Gabriel Rissato Leite Ribeiro

O presente artigo abordará caso amplamente divulgado pela mídia: a veiculação, no início de 2019, de pedido de providências do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, ao Ministério Público Federal (MPF), ao Ministério da Economia (ME) e à Receita Federal (RFB) para que fosse apurado eventual ilícito cometido por Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil da área de programação que formataram uma investigação direcionada a agentes públicos, notadamente pessoas politicamente expostas, que acabou por englobar o ministro Gilmar Mendes, do STF, e sua esposa.
<a href="https://www.jota.info/produtos/tributos?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Tributos_materias" rel="attachment wp-att-291213"><img class="size-medium wp-image-291213 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-tributos-v2.jpg" alt="" width="300" height="300" /></a>As críticas à ação da Receita Federal enveredaram, em apertada síntese, por três caminhos: a) o teor da Nota COPES nº 48/2018 (indevidamente compartilhada) indicou ação apontada para indícios da prática dos crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e tráfico de influência, o que, nas palavras de Gilmar em documento dirigido a Toffoli, teve “nítido viés de investigação criminal e [...] transborda do rol de atribuições dos servidores” (Ofício STF/MGM nº 01/2019); b) o processo de seleção estaria eivado de vício, já que envolveu “estratégia deliberada de ataque [...] a alvos pré-determinados”, também segundo Gilmar; e c) houve falha no tocante à preservação do sigilo fiscal, materializada na “divulgação indevida [...] [de] documento a terceiros [...], o que justifica cuidadosa apuração”, novamente replicando-se teor da manifestação externada pelo ministro.
O objetivo deste trabalho será debruçar-se sobre o primeiro item do parágrafo anterior (letra “a”), inquirindo-se a questão: A Receita Federal e seus Auditores-Fiscais são aptos a conduzir investigações de natureza criminal?
Previamente, torna-se interessante replicar pontos específicos da Nota COPES nº 48/2018, a fim de evidenciar se houve, de fato, o desvio de finalidade preconizado. Trata o ato de “aprimorar [...] seleção para identificação de indícios de crimes contra a ordem tributária, corrupção e lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores envolvendo agentes públicos” (item 1). O projeto envolveu “processo de investigação [...] exploratória” (item 7) e, ao mencionar a metodologia, achou-se por bem “consignar que nem todas as situações [...] levarão [...] à constatação de fraudes [...][, sendo] possível que a fiscalização constate irregularidade tributária, sem [...] elementos [...] penais” (item 35).
A autorização para que a autoridade fiscal selecione e posteriormente presida e execute fiscalizações é cristalina e deriva do disposto no art. 6º da Lei nº 10.593/2002 (“são atribuições dos ocupantes do cargo de Auditor-Fiscal [...][,] em caráter privativo [...][,] executar procedimentos de fiscalização”), regulamentado pelo art. 2º do Decreto nº 3.724/2001 (“os procedimentos fiscais [...] serão executados por ocupante do cargo efetivo de Auditor-Fiscal”) e pelos arts. 2º e 4º da Portaria RFB nº 6.478/2017 (“os procedimentos fiscais [...] serão instaurados e executados pelos Auditores-Fiscais [...] [e sua] distribuição [...] será precedida da atividade de seleção [...], que será impessoal, objetiva [,] baseada em parâmetros técnicos e executada por Auditores-Fiscais”).
Vários julgados administrativos ratificam expressamente a competência da autoridade fiscal para conduzir investigações, a exemplo do Acórdão CARF nº 1.401-004.280/2020 (“o procedimento de investigação fiscal é efetuado no interesse exclusivo do Fisco; tem natureza inquisitorial; não é banhado pelo contraditório e ampla defesa”), do Acórdão CARF nº 2.301-006.612/2019 (“o auditor fiscal possui poderes para investigar e decidir sobre qualquer situação fática relativa a tributação, fiscalização [...] e recolhimento”) e do Acórdão DRJ/BHE nº 2-100.158/2020 (“a primeira fase do procedimento fiscal - a fase oficiosa - é de atuação exclusiva da Autoridade Tributária, em busca de obter elementos”).
A situação que aqui se apresenta como cerne, contudo, centra-se sobre ser possível o enquadramento da RFB e suas investigações no escopo das atividades de polícia efetivamente criminal e não nas de polícia administrativa de que faz referência o art. 78 do Código Tributário Nacional, até porque a segunda hipótese é inequivocadamente compatível, de pronto, com as atribuições exercidas pelo órgão e seus Auditores (Acórdão STF de 15/09/1959 - RE 42.882/DF: “Os casos de apreensão ou detenção de mercadoria cuja importação é irregular cabem no poder de polícia da autoridade fiscal”). No julgamento do autor, características aparentemente esparsas fornecem pistas sobre a possibilidade de enquadramento na primeira conjectura. São elas:
