei de Ação Civil Pública); Constituição Federal de 1988; Lei nº 7.853/1989 (Pessoas Portadoras de Deficiência); Lei nº 7.913/1989 (Defesa de Investidores do Mercado de Capitais); Lei nº 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente); Lei nº 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor); Lei nº 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa); Lei nº 10.257/2001 (Estatuto das Cidades); Lei nº 10.741/2003 (Estatuto do Idoso), dentre outras.
A Constituição Federal de 1988, na mesma linha, assentou a necessidade de adequada proteção dos direitos metaindividuais por meio da jurisdição coletiva, pois reconheceu a natureza constitucional da ação civil pública como instituto voltado à tutela do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros direitos difusos e coletivos (art. 129, III, da CF/88), bem como instituiu o mandado de segurança coletivo (art. 5º, LXX, da CF/88).
Este arcabouço legislativo tem como premissa garantir a máxima efetividade na tutela dos conflitos metaindividuais por meio de dimensão qualificada do acesso à justiça, em que centenas, milhares ou até milhões de pessoas são abrangidas pela prestação jurisdicional, em um único processo, o que viabiliza economia processual e a observância do princípio da duração razoável do processo, mediante economia de tempo e de recursos ao judiciário e às partes.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> Esta lógica na qual assentada a tutela coletiva pode ser quebrada caso afirmada a incidência do artigo 16 da LACP.
O artigo 81, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor conceituou os interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, garantindo a sua defesa em juízo, a título individual ou coletivo. Os direitos e interesses difusos e coletivos stricto sensu, marcados pela indivisibilidade do objeto, são essencialmente coletivos na medida em que a satisfação de um implica a de todos e a lesão a um significa a de todos, como a proteção ao meio ambiente, o direito à limpeza das águas, à proteção aos animais (difusos), ou a proteção de integrantes de consórcio ou de planos de saúde em relação a aumentos abusivos (coletivos stricto sensu).
<blockquote class="jota-article__eye">Os direitos e interesses individuais homogêneos, acidentalmente coletivos, também exigem solução única pois, a despeito da divisibilidade do objeto e da determinação dos sujeitos, baseiam-se em situação fática de origem comum.</blockquote>
A definição contida no referido art. 81 do CDC está relacionada ao bem jurídico material tutelado e não a critério de competência jurisdicional, não podendo, portanto, ter o seu alcance limitado pelo artigo 16 da LACP. Pontua a doutrina que o art. 81, parágrafo único, do CDC, constitui norma jurídica de eficácia potencializada – é norma de superdireito material coletivo que informa todo o sistema jurídico brasileiro."Definições em sentido contrário não têm aplicabilidade aos casos concretos conduzidos à apreciação jurisdicional”.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
Em caso de lesão, o dano atingirá a todos os indivíduos que integram as respectivas categorias (difusos, coletivos ou individuais homogêneos), de forma que a reparação deverá ser de todos e não de alguns. A regra do artigo 16 da LACP acaba, portanto, por cindir aquilo que, por essência, é incindível.
A partir de interpretação sistemática e finalística, deve ser aplicado o artigo 93 Código de Defesa do Consumidor, até mesmo porque a abrangência da coisa julgada está relacionada com a definição dos direitos tutelados contida no artigo 81 do CDC e, ainda, com os limites fixados na causa de pedir e no pedido, e não com a competência territorial.
É emblemático o desastre de Mariana, que escancara o descolamento da regra do artigo 16 da LACP com a realidade fática e com a gama de situações práticas submetidas ao processo coletivo. Seria total absurdo que as medidas judiciais voltadas ao equacionamento do desastre de Mariana fossem ajuizadas em cada comarca atingida pelo rompimento da barragem.
