José Celso Cardoso Jr.

Douglas Andrade da Silva

De acordo com a Constituição Federal de 1988, “A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão, no âmbito de sua competência, regime jurídico único e planos de carreira para os servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações públicas” (CF-1988, art. 39).
No entanto, dez anos depois de sua promulgação, em meio à reforma administrativa gerencialista proposta pelo governo FHC, a <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc19.htm">EC 19/1998</a> pretendeu implementar os fundamentos de um projeto neoliberal e de Estado mínimo no Brasil, através: i) da privatização do aparato produtivo estatal; ii) da terceirização de atividades não essenciais ou típicas de Estado; e iii) da flexibilização das formas de contratação e demissão, bem como das condições e relações de trabalho no setor público.
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Este último objetivo seria alcançado por meio de proposta de alteração do art. 39 da CF-1988, que apesar de derrotada em plenário, acabou sendo incutida na EC 19/1998 de forma indevida, razão pela qual partidos políticos de oposição à época (PT, PDT, PC do B e PSB) impetraram a Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.135/2000.
A liminar concedida pelo Supremo Tribunal Federal (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/STF">STF</a>) teve como fundamento a inconstitucionalidade formal do trâmite legislativo, pois a alteração do caput do art. 39 da Constituição teria sido aprovada em apenas um turno na Câmara dos Deputados, quando o § 2º do art. 60 da Carta Magna determina aprovação em dois turnos de cada Casa do Congresso Nacional por, no mínimo, três quintos dos votos.
Nas memórias do formulador e um dos patronos originais da ADI 2135, Luiz Alberto dos Santos assim narra a farsa da EC 19/1998 para o art. 39 da CF-1988:
“Em 18 de agosto de 2021, o STF retomou o julgamento da ADI 2.135, ajuizada em 2000, visando afastar a aplicação da Reforma Administrativa do Governo FHC, promulgada em junho de 1998 na forma da EC 19/98, por ofensa ao devido processo legislativo definido na Constituição.
Em 2001, o julgamento do pedido de liminar se iniciou com o voto do min. Neri da Silveira, relator, que opinou pela procedência do pedido, quanto à supressão do "caput" do art. 39 da Constituição e a extinção do regime jurídico único para os servidores da administração direta, autárquica e fundacional. O relator acatou os argumentos, fortemente lastreados em fatos ocorridos durante a tramitação da PEC, que evidenciavam fraude ao processo legislativo: o plenário da Câmara rejeitou a alteração ao "caput" do art. 39, mas, numa manobra "esperta", o relator elaborou redação para o segundo turno que colocava, como novo caput, o que era, então, o novo §2º do art. 39.
Na sessão em que foi apresentado esse voto do relator, o então advogado-geral da União, hoje ministro do STF, Gilmar Mendes, além de haver atuado em defesa do texto promulgado, fez, pessoalmente, sustentação oral.
Em 2007, o STF retomou o processo, e concluiu o julgamento da liminar, deferindo a suspensão da quebra do RJU, acatando o voto do relator. Assim, com eficácia "ex nunc", ou seja, dali para a frente, foi restabelecida a regra original, vedando o regime de emprego público na Administração dos três níveis da Federação. Essa solução, porém, não afeta as empresas estatais, que sempre foram regidas pela CLT.
Em setembro de 2020, a min. Carmen Lucia, nova relatora, proferiu voto pela confirmação da liminar, acolhendo na íntegra as razões que apontavam o desrespeito à decisão do plenário, que não aprovou o fim da unicidade de regime jurídico”.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
Ora, passados mais de 30 anos da CF-1988 e mais de 20 anos da ADI 2135, o RJU é hoje o principal regime jurídico de contratação no setor público brasileiro, nas três esferas da Federação e nos três Poderes da União. Nesta condição de regime jurídico largamente dominante no setor público, o RJU é o principal elemento estruturador da forma pela qual o Estado brasileiro se organiza juridicamente e opera administrativamente.
Além disso, ele é elemento central de ordem jurídica e administrativa para garantir e preservar as razões (republicanas e democráticas) de Estado, incluindo-se aí a segurança dos servidores públicos frente ao Estado-empregador e o leque de políticas públicas de caráter permanente ou continuado que dele emanam.