1) O corpo funcional próprio do órgão (Auditores-Fiscais, autoridades, e Analistas-Tributários, servidores de apoio) é dotado, por legislação específica (art. 96 da Lei nº 4.502/1964), de porte de arma de fogo nacional para defesa pessoal, prerrogativa referendada pelo art. 6º, inc. X, do Estatuto do Desarmamento e internamente regida pela Portaria RFB nº 32/2021, que regula tanto a expedição de autorização para porte institucional (em serviço, ostensivo) quanto particular (velado), dependente apenas de comprovação de capacidade técnica e aptidão psicológica. Frise-se que atualmente o porte ostensivo é deferido “somente para um conjunto restrito de instituições, entre as quais [...] as polícias [...], as forças armadas, a Agência Brasileira de Inteligência” (item 6 do Parecer RFB/ASESP nº 46/2017) e que o uso de armamento institucional denota finalidade clara de conferir “maior segurança [...] no combate aos crimes” (item 2 - Nota COANA/COFIR/DIREP nº 12/2017).
Outras autoridades, como juízes e promotores (cuja atuação não se reveste de natureza policial, mas que possuem direito a portar arma para defesa) não podem fazê-lo ostensivamente, necessitam adquirir os itens de forma particular e, ainda assim, sujeitam-se aos requisitos legais (Acórdão STF de 12/03/2019 - AgR AO 2.280/DF: “A prerrogativa [...] do magistrado quanto ao porte de arma [...] não pressupõe a efetiva habilidade [...] para utilizá-la, necessitando [...] possuir capacidade técnica e aptidão psicológica”).
2) A própria Constituição Federal (art. 144, § 1º, inc. II) menciona que a atuação da Polícia Federal, no tocante à prevenção e repressão ao tráfico de drogas e ao contrabando e descaminho se dará sem prejuízo da ação fazendária própria, o que demonstra a complementariedade de objetivos. O Decreto nº 9.745/2019 (art. 63, inc. XX) declara expressamente que compete à RFB planejar, coordenar e realizar as atividades de repressão aos ilícitos tributários e aduaneiros, inclusive os que envolverem contrafação, entorpecentes, armas de fogo e lavagem de dinheiro.
Para exercer tal atividade, o órgão conta, nos termos de seu Regimento Interno (Portaria ME nº 284/2020), com unidades em nível nacional (Coordenações-Gerais de Pesquisa e Investigação e de Combate ao Contrabando e Descaminho), regional (Escritórios e Núcleos de Pesquisa e Investigação e Divisões e Seções de Operações de Vigilância e Repressão ao Contrabando e Descaminho) e local (Delegacias, Alfândegas e Inspetorias). Há atos internos específicos (como a IN SRF nº 110/1999 e a NE COREP nº 01/2021) disciplinando, inclusive, procedimentos a serem adotados em casos de apreensão ou retenção de drogas e armas.
3) A RFB utiliza com frequência mecanismos de atuação que usualmente encontram paralelo apenas na atividade policial, como o emprego de aeronaves e embarcações. Nos termos da Portaria RFB nº 116/2010, o órgão também conta com um Centro Nacional de Cães de Faro. Conforme dispõe a NT SRRF08/DIREP nº 01/2012, “a RFB age como polícia puramente criminal, que impõe dentre outras, a inclusão no inciso VII do art. 29 do CTB [utilização de veículos que gozam de prioridade de trânsito, circulação e parada]”.
4) Há obrigatoriedade de lavratura, pela Receita Federal, de exposições escritas nomeadas representações tributárias pela jurisprudência (Acórdão STF de 10/12/2003 - ADI 1.571/UF). Com fulcro na Portaria RFB nº 1.750/2018, são três tipos de representações formuladas: a) representação fiscal para fins penais referente a fatos que configuram, em tese, crimes contra a ordem tributária, contra a previdência e de contrabando ou descaminho, privativa de autoridade administrativa, Auditor-Fiscal; b) representação para fins penais referente a fatos que configuram, em tese, crimes contra a Administração Pública, de falsidade documental e de lavagem de dinheiro, formalizada por integrante de qualquer cargo; e c) representação referente a ilícitos que configuram, em tese, atos de improbidade administrativa, também expedida por integrante de qualquer cargo. Inclusive, nos termos da ementa de Acórdão do STF de 04/12/2019 (RE 1.055.941/SP), é constitucional o compartilhamento da íntegra do procedimento fiscal com os órgãos de persecução penal para fins criminais, sendo desnecessária autorização judicial prévia.
O exposto acima ilustra a compatibilidade entre as operações presididas pelas autoridades fiscais e as que são exercidas pelos órgãos policiais em geral. Não por menos, estudo recente<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> no âmbito da Escola Superior de Guerra (ESG) declarou que “a Receita Federal [...] desempenha atividades que podem ser classificadas como de segurança pública [...] e [...] poderia ser enquadrada como [...] integrante da rede de [...] segurança”.
Vejamos, contudo, para o caso que deu início à discussão, como o Tribunal de Contas da União se posicionou (Acórdão TCU nº 2.118/2020 - 12/08/2020): “57. [...] não raro, a Receita Federal [...], ao buscar a verdade material dos atos e fatos tributários, se depara também com o possível cometimento de crimes cuja persecução penal [...] foge [...] às competências do fisco [...]. 58. Não por outro motivo que a Lei [...] criou a figura da representação fiscal para fins penais [...]. 62. O inquérito policial [...] não constitui condição para o ajuizamento da ação penal [...]. 77. Desta forma, a atuação do fisco no combate aos ilícitos aduaneiros e tributários, a despeito de tais fatos terem, muitas vezes, duplo aspecto [...], é constitucional, legal e apoiada em jurisprudência [...] válida [...]. 182. [...] em que pese a Nota Copes 48/2018 fazer referência a indícios de crimes [...], o objetivo, ao fim e ao cabo, teve cunho tributário, com projeção de constituição de crédito tributário e [...] arrecadação de recursos. [...] 190. [...] não há que se falar em desvio de finalidade nessa hipótese”.
A já referida NT SRRF08/DIREP nº 01/2012 externou opinião semelhante, mencionando que “as funções da Receita Federal [...] não se limitam à esfera [...] tributária [...], [pois,] de maneira geral, ao final [...], a autoridade [...] remete as informações levantadas para o Ministério Público [...], a partir de onde normalmente não tramitam pela polícia judiciária, ou seja, [...] procedimento que, mutatis mutandi, é o mesmo do inquérito policial [...]. A doutrina [...] destaca o papel da RFB [...], descrevendo a atuação como sendo inquérito extrapolicial. [...] Ex positis, não há como não concluir que é atribuição e dever da Receita Federal [...] o combate ao contrabando, e que esse combate [...] se dá como relação [...] Estado-criminoso onde a RFB tem [...] papel análogo ao da polícia judiciária, qual seja, apuração dos fatos [...] e apresentação ao MPF para a denúncia”.
O STF (Acórdão de 18/06/2020 - ADPF 572/DF) ratifica tal posição, como segue: “Não confundamos privatividade da ação penal pública no sistema acusatório [...] com a possibilidade de diversos órgãos realizarem investigações penais. A própria legislação estabelece e esta [...] Corte [...] proclamou constitucional. [...] No [...] Poder Executivo, a legislação permite investigações criminais realizadas pela Receita Federal do Brasil [...]. Há possibilidade [...] de que investigações [...] sejam [...] executadas [...] sem solicitação do Ministério Público ou [...] ato de ofício da Polícia Judiciária e que possam ser [...] conduzidas por órgãos [...] estranhos à própria Polícia Judiciária. [...] O sistema jurídico [...] consagra essa possibilidade e esta, de forma alguma, [...] conflita com o sistema acusatório”.
Por todo o aventado, encerra-se o presente artigo com a emissão de posicionamento frontalmente contrário ao exposto no início, de lavra do ministro Gilmar Mendes, tecendo-se as seguintes conclusões: I) A Receita Federal, ao exercer relevante parcela de suas atribuições, desempenha atividades próprias de órgão de segurança pública; II) No desempenho de atividades inerentes à área policial, a Receita Federal e seus Auditores-Fiscais, exercem tanto poder de polícia administrativa como de polícia puramente criminal; III) É conferida pela legislação ampla autonomia para que a autoridade fiscal conduza investigações criminais, desde que os atos guardem mínima relação com a sua função precípua e privativa, de lançamento do crédito tributário e controle aduaneiro; e IV) Ao encaminhar ao Ministério Público a notitia criminis, por intermédio de representação fiscal para fins penais, a autoridade tributária e aduaneira reveste-se da função de presidente de inquérito extrapolicial, exercendo encargo análogo ao da autoridade policial.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> ABRANCHES, Luiz Flaeschen. Receita Federal do Brasil e Segurança Pública. Monografia (Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia). Escola Superior de Guerra, Rio de Janeiro, 2019.

Superintendência da Receita Federal, em Brasília.

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JOTA

Uma análise da atuação de auditores que fizeram investigação direcionada a agentes públicos, que acabou por englobar Gilmar Mendes

A Receita Federal pode conduzir investigações de natureza criminal?

Análise do pedido de providências do Toffoli ao MPF, ME e RFB para apurar ilícito cometido por auditores que iniciaram investigação