Ora, determinado dano ambiental que atinja dois Estados poderá culminar na absolvição da empresa requerida em um Estado e sua condenação em outro, em relação ao mesmo fato e à mesma conduta, nada obstante o meio ambiente lesado seja um só, não obedecendo a fronteiras geográficas ou limitações de territoriais de competência.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> Da mesma forma, em situação hipotética de comercialização de vacina antigripal adulterada, eventual comando judicial de cessação na fabricação do produto não poderá ficar confinado a um Estado ou Região, sob pena de cisão daquilo que é indivisível, além da grave ofensa ao princípio constitucional da isonomia.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
O tema também traz grau elevado de preocupação ao se cogitar a aplicação da limitação territorial da coisa julgada nas ações civis públicas relacionadas com a implementação de políticas públicas, pois, para além das dificuldades inerentes ao controle judicial da atuação do Estado voltada à concretização de políticas públicas como o acesso à saúde, educação, moradia, dentre outras, o art. 16 da LACP implicará fracionamento que impede análise completa e planejada, atrapalhando o próprio administrador de ter visão integral do problema para então elaborar política pública universal, privilegiando aqueles abrangidos pela limitação territorial da ação proposta.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> Há patente ofensa ao primado da isonomia.
Portanto, o artigo 16 da LACP está em total descompasso com o arcabouço infraconstitucional e constitucional voltado à tutela dos direitos metaindividuais, pois implica situação absurda, desprovida de razoabilidade e proporcionalidade, que é a divisão daquilo que é incindível por meio do ajuizamento de dezenas, centenas ou milhares de ações idênticas, por todos o país, para reparar danos originados do mesmo fato.
É imprescindível que o STF, no julgamento do tema nº 1.075, mantenha o entendimento firmado pelo STJ no sentido da incidência dos artigos 93 e 103 do CDC e da inaplicabilidade do artigo 16 da LACP, à luz de interpretação sistemática e finalística do microssistema processual coletivo e, também, da garantia do acesso à justiça, da eficiência do sistema de justiça, da adequada prestação jurisdicional da tutela coletiva, da isonomia e da economia processual, sob pena de forte retrocesso e de proteção insuficiente dos direitos metaindividuais que, conceituados no artigo 81, parágrafo único, do CDC, e delimitados na causa de pedir no pedido da ação civil pública, não se confundem com a divisão geográfica da competência jurisdicional, não podendo sofrer restrição por meio norma processual de deficiente técnica legislativa.
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O episódio 49 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre o que o Supremo Tribunal Federal precisa dizer sobre a prisão de deputados. Ouça:
https://youtu.be/9Tv7gNDT4Rw
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Bibliografia
ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito material coletivo: superação da summa divisio direito público e direito privado por uma nova summa divisio constitucionalizada. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.
COSTA, Susana Henriques da; FERNANDES, Débora Chaves Martines. Processo coletivo e controle judicial de políticas públicas – Relatório Brasil. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; COSTA, Susana Henriques da. (coord.) O processo para soução de conflitos de interesse público. Bahia: Editora Juspodivm, 2017.
GRINOVER, Ada Pellegrini. Direito processual coletivo. In: ______; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; WATANABE, Kazuo. Direito processual coletivo e o anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do processo coletivo. 4º ed. rev., ampl. e atual. de acordo com o Código de Processo Civil/2015. São Paulo: Malheiros, 2017.
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Jurisdição coletiva e coisa julgada: teoria geral das ações coletivas. 3.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> GRINOVER, Ada Pellegrini. Direito processual coletivo. In: ______; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; WATANABE, Kazuo. Direito processual coletivo e o anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 12-13.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito material coletivo: superação da summa divisio direito público e direito privado por uma nova summa divisio constitucionalizada. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 484.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a>  LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do processo coletivo. 4º ed. rev., ampl. e atual. de acordo com o Código de Processo Civil/2015. São Paulo: Malheiros, 2017. p. 360-363.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Jurisdição coletiva e coisa julgada: teoria geral das ações coletivas. 3.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 139.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> COSTA, Susana Henriques da; FERNANDES, Débora Chaves Martines. Processo coletivo e controle judicial de políticas públicas – Relatório Brasil. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; COSTA, Susana Henriques da. (coord.) O processo para soução de conflitos de interesse público. Bahia: Editora Juspodivm, 2017. p. 371.

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JOTA

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