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Vazio normativo

O enigma de Cervantes, em Dom Quixote, ou sobre a origem do 'juiz sancho'

Pensando bem, que mal poderia haver num juiz desse tipo?

João Paulo Rodrigues de Castro
20/12/2018|08:06
Atualizado em 20/12/2018 às 17:43
Dom Quixote e Sancho Pança. Imagem: Pixabay

A expressão juiz Sancho, depreciada por Cervantes, no clássico Dom Quixote, remete ao aplicador do Direito que, na brecha ou indeterminação legal, aplica o coração, o sentimento, para preencher o “vazio normativo