Raquel Branquinho

O presidente da República sancionou o projeto de lei, aprovado pelo Congresso Nacional<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, que regulamenta o repasse de recursos do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica) a partir do próximo ano.
Esse fundo, que conta com repasses da União e complementação para regiões mais carentes, constitui a principal fonte de financiamento da educação básica no Brasil.
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No entanto, para além da disponibilidade financeira de recursos para financiamento e custeio do ensino público, há outras questões envolvidas e que não são abordadas com a mesma transparência pelos Poderes da República, que são a corrupção e o sistemático desvio de recursos públicos da educação, principalmente, em municípios que dependem, essencialmente, do financiamento federal, nos quais a malversação desse dinheiro é causa de atraso no desenvolvimento econômico e social e de imobilidade social de gerações de brasileiros.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
A educação é um direito fundamental, essencial, básico, integra o núcleo do denominado “mínimo existencial”, mas está sujeita, no Brasil, a uma problemática que transcende o próprio investimento público e a disponibilidade econômica, pois a sua gestão, sobretudo em regiões mais carentes e menos institucionalizadas, é pautada por práticas de corrupção institucional e estrutural, associadas à ineficiência no uso dos recursos públicos, que já são escassos.
Quando abordada de forma ampla a questão do acesso à educação pelas camadas mais pobres da sociedade, a partir da atuação do Estado para garantir o direito à educação de jovens e crianças de famílias de baixa renda por meio de políticas públicas que envolvem alimentação, transporte, fornecimento de material escolar, acompanhamento psicopedagógico, sempre somos levados ao local comum da falta de recursos financeiros para sustentar um programa educacional consistente.
De fato, ao se considerar a dimensão territorial e populacional do Brasil e a diversidade social, econômica e cultural das suas diversas regiões, tem-se a complexidade desse assunto, que envolve, conforme previsto na Carta Constitucional de 1988, a atuação coordenada entre União, estados e municípios.
No entanto, conforme já observado, há problemas específicos que são tratados no âmbito genérico da insuficiência das fontes de custeio da educação e, assim, não são vistos, pela sociedade, com a lente da gravidade e do impacto social que causam e se perdem no eixo comum da questão econômica, sobretudo em momentos de crise, como o atual.
Um desses particularismos da situação brasileira é a corrupção, que envolve o sistemático desvio de recursos públicos destinados à educação por várias fontes de custeio, a ineficiência do sistema de controles para evitar os desvios e do sistema de justiça para punir os maus gestores, tanto na esfera cível quanto criminal, e promover a adequada tutela desse bem jurídico.
Essa ineficiência do sistema de justiça na adequada punição é um forte elemento de reforço de condutas ímprobas e criminosas dos gestores de recursos da área da educação e que impactam, de forma severa, no desenvolvimento social das crianças e jovens de famílias de baixa renda.
Trata-se de um problema atual e real: o mau uso do dinheiro público destinado à educação, por meio de inúmeros artifícios e estratégias de corrupção, desvio e lavagem de dinheiro, para favorecer interesses particulares de grupos privados e de redutos eleitorais de políticos que são, ao mesmo tempo, na condição de prefeitos, gestores dos recursos e executores da política educacional nas escolas municipais, encarregadas do ensino público fundamental.
Por outro lado, também se observa uma leniência da sociedade em relação à questão educacional, à educação pública, outrossim, essas práticas tão conhecidas e reiteradas já teriam sido estancadas.
E esse “descaso” pode ser explicado a partir do contexto histórico que sempre alijou a camada mais pobre da população do acesso à educação. A educação no Brasil, até recentemente, era privilégio de uma pequena elite<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> e essa estrutura de certa forma se mantém.
Assim, desenvolveu-se, no inconsciente coletivo social, a aceitação de que, como os pobres e negros não tinham direito ao estudo e formação, alcançar esse direito pela Carta Constitucional de 1988 já foi um avanço e, essa situação de conformação com uma realidade de desigualdade impede um olhar efetivamente prioritário e emergencial para o ensino público de qualidade.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
Há um problema histórico, que assim como o racismo, o patrimonialismo e outros traços da formação social do Brasil, também afeta o tratamento igualitário quanto ao acesso à educação de qualidade, e há o problema endêmico da corrupção, que corrói as estruturas para o desenvolvimento dessa política, principalmente nos municípios.
A Constituição Federal de 1988, atenta à questão das desigualdades sociais, da relevância da educação pública, universal e de qualidade, e às diferenças sociais e econômicas regionais, estabeleceu mecanismos de complementação de valores que Estados e municípios recebem, calculados de forma per capita, por aluno.
São, dentre outros, os recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), sucedido pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb).
A legislação estabelece a obrigação de a União Federal complementar os repasses do Fundeb, quando estes não alcançam, com a própria arrecadação, o valor mínimo nacional por aluno estabelecido a cada ano.
Em razão da crise econômica ora vivenciada, o Governo Federal recentemente editou Portaria e diminuiu o valor-base do Fundeb para o cálculo do gasto anual por aluno, que passou de R$ 3.643,16 para R$ 3.349,56 para o ano de 2020, uma redução de 8%.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>
A Carta Constitucional de 1988 assegurou, em toda sua dimensão, o direito à educação universal e de qualidade, inclusive estabelecendo mecanismos operacionais e de financiamento dessa política e nas últimas décadas houve significativo aumento do investimento público, ou seja, aumento dos repasses dos fundos que se vinculam à arrecadação de tributos e também complemento da União Federal.<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>
<blockquote class="jota-article__eye">No entanto, a situação social não tem se alterado para uma determinada parcela da sociedade, principalmente aquela que reside nas regiões mais pobres do país.</blockquote>
Analistas afirmam que o gasto com educação pública no Brasil, embora menor em relação aos países mais desenvolvidos economicamente, encontra-se em um patamar razoável ou adequado para o desenvolvimento dessa política pública, e que deveria apresentar resultados bem mais satisfatórios do que os efetivamente alcançados<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>
As causas para o descompasso entre os investimentos e os resultados, certamente, são variadas e, retomando uma delas – a  corrupção – o que  observo, inclusive em razão da experiência prática de atuação no Núcleo de Ações Criminais Originárias da Procuradoria Regional da República da Primeira Região (NAO), é o quão grave e impactante é a situação do desvio sistemático de recursos públicos dessa política governamental, que também se associa à inadequada gestão pela precária estrutura institucional dos municípios.
Nesse Núcleo se concentram as investigações e processos criminais envolvendo autoridades com foro por prerrogativa de função perante o TRF1, essencialmente prefeitos, em uma área jurisdicional que abrange 14 (quatorze) Estados<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a> e aproximadamente 2,6 mil municípios<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>, aqueles mais carentes e que demandam, essencialmente, a transferência de recursos federais para a complementação e execução de políticas públicas de saúde e educação.
A maior parte dos municípios que pertencem à jurisdição territorial do TRF1 não possui arrecadação própria suficiente e, assim como os Estados, necessitam de complementos de transferências de recursos federais para a área da educação, além de diversas outras políticas de transferências de recursos para programas específicos, como transporte e alimentação escolar, reforma de escolas, dentre outros, executadas pelo FNDE – Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação.
Extrai-se dessas investigações e processos criminais, a constatação de prática disseminada e institucionalizada de desvio desses investimentos públicos, em volume bastante expressivo, por meio de tipologias criminais identificadas há bastante tempo pelos órgãos de controle e de investigação.
No entanto, os casos se somam, se repetem e se avolumam ao longo dos anos, de forma a comprometer toda a força de trabalho disponível, sem que, de fato, seja possível alcançar um resultado punitivo que possa determinar a mudança de postura desses gestores públicos.
Ao contrário, há um reforço de condutas ímprobas e criminosas, porque a ineficiência do Sistema de Justiça, sobretudo do Tribunal Regional Federal da Primeira Região – TRF1 em processar e punir, a tempo e modo, esses inúmeros casos, é evidente, seja pela falta de estrutura operacional para o rápido julgamento e processamento dos crimes<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>, seja pela visão protecionista e conservadora do Poder Judiciário no Brasil, que mantém as estruturas de poder político e econômico e, assim, é menos assertivo e efetivo na punição dos chamados “crimes de colarinho branco” em comparação aos demais crimes patrimoniais praticados por particulares.
Não é possível tratar da “questão social”, como é o caso da demanda por educação em uma sociedade altamente desigual de forma isolada do contexto social e político. No entanto, encarar o problema apenas sob uma ótica plural e universal dificulta ou até mesmo impede a visibilidade de determinadas situações e demandas específicas e que exigem um olhar e um tratamento particularizado no contexto.
Assim, não basta anunciar, de forma genérica, que faltam recursos para a educação. A existência de previsão e de disponibilidade orçamentária está longe de ser a solução da questão.
É muito importante que se compreenda como, na prática, está sendo executada essa política pública, sobretudo nos municípios mais pobres, menos institucionalizados, nos quais, além da malversação do dinheiro pela corrupção institucionalizada, ainda há a própria dificuldade logística e operacional de se estabelecer uma política de ensino adequada aos padrões mínimos necessários.
Além da ausência de oportunidades, o desvio de recursos da educação, sobretudo da pré-escola e ensino fundamental, ainda é um fator que favorece a subnutrição e a extrema carência nutricional de milhões de crianças a quem é sonegado o direito não apenas ao ensino, mas a uma alimentação de qualidade, talvez a única do dia.
Assim como em diversas outras questões sociais que envolvem a efetividade dos direitos fundamentais, o cumprimento da determinação constitucional quanto ao ensino público universal de qualidade depende do enfrentamento de estruturas de poder que permeiam a formação da sociedade brasileira em seu contexto político e social, como o patrimonialismo, o clientelismo e o fisiologismo, onde se situa a corrupção, para que se possa promover condições mais igualitárias de disputa de oportunidades, considerando que os bens são, de fato, escassos.
É necessário que o Poder Judiciário, que tem se mostrado sensível às demandas sociais no debate de políticas públicas e da garantia de direitos básicos passe a atuar de forma eficaz também nos temas de enfrentamento da corrupção estrutural e institucionalizada, pois a ineficiência do sistema punitivo ao longo do tempo é o principal estímulo para a manutenção dessas práticas. A análise do custo-benefício é favorável ao agente público corrupto.
A educação é a premissa para a realização do projeto constitucional da Carta de 1988, pois possibilita a adequada formação do cidadão para o conhecimento e reconhecimento das situações de injustiça social e para a luta por direitos.
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O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> O Parlamento brasileiro aprovou a Emenda Constitucional 108/2020, que regulamenta um novo Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica):  BRASIL. Senado Federal. Senado aprova PEC do Fundeb, que será promulgada nesta quarta. Senado Notícias, Da Redação, 25 ago. 2020. Disponível em: &lt;https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/08/25/pec-do-fundeb-permanente-e-aprovada-no-senado-por-unanimidade&gt;. Acesso em: 02 de dezembro de 2020.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Pesquisa da OCDE que classificou os países com mais possibilidade de ascensão social identificou que, dos 30 (trinta) países pesquisados, o Brasil ocupou, ao lado da África do Sul, a vigésima nona colocação: &lt;https://www.oecd.org/brazil/social-mobililty-2018-BRA-PT.pdf&gt;.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o Autoritarismo brasileiro. Rio de Janeiro; São Paulo: Companhia das Letras, 2019. E-book, p. 142.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Op. cit, pg. 145.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Dados de 2020: &lt;http://portal.mec.gov.br/component/tags/tag/31908-fundeb?start=20&gt;.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Nos últimos anos o Brasil aumento, significativamente, o investimento em educação, mas esse aumento do aporte de recursos financeiros não se traduziu em melhora significativa do acesso, da qualidade e dos indicadores de aproveitamento escolar: &lt;https://www.eusoulivres.org/artigos/educacao-no-brasil-um-diagnostico-das-ultimas-decadas/&gt;.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> OLIVEIRA, Eliane. Percentual do PIB brasileiro dedicado à educação é maior do que em países desenvolvidos. O Globo, 06 set. 2018. Disponível em: &lt;https://oglobo.globo.com/sociedade/educacao/percentual-do-pib-brasileiro-dedicado-educacao-maior-do-que-em-paises-desenvolvidos-22858629&gt;. Acesso em: 02 de dezembro de 2020.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> A jurisdição do Tribunal Regional Federal da 1ª Região engloba o Distrito Federal e os Estados do Acre, Amapá, Amazonas, Bahia, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Piauí, Rondônia, Roraima e Tocantins.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Quase a metade do total de municípios brasileiros.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> No TRF-1 Região, há somente duas Turmas Criminais, constituídas por 03 (três) Desembargadores cada, para processar os recursos criminais em grau de revisão e as ações penais originárias contra prefeitos na própria Corte. Em regra, há prescrição das condenações em grau recursal, pelo lapso de permanência na Corte aguardando julgamento e uma significativa lentidão no processamento das investigações e ações penais originárias no Tribunal, que envolvem, basicamente, prefeitos e, em grande escala, malversação de recursos da área da educação. Não há uma priorização para o enfrentamento desse tema.

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JOTA

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