Rodrigo de Abreu Pinto

As discussões em torno das sociedades com propósito de aquisição de companhia, mais conhecidas como SPACs, estão em voga desde que empreendimentos do tipo inundaram as Bolsas norte-americanas a partir de 2019.
Já no Brasil, o debate ganhou fôlego pela disposição da Comissão de Valores Mobiliários (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cvm">CVM</a>) de discutir o assunto em meio à reforma das normas de oferta pública proposta na Audiência Pública SDM 02/2021, que originou a Resolução CVM 160, de 13 de julho de 2022. Antes disso, o não enquadramento das SPACs nas categorias regulatórias existentes não as tornava vedadas, mas resultava numa regulação custosa e com exigências que dificultavam sua implementação ou reduziam sua eficiência.
Era mesmo necessário encarar de frente os desafios de tropicalização da experiência norte-americana. A Resolução CVM 160/2022 fez isso?
De modo resumido, as SPACs são companhias abertas destinadas a incorporar – via incorporação de sociedade ou de ações — uma companhia de capital fechado que se torna subsidiária integral da SPAC ou a substitui como companhia com registro de companhia aberta após a combinação de negócios.
Sendo uma via de acesso ao mercado de capitais para as empresas adquiridas, eram justas as expectativas em torno das SPACs, que despontavam como alternativa em um mercado com barreiras à abertura de capital de pequenas e médias empresas – seja no que diz respeito aos custos, know-how informacional ou tempo hábil para aproveitar as janelas de oportunidade.
Levando em conta a realidade contábil no momento do IPO, a CVM aproximou a definição de SPAC em relação à companhia pré-operacional, que é o emissor assim definido “enquanto não apresentar receita proveniente de suas operações, em demonstração financeira anual” (artigo 3º, §5º da Resolução CVM 80/2022).
Sendo que a realidade fática das SPACs e das companhias pré-operacionais não são exatamente iguais. A CVM então cravou a definição de SPAC como uma “emissora em fase pré-operacional [mas] constituída com a finalidade exclusiva de participar futuramente no capital social de sociedade operacional pré-existente” (artigo 2º, XXII, da Resolução CVM 80/2022).
Faltava apenas adaptar as características das companhias pré-operacionais ao modelo de negócios das SPACs. As três principais exigências constantes da Resolução CVM 160/2022 às ofertas de companhias pré-operacionais são: 1) exigência de estudo de viabilidade econômico-financeira para o registro da oferta (artigo 29, VII, b); 2) distribuição da oferta apenas entre investidores qualificados, cessando a restrição quando emissor se tornar operacional e decorridos dezoito meses do IPO e da admissão à negociação em bolsa (artigo 28, §1º, I c/c artigo 84); e 3) análise prévia do requerimento de registro pela própria CVM, em exclusão das entidades autorreguladoras (artigo 28, §1º, II).
No caso das SPACs, a CVM dispensou o estudo de viabilidade econômico-financeira. Decisão correta já que as SPACs não aguardam o início das operações e consolidação dos resultados (como as pré-operacionais), mas aguardam aquisição de uma empresa até então desconhecida e cujos resultados e balanços não tem qualquer relação com as demonstrações financeiras da SPAC no momento do IPO.
Os valores mobiliários só podem ser ofertados a investidores qualificados e negociados no mercado secundário entre esses mesmos investidores. Mas diferente das companhias pré-operacionais, a negociação entre investidores de varejo ocorre quando decorridos seis meses da combinação de negócios com a target, momento em que a SPAC já estará em operação e sujeita ao mesmo regime informacional que os demais emissores.
Por fim, assim como no caso de companhias pré-operacionais, não é admitida a análise prévia do requerimento de registro pela entidade autorreguladora, a Anbima.
É elogioso que a CVM tenha criado uma categoria específica às SPACs, ainda que determinadas escolhas sejam questionáveis – em lugar da fixação de um prazo específico para negociação entre investidores de varejo, o momento adequado não seria a partir da transição de pré-operacional para operacional com a aquisição da target? A Anbima não tem condições de avaliar o requerimento de registro das SPACs?
A regulação minimalista da Resolução CVM 160/2022 é flexível e viabiliza que o mercado brasileiro de SPACs evolua e adquira contornos locais. Em especial porque os estatutos sociais das SPACs podem prever várias das cláusulas comuns em SPACs norte-americanas, como a possibilidade de os investidores reaverem os valores aportados caso discordem da escolha da target ou da eventual alteração do CEO (conhecido como sponsor).
Mas deve-se levar em conta que as SPACs não estão submetidas apenas às normas da Resolução CVM 160/2022 que regula as ofertas públicas.
Como qualquer companhia aberta, as normas aplicáveis estão espalhadas em diferentes regulamentos, a começar pela Resolução CVM 80/2022 que dispõe sobre o registro de emissor e a prestação de informações periódicas e eventuais. A título de exemplo: muitas das informações exigidas pelo Formulário de Referência, previsto nessa norma, não deveriam ser aplicadas às SPACs no momento do IPO ou mesmo até a aquisição da target, resultando em injustificados custos de observância.
O ideal é que o tema das SPACs seja discutido com o mercado e regulamentado pela CVM em uma norma específica sobre o assunto. A própria CVM deixou a porta aberta para “uma eventual reforma mais ampla, com ambição de criar um regime detalhado e específico para esse emissor de valores mobiliários, caso isso venha a se mostrar necessário”, como exposto no Relatório da Audiência Pública SDM 02/2021.
É provável que isso aconteça? Acho que não por algumas razões.
A principal razão é que o mercado de SPACs esfriou. Dados dos Estados Unidos: em 2021, ocorreram 362 IPOs de SPACs no primeiro semestre; este ano foram apenas 68, espremidos pela elevação dos juros e casos envolvendo SPACS que apresentaram projeções superestimadas ou fraudulentas sobre as targets adquiridas.
As outras razões tem a ver com as características do mercado brasileiro que prejudicam a viabilidade das SPACs e talvez expliquem porque, ao menos até então, <a href="https://einvestidor.estadao.com.br/mercado/cvm-aceita-pedido-spac-alvarez-marsal">apenas uma SPAC recebeu o registro de companhia aberta no Brasil</a> (embora ainda não tenha feito o IPO).
As empresas de tamanho médio no Brasil enfrentam severos desafios de crescimento, sobretudo por causa das características do nosso sistema bancário (baseado em oferta de crédito de curto prazo e spreads elevados) e do gap existente no mercado de capitais entre os valores que podem ser captados via crowdfunding (máximo de R$ 15 milhões) e via oferta de ações na bolsa (mínimo de R$ 320 milhões, com base na menor oferta pública de abertura de capital realizada em 2021 pela Getninjas). Por isso, tenho dúvidas sobre a variedade de empresas maduras e promissoras o suficiente para serem adquiridas pelas SPACs.
Há ainda o fato de que, além dos custos de abertura de capital, persiste uma série de outras circunstâncias que freiam a abertura de capital das empresas brasileiras – a começar pelos custos de manutenção de uma companhia aberta, mas também em razão de desafios organizacionais que vão além dos custos (como mostrou Gabriela Andrade Góes no ótimo livro <a href="https://www.almedina.com.br/produto/obstaculos-ao-financiamento-de-pequenas-e-medias-empresas-por-meio-do-mercado-de-acoes-no-brasil-9159">"Obstáculos ao financiamento de pequenas e médias empresas por meio do mercado de ações no Brasil"</a>).
Sendo um mercado em amadurecimento, boa parte das empresas de capital fechado – potenciais targets das SPACs — são administradas pelas famílias fundadoras. Há desconfiança na entrada de novos sócios, receio da perda de controle e resistência à implementação de práticas de gestão profissionalizada. Fatores que são agravados em face de um instrumento novo e tão baseado na confiança no sponsor como as SPACs.
Os desafios à tropicalização das SPACs são não apenas jurídicos, mas sociológicos. Se a ausência de uma regulação mais específica limita o surgimento de SPACs, resta saber se os players sentirão falta a ponto de suscitar que o regulador coloque a mão na massa.

SPACs à brasileira: hora de aprender com as lições lá fora.

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JOTA

Entraves à popularização desse tipo de sociedade no Brasil não são apenas jurídicos, mas sociológicos

Os desafios à tropicalização das SPACs

Entraves à popularização das SPACs no Brasil não são apenas jurídicos, mas sociológicos