Wagner Menezes

Anunciado no último dia 4, após duas décadas de complexas negociações, o Tratado sobre a Conservação e Uso Sustentável da Diversidade Biológica Marinha em Áreas além das Jurisdições Nacionais representa um grande avanço para a sociedade internacional, com múltiplas repercussões políticas e normativas que se colocam na vanguarda da agenda global.
A <a href="https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/202/r133-14.PDF?sequence=4&amp;isAllowed=y">Convenção das Nações Unidas Sobre Direito do Mar</a>, celebrada em 1982, estabeleceu um marco jurídico para os Estados no mar a partir da delimitação marítima nos espaços do mar territorial, zona contígua, zona econômica exclusiva, plataforma continental, espaços atribuídos aos Estados para exercer seu direito e soberania e, ainda, os fundos oceânicos e o alto-mar, espaços juridicamente compartilhados como bem comum de toda humanidade, que se inserem no conceito aplicado para além das jurisdições nacionais.
Não obstante, especificamente em relação ao alto-mar, ambiente além daqueles atribuídos à jurisdição e soberania dos Estados, ficou disciplinado consensualmente que ali nenhum Estado poderia impor seu poder e que seria um espaço de uso compartilhado, de liberdade entre todos os povos, desde que fosse utilizado para fins pacíficos.
A necessidade da celebração de um novo tratado que complementasse a utilização do alto-mar como espaço compartilhado, ficou eminente na medida em que ocorreram nas últimas décadas, após a vigência da Convenção de 1982, avanços científicos e descobertas biológicas que potencializaram a exploração econômica dos recursos biológicos e minerais no oceano. Além disso, se percebeu que a sua crescente poluição e contaminação levava à necessidade de aprimorar regras de utilização e exploração do espaço em função dos impactos para a manutenção da vida no planeta, e da profunda interpretação entre o oceano e o equilíbrio ecológico da biodiversidade marinha, face ao enfrentamento do aquecimento global, do destino do planeta e por conseguinte da existência humana.
A proposta de novo tratado aprimorou os mecanismos de regulação, com a compreensão que as áreas marítimas além da jurisdição dos Estados não são um espaço anárquico ou uma res nullius, mas, por compor mais de 50% do planeta e ser composta por ambiente onde está presente rica biodiversidade marinha, espécies e estoques, fluxos migratórios de reprodução, vida abissal, espécies vegetais e o ecossistema marítimo, minerais, biodiversidade conhecida e ainda ignorada, sendo ao mesmo tempo epicentro das mudanças climáticas, aquecimento dos oceanos e sua acidificação, deve ser preservada e protegida por todos os povos.
As complexas negociações sobre diferentes temas transversais antagonizaram países desenvolvidos detentores de capacidade tecnológica e competitiva para explorar recursos marinhos, que por isso buscavam liberdade para atuar, e, noutro lado, países em desenvolvimento tementes em ficar a reboque das consequências da ação desregulada e à margem do compartilhamento de ganhos em um espaço de diversidade vital para o planeta pertencente a todos os povos. Para além desse confronto, o acordo traz à tona uma perspectiva filosófica mais profunda, sobre os destinos da humanidade, da responsabilidade pelas ações humanas e suas consequências para as gerações futuras, nos limites de reflexão para uma ética da espécie humana.
Superadas as controvérsias, após longa negociação, o tratado estará aberto a adesão dos Estados e entrará em vigor 120 dias após a 60ª adesão, sendo dividido em 12 partes temáticas, distribuídas em 70 artigos e mais dois anexos, que disciplinam conceitos importantes e princípios orientadores para sua interpretação jurídico normativa, além de temas focais como: recursos genéticos marinhos, compartilhamento e distribuição dos seus benefícios; adoção de medidas e instrumentos para gestão de áreas e o estabelecimento de áreas marinhas protegidas; mecanismos para avaliações de impacto ambiental; capacitação e transferência de tecnologia marítima; estrutura institucional e administrativa para gestão do tratado e sua implementação; disciplinamento de recursos financeiros; prevenção e mecanismos de solução de conflitos.
O tratado tem como objetivo central assegurar a conservação e a sustentabilidade do uso da diversidade biológica marinha a partir da regulação e cooperação internacional na área além das jurisdições dos Estados gerando assim um regime universal e comunitário sobre os espaços marítimos onde os Estados não possuem poder normativo.
Criticamente, no contexto do seu tratamento normativo, é possível perceber avanços significativos com a institucionalização, por meio de mecanismos de compensação, de instrumentos para gestão e repartição equitativa de atividades que envolvam aos recursos genéticos marinhos, mapeamento sequencial, como pertencentes a todos os Estados e em benefício de toda humanidade, não podendo nenhum Estado reivindicar direitos soberanos. Aos Estados ficou estabelecido a obrigação de tomar medidas legislativas, administrativas ou políticas necessárias para garantir que as informações sejam notificadas, tendo sido proposta criação do Comitê de Acesso e Repartição de Benefícios, que deverá ser composto por 15 membros, eleitos pela Conferência das Partes.
Outro elemento fundamental alcançado pelo acordo foi a assunção da responsabilidade pelos Estados no sentido de conservar e usar de forma sustentável as áreas que requerem proteção, com adoção de instrumentos para proteger, preservar, restaurar e manter a biodiversidade e os ecossistemas, com avaliação de impacto ambiental pelo corpo consultivo técnico do sistema proposto. O tratado estabelece critérios para identificação das áreas a partir de propostas pelos Estados e plano de manejo, com especial menção à consulta aos Estados costeiros adjacentes. O texto comporta decisões cautelares quando sejam necessárias a adoção de medidas para prevenir ou amenizar um dano sério ou irreversível a diversidade biológica, derivado de fenômeno da natureza ou que tenha sido causando por ação humana.
O tratado operacionaliza mecanismos de avaliações de impacto ambiental disciplinando instrumentos e processos para realizar diagnóstico, especialmente para prevenir, mitigar e gerenciar impactos adversos significativos com a finalidade de proteger e preservar o ambiente marinho, estabelecendo canal comunicativo entre as jurisdições nacionais e o mecanismo global, especialmente quando adverte que certas atividades possam causar poluição substancial ou alterações significativas e prejudiciais ao meio marinho em áreas fora da jurisdição nacional, neste sentido os Estados, de forma pública, deverão apresentar relatórios periódicos sobre os impactos de atividades sob sua jurisdição e ampliar vigilância, o que traz responsabilidades jurídicas normativas aos Estados internacionalmente e no plano doméstico.
O documento retoma tema não totalmente resolvido na Convenção de 1982: a transferência de tecnologia marinha. A nova redação redimensiona seu conceito de forma mais clara, reforçando a importância do compartilhamento e transferência por parte de países detentores de tecnologia de seus conhecimentos para acesso a Estados em desenvolvimento, sem onerá-los, especificamente para a conservação e uso sustentável da diversidade biológica marinha, recursos genéticos, gestão, avaliação de impactos ambientais, em áreas além da jurisdição nacional.
Ainda que sejam utilizados termos vagos como “poderá” ou “dentro de suas capacidades”, ou ainda considerando os “interesses legítimos” , deixando a decisão sobre a transferência de tecnologia a critério dos países que a possuem, a sistematização e menção à desejável transferência de tecnologia é louvável e inova, à medida que propõe a criação de um Comitê de monitoramento, gerenciado pela conferência das partes e reafirma tema fundamental para os fins colimados no tratado gerando ambiente favorável à sua ação, especialmente também para países que necessitam buscar soluções de seus problemas estruturais em esquemas de cooperação internacional.
Um dos maiores avanços trazidos pelo tratado foi a preocupação com a institucionalização do sistema de proteção das áreas além da jurisdição dos Estados, estabelecendo-se uma gestão administrativa internacional compartilhada. A Conferência das Partes, mesmo não sendo uma organização internacional com personalidade jurídica, será a instância criada para se reunir periodicamente para determinar a gestão e execução transparente e pública das políticas previstas e coordenar órgãos subsidiários, como o Comitê de Monitoramento para Transferência de Tecnologia e o Comitê Financeiro para Recursos.
A Conferência das Partes terá competência para adotar decisões e promover ações para implementação do acordo, inclusive com poder de iniciativa para solicitar pareceres ao Tribunal Internacional para o Direito do Mar. Ficou instituído também o denominado Organismo Científico Técnico, composto por especialistas com conhecimentos científicos e técnicos que apoiarão seu trabalho em estudos e pareceres científicos, fornecendo assessoria à Conferência das Partes. Compõe a estrutura institucional do sistema o secretariado, que será uma instância permanente de gestão de trabalho e suporte à Conferência das Partes e a manutenção de sua pauta de trabalho e questões burocráticas.
Além dos órgãos o tratado prevê ainda a adoção de um Mecanismo de Compensação vinculado ao secretariado, como sistema de acesso aberto servindo como uma plataforma para disseminação de informações que envolvam recursos genéticos, mecanismos de gestão, avaliações de impacto ambiental, transferência de tecnologia, desenvolvimento de pesquisas, bancos de dados.
O tratado, portanto, insere-se no grupo de acordos multilaterais ambientais, com um regime jurídico específico para gestão compartilhada das áreas além da jurisdição nacional com pauta bem delimitada para proteção da diversidade marinha, dentro de um esperado processo progressivo de institucionalização que aperfeiçoa os mecanismos existentes do Direito do Mar, e que se situa, face ao tecido normativo, interligado a uma colcha de retalhos que envolve diferentes temas transversais e multidisciplinares derivados de diferentes normativas internacionais e nacionais, em uma remodelação interpretativa, além do Direito Internacional Clássico, de um direito universal e comum que opera por mecanismos transnormativos e comunicativos entre seus institutos e as instâncias nacionais, devendo, por isso, ser interpretado sistemicamente.
Para o Estado brasileiro, a participação ativa nas negociações implementadas pela sua diplomacia representou ampliação do exercício da soberania para proteção da sua biodiversidade em razão da contiguidade com o alto-mar de sua extensa costa marítima, e da doutrina da Amazônia Azul capitaneada pela Marinha do Brasil, que repercute obviamente em interesse direto e ganhos para toda sociedade. A participação do Brasil no tratado exigirá adoção de políticas administrativas, remodelação normativa interna e a criação de instâncias nacionais para atender seus objetivos.
Os efeitos jurídicos no campo do Direito Internacional e do Direito interno, ainda que o novo tratado dependa da aprovação pelos Estados, seguindo a ritualística de incorporação constitucional no Brasil, por ter sido negociado e aceito por ampla maioria de Estados, após longa negociação, ele desde já poderá servir como fonte de interpretação para tribunais internacionais ou nacionais em aspectos regulados por seu texto, tendo influência na construção de teses e argumentos, impactando também na produção legislativa de normas nacionais que estejam em consonância com os seus fins.
Na perspectiva normativa sistêmica, o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/direito-do-mar">Direito do Mar</a> é considerado como um direito universal que é aplicado em todo planeta. É impossível pensar nos diferentes ramos do direito sem considerar sua interrelação com o mar, já que ele é uma expressão da vida e da existência humana. Embora os Estados tenham o poder de ratificar o tratado, a humanidade já fez a sua escolha em favor da proteção de seu bem precioso: o mar e sua biodiversidade. O futuro dependerá essencialmente do cumprimento deste tratado.

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JOTA

Participação do Brasil exigirá remodelação normativa interna e criação de instâncias nacionais para atender seus objetivos

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