Fernando Rodrigues Martins

O protagonismo do Ministério Público brasileiro no combate à corrupção, mais acentuadamente a partir de 2014 quando do início da Operação Lava-jato, propicia no sistema jurídico diversas ‘irritações’ que podem ser internamente operadas não apenas no dedutivismo da assimilação normativa, senão ainda nas referências ao escopo teleológico (ratio legis), no cotejo vertical de validade (com respeito aos princípios constitucionais), sem se descurar dos argumentos consequencialistas<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Contudo, é no âmbito da racionalidade (valoração da conduta humana)<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> que hoje se ostenta insuperável ignomínia.
Não há dúvidas da importância de recentes modelos jurídicos positivados no país que possibilitaram melhor combate à corrupção, com maior efetividade no descortinar de condutas danosas não apenas ao erário (diretamente), mas ao patrimônio público como direito fundamental coletivo<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>,  destinado ao livre desenvolvimento de cada cidadão.  Tanto a lei que conceitua as organizações criminosas e estabelece novos padrões processuais na produção de prova no âmbito penal, mediante parâmetros de negociação orientada pelo Poder Judiciário<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, como a legislação que atribui responsabilidade objetiva às pessoas jurídicas por práticas de improbidade<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> são claros exemplos desta nova fase que, necessariamente, ensejará profundo amadurecimento por parte dos elementos sistêmicos, especialmente a jurisprudência.
Evidente que há espaço para reparos e, ao mesmo tempo, reflexões teoréticas. Quanto aos primeiros, não passa despercebido o excesso de exibicionismo<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>, medidas desproporcionais e constrangedoras que se fazem caucionadas no conceito oportuno e plurívoco de ‘interesse público’<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>. Não se trata, aqui, em defender o ‘garantismo’, senão relembrar que o ‘exercício da acusação’ tem fundamento na ética que orienta deontologicamente o comportamento do Ministério Público<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>. Heroísmos, proezas e bravuras não combinam com o perfil constitucional do membro do Ministério Público, pois ‘imputar’ é, sobretudo, solucionar o caso concreto (ou exercer o jus puniendi) conforme o sistema jurídico, nele embutido o dever de solidariedade e respeito.
Já na esfera teórica, a verificação de milhões de reais apreendidos (e recuperados) na anterior posse e conta corrente de diversos atores políticos concede nova envergadura hermenêutica aos direitos fundamentais sociais e aos estudos críticos do direito (Critical Legal Studies), respectivamente. Àqueles, propõe-se ensejo à releitura do mito jurídico da ‘reserva do possível’<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>, isto porque para justificar a defesa do orçamento ante as dificuldades de atendimento às demandas populares faz-se necessário a higidez no trato da coisa pública (afinal se há dinheiro para corrupção é dever da administração reencaminhá-lo aos fins sociais). A estes, tem-se confirmada a tese defendida de desenvolvimento da atividade legislativa como instrumento antidemocrático de promoção dos setores mais poderosos<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>, como no exemplo do enriquecimento dos grandes grupos empresariais mediante alívio fiscal (benefício para poucos e prejuízo para muitos)<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>.
Entretanto, é óbvio concluir que o decantado protagonismo traz consequências, inclusive de repercussão pedagógica (devolvendo conceitos)<a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a>, porquanto a partir de comportamentos reiterados em nome da proteção à res publica ao acusador cabe o cuidado em não ser acusado. Vale dizer: quem cobra deve dar o exemplo para não ser cobrado. Pois bem, curiosamente o Conselho Nacional do Ministério Público gerou precedente perigoso (e até vergonhoso) que causa instabilidade ao plexo normativo e vulnera qualquer sistema jurídico que se pretenda democrático.
Em data de 13.06.2017, editou o Enunciado nº 14 com a seguinte redação: “Atos praticados por Procuradores-Gerais ou por seus delegatários, na função de ordenador de despesas ou de gestão, não podem ser revistos por qualquer órgão colegiado dentro da própria instituição”. O CNMP ‘legislando’ acintosamente tornou inócuos a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público e o Estatuto do Ministério Público da União que têm em seus corpos normas primárias específicas sobre o tema (LOMP, art.10, inc. III, art. 12, inc. I, II e III e LC 75/93 art. 166, inc. XXII), substituindo a pretensão proposta, discutida e votada pelo parlamento em respeito à Constituição Federal pela ‘vontade colegiada’ desprovida da adequada manifestação soberana do povo<a href="#_ftn13" name="_ftnref13">[13]</a>.
Isso equivale dizer que a norma secundária expedida pelo CNMP num só golpe (literalmente golpe!), excetua o Ministério Público, ao contrário de outras instituições, do dever de manter controle interno orçamentário, fiscal e patrimonial dos atos Procuradores-gerais quando das funções de gestão ou ordenação de despesas (só não retirou a fiscalização das funções jurídicas próprias). O controle a partir de agora, pelo indevido enunciado, será apenas externo e a posteriori, desprezando-se os princípios da prevenção e precaução como essenciais matizes dos direitos fundamentais e aqueles outros de accountability e condução responsável da coisa pública inerentes à boa governança<a href="#_ftn14" name="_ftnref14">[14]</a>.
A ausência do controle interno possibilita inúmeros desmandos, em especial aqueles que colocam a fundamentabilidade procedimental exercida pelo Ministério Público nas mãos dos chefes de governo (Presidente e Governadores), responsáveis pela escolha dos Procuradores-Gerais. Exemplo nítido é a devolução de duodécimos orçamentários a governos do Estado em detrimento ao necessário investimento financeiro nas áreas de promoção aos direitos fundamentais pelo Ministério Público.
O pior, todavia, não é isso. Além de ferir frontalmente a Constituição Federal (desafiando toda sorte de ações verticais para adequação valorativa, art. 70) e a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF, art. 48), a norma secundária em testilha lesa a consistência argumentativa e coerência de todo o sistema, importando em ato que coloca em xeque a legitimidade de atuação do Ministério Público, especialmente no dever de imputação. Evidente retrocesso em deveres fundamentais de controle prévio e rebaixamento ético de instituição que deve contribuir integralmente com o combate à corrupção e promoção do patrimônio público.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> António Castanheira Neves. Metodologia jurídica: problemas fundamentais. Stvdia Ivridica 1. Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p. 234/235.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> PULIDO, Carlos Bernal. O direito dos direitos: escritos sobre direitos fundamentais. São Paulo: Marcial Pons, 2013.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> MARTINS, Fernando Rodrigues Martins. Controle do patrimônio público. São Paulo: Revista dos tribunais, 5ª ed., 2013.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Lei 12.850/2013
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Lei 12.846/2013
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> DEBORD, Guy, La société du spetacle, 1967.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Para além das ricas e densas opiniões opositoras entre ‘supremacia do interesse público sobre o privado’ (Bandeira de Mello, Celso Antônio, Curso de Direito Administrativo, Malheiros, 1997) e concretude dos direitos fundamentais (Binenbojm, Gustavo, Uma teoria de Direito administrativo, Renovar, 2008), seria preferível adotar a noção de interesse público fundamental (PERLINGIERI, Pietro, O direito civil na legalidade constitucional, Renovar, 2008).
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Salgado, J. Cesar. Decálogo do Promotor de Justiça. “Ama a Deus acima de tudo, e vê no homem, mesmo desfigurado pelo crime, uma criatura à imagem e semelhança do Criador”
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. Escritos de Derechos Fundamentales. Baden-Baden: Nomos, 1993, p. 65: “La concreta garantia de derechos fundamentales deviene dependiente de los médios financieros estatales disponibles. La ‘imposibilidad económica’ se presenta como limite – necesario – de la garantia (prestacional) de los derechos fundamentales”.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a>DUNCAN, Kennedy, La enseñanza del derecho como forma de acción política.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a><a href="http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2016/12/25/internas_polbraeco,562514/empresas-pagaram-para-alterar-medidas-provisorias-no-congresso.shtml">www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2016/12/25/internas_polbraeco,562514/empresas-pagaram-para-alterar-medidas-provisorias-no-congresso.shtml</a>
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> Giddens, Anthony. A Constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1986.
<a href="#_ftnref13" name="_ftn13">[13]</a> MÜLLER, Friedrich, Quem é o povo?: a questão fundamental da democracia. Trad. Peter Naumann. 5ª ed. São Paulo: RT, 2010.
<a href="#_ftnref14" name="_ftn14">[14]</a> CANOTILHO, José Joaquim Gomes. ‘Brancosos’ e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2ª ed. Coimbra: Almedina, 2008, p. 329

Deusa da Justiça

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