Em outras palavras, o RJU é hoje o regime de contratação por meio do qual o Estado consegue garantir e maximizar a estabilidade, a previsibilidade e a continuidade dos serviços públicos à cidadania. E sobretudo por meio da estabilidade funcional relativa que garante aos servidores, introduz elementos de gestão da força de trabalho que permitem, ao longo do tempo e do ciclo de vida laboral dos mesmos, construir trajetórias de segurança profissional, capacitação permanente, profissionalização da burocracia e das funções públicas etc., que, juntos, estão na base dos processos concretos de melhoria do desempenho individual e organizacional no âmbito estatal.
A prova de que o serviço público brasileiro está em rota de profissionalização e busca de mais eficiência, eficácia e efetividade, sobretudo desde a “reforma administrativa” induzida pela CF-1988, é a constatação de que vem mudando para melhor a composição e o perfil demográfico e ocupacional da sua força de trabalho.
Não apenas ela tem passado por ciclos periódicos (ainda que insuficientes) de rejuvenescimento, feminilização e capacitação ao longo do ciclo laboral no setor público, como tem se voltado, de modo crescente, para as atividades e funções finalísticas das diversas políticas públicas. Este fenômeno, por sua vez, vem acompanhado de aumento célere da escolarização dessa força de trabalho, algo que pode ser observado nos três níveis da federação e nas três esferas de poder da União, desde 1986 – para tanto, ver dados do Atlas do Estado no Brasil, IPEA.
Dessa forma, reverter ou relativizar agora esse estatuto jurídico significará introduzir elementos de instabilidade e insegurança num campo de atuação do próprio Estado que já está pacificado e normatizado, há mais de três décadas. A convivência entre regimes jurídicos distintos de contratação (em termos de direitos e deveres) sempre foi – e continuaria sendo – prejudicial para as relações de trabalho entre servidores e entre estes e o próprio ente público, o Estado.
Não obstante, é claro que se deveria pensar e caminhar para uma situação na qual atividades ligadas a necessidades temporárias e específicas, bem como atividades de apoio administrativo auxiliar, pudessem ser contratadas diretamente pelo regime celetista, mas jamais as atividades ligadas à preservação e valorização das funções públicas estratégicas setoriais de cada órgão ou ministério, tampouco aquelas responsáveis pela organização, governança e funcionamento das funções consideradas estruturantes aos macroprocessos administrativos.
Atividades ligadas ao apoio administrativo auxiliar poderiam ser contratadas diretamente pelo poder público, mediante concursos específicos, ou no formato atual via terceirização, sob guarida da CLT, pois são atividades que possuem mais chances de serem substituídas ao longo do tempo por novas tecnologias de informação, comunicação e automação.
Por sua vez, em função de mudanças ou episódios conjunturais, dramáticos ou urgentes, atividades ligadas a necessidades temporárias e específicas também poderiam receber o mesmo tratamento, facilitando o ajuste temporário de pessoal e de funções públicas para se conferir resiliência, adaptabilidade e tempestividade ao poder público, diante de situações específicas.
Ocorre que essa diferenciação não foi prevista na EC 19/1998 e por isso a derrubada da liminar que até hoje segura o RJU é tão grave. Em síntese, uma possível fragilização ou extinção do RJU, disseminará o discurso de quebra da estabilidade e precarização do serviço público entre 10 milhões de servidores públicos e seus sindicatos representativos, contrariará a posição da base parlamentar de sustentação do governo Lula, sobretudo daquela que foi originalmente signatária da ADI 2135 (isto é: PT, PDT, PC do B e PSB), será lembrada como marca histórica negativa do seu terceiro mandato, reabrirá a pauta da reforma administrativa redutora de direitos, flexibilizadora das formas de contratação/demissão e promotora do Estado mínimo.
Isso porque este assunto ganhou espaço na discussão pública em 2020, com a apresentação, pelo governo Bolsonaro, de uma proposta (fiscalista e privatista) de reforma administrativa, por meio da <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2262083">PEC 32/2020</a>. A PEC 32 não abolia expressamente o RJU, mas o flexibilizava a tal ponto que sua essência seria profundamente desconfigurada e fragilizada. A discussão sobre o tema é sensível, mas precisa ser realizada com alguma qualificação.
No Brasil, o regime jurídico dos servidores públicos civis consiste em um conjunto de regras de direito público que trata dos meios de acessibilidade aos cargos públicos, da investidura em cargo efetivo e em comissão, das nomeações para funções de confiança, dos deveres e direitos dos servidores, da promoção e respectivos critérios, do sistema remuneratório, das penalidades e sua aplicação, do processo administrativo e da aposentadoria.
Desta feita, há distinções claras relativamente aos empregos do setor privado, dada a natureza pública dessas ocupações que se dão a mando do Estado e a serviço da coletividade, cujo objetivo último não é a produção de lucro, mas sim a produção de bem-estar social.
Pela simples razão de que critérios privados ou meramente técnicos não podem ser transpostos automaticamente para o setor público, o aumento da competição laboral interna, ainda que possa redundar em maiores indicadores de produtividade individual, raramente significará melhores condições de sanidade e salubridade em locais de trabalho que primam pela cooperação como fundamento da ação coletiva, nem tampouco significará maior eficiência, eficácia ou efetividade da ação pública de modo geral.
Em suma, a estabilidade do servidor no cargo para o qual ingressou via concurso público não é uma condição absoluta, e é um direito fixado no arranjo jurídico brasileiro. Um direito, uma prerrogativa que busca a preservação no tempo das próprias funções de Estado e a proteção do servidor contra o arbítrio político indevido. A estabilidade visa antes de tudo o interesse público.
Neste sentido, ao falarmos do tema emprego público, estamos na realidade falando de parcela não desprezível de postos de trabalho criados por decisão e demanda política do Estado, com vistas tanto ao desempenho institucional condizente do poder público, como visando ao incremento de uma das capacidades estatais fundamentais na contemporaneidade para a colocação em operação, pelo território nacional, de políticas públicas de vários tipos e abrangências.
Diante do exposto, entende-se melhor porque é que a ocupação no setor público veio, historicamente, adotando e assumindo a forma meritocrática como critério fundamental de seleção e acesso, mediante concursos públicos e sob a guarida de um regime estatutário e jurídico único, como no caso brasileiro desde a CF-1988. Há, nesse sentido, um desafio inerente ao setor público, que é a atuação em prol de interesses coletivos, difusos, alheios, de difícil mensuração e constituídos a partir de múltiplos e variados fatores e atores.
Há, além disso, a separação fundamental entre Estado e governo. Os servidores públicos atuam (ou deveriam atuar) em nome daquele que é perene, neutro e imparcial; este, a seu turno, é transitório, democraticamente eleito para guiar e orientar as escolhas políticas da sociedade durante seu exercício. A burocracia, no sentido weberiano original, representa (ou deveria representar) um aparato técnico qualificado e permanente para implementar as decisões políticas legítimas da sociedade, ainda que mudem com o tempo e que sejam representadas por diferentes governos.
A estabilidade do servidor público, uma das regras mais conhecidas que compõem o regime jurídico diferenciado, serve justamente para preservar essa separação entre Estado e governo. Ela atua para impedir que interesses políticos transitórios desconfigurem toda a estrutura do Estado, moldando-a de acordo com esses interesses, os quais, por mais que coincidam momentaneamente com os interesses da maioria da sociedade, não são permanentes nem infalíveis.
Os críticos da estabilidade (o mais polêmico dos institutos do regime jurídico diferenciado), apresentam, em geral e de forma resumida, seis argumentos: a) ela promoveria a acomodação dos servidores, que não precisariam exercer com empenho ou qualidade suas funções, pois não podem ser demitidos; b) trata-se de um privilégio em comparação aos empregados regidos pela CLT, que não possuem a mesma prerrogativa; c) representa mais uma materialização do patrimonialismo e do corporativismo brasileiro, historicamente presentes em nossa história; d) engessa a atuação do Estado, especialmente em um cenário dinâmico, com desafios complexos, incertos e que mudam velozmente; e) já há, atualmente, uma variedade de regimes jurídicos, se consideradas as possibilidades de contratação temporária e de municípios que, por não terem instituído regime jurídico único, contratam via CLT; e f) nem todas as funções públicas são sensíveis e, por isso, exigiriam a proteção de um regime jurídico diferenciado. Vale a pena tecer alguns comentários sobre cada um deles.
Há, em relação ao primeiro ponto, a falsa concepção de que servidores estáveis não podem ser demitidos. Podem e a própria Constituição estabeleceu os casos nos quais isso ocorre: em virtude de sentença judicial transitada em julgado, mediante processo administrativo, mediante avaliação de desempenho e, em casos extremos de excesso de despesa.
É bem verdade que se trata de um processo mais rígido de demissão (afinal, o objetivo é proteger a burocracia de ingerências políticas indevidas) e que a avaliação de desempenho para fins de desligamento nunca foi regulamentada, mas isso não significa que servidores estáveis não sejam demissíveis.
De acordo com dados da Controladoria-Geral da União (CGU), de 2003 a 2021, 8.901 servidores públicos foram expulsos do serviço público. Há meios de proceder com o desligamento de maus servidores, inclusive por desídia. Pode-se discutir se o processo de desligamento é passível de aprimoramento, mas não se pode negar sua existência.
Quanto ao argumento de que a estabilidade constitui privilégio sem paralelo no setor privado, já se procurou demonstrar que a natureza do setor público é distinta da do setor privado, de modo que tal comparação se mostra desarrazoada.
Dizer que o RJU e a estabilidade representam uma invenção brasileira também é incorreto: na verdade, a maior parte dos países do mundo possuem algum tipo de regime de proteção especial para os agentes contratados pelo Estado. O relatório Government at a Glance 2019, por exemplo, da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), indica que 24 países membros da Organização possuem algum tipo de segurança jurídica diferenciada para os trabalhadores do setor público. A mesma tendência é verificável em qualquer recorte que se faça.
O argumento de que um regime jurídico único engessa a atuação do Estado pode até conter alguma parcela de razoabilidade, já que são necessários mecanismos mais formais para contratação e para desligamento, mas esse parece ser um preço a se pagar para a proteção da burocracia pública referida anteriormente. Além disso, existem meios de aprimorar os mecanismos de gestão existentes, inclusive os relacionados a concursos públicos e a contratações temporárias, para dotar o Estado de capacidades institucionais cada vez mais aderentes aos desafios contemporâneos.
Também é verdade que muitos Municípios brasileiros, dada a heterogeneidade dos entes federados, não instituíram regime jurídico único e que, por isso, existem muitas contratações regidas pela CLT. Esse ponto, no entanto, pode muito mais evidenciar as dificuldades, para a gestão de pessoas, de regimes jurídicos diferenciados, que validar a existência de múltiplos regimes. Em relação às contratações temporárias, o que parece ser um desafio é justamente a ausência de regras comuns e coerentes a disciplinar tais contratações em todos os entes, o que provoca, atualmente, distinções e disfunções variadas.
Por fim, argumentar que nem todas as funções exigem a proteção de um regime jurídico único pode parecer válido, mas essa é uma discussão sensível. Primeiro, porque a própria Constituição já reconheceu esse ponto, ao prever, por exemplo, as contratações diferenciadas para atender a necessidades temporárias de excepcional interesse público. Segundo, porque a Administração Pública tem gradualmente se modernizado e passado e executar a contratação indireta para determinadas atividades específicas, reservando os cargos públicos para as atividades mais complexas, permanentes e inerentes ao Estado.
Indo além, é preciso considerar que a burocracia pública não é composta de uns poucos cargos, facilmente classificáveis em exclusivos ou não exclusivos de Estado ou em atividades finalísticas e não finalísticas. A realidade é mais complexa. Não há dúvidas, por exemplo, que um juiz, um fiscal ou um auditor desempenham funções sensíveis e exclusivas de Estado, mas e os servidores que atuam no mesmo processo de trabalho, dando suporte administrativo e viabilizando a atuação destes profissionais? Estes não possuem também acesso a informações privilegiadas, redes de contato sensíveis e acesso crítico a fatores que interferem diretamente na atuação típica do Estado? Não há, aí, igualmente, a necessidade de uma proteção especial, visando ao interesse público?
Apesar de a discussão ser sensível e aparecer recorrentemente no debate público, muitas vezes de forma simplificada, parece evidente que o RJU, e, consequentemente, a estabilidade, podem até ser aprimorados, mas foram concebidos, em última instância, para proteger o Estado democrático de Direito, em favor da própria sociedade. É para isso que eles servem e para o cidadão brasileiro que eles existem.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> SANTOS, Luiz Alberto dos. A ADI 2.135 e o regime jurídico único: o STF como guardião do devido processo legislativo. In: <a href="https://www.migalhas.com.br/depeso/353065/a-adi-2-135-e-o-regime-juridico-unico">https://www.migalhas.com.br/depeso/353065/a-adi-2-135-e-o-regime-juridico-unico</a>

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JOTA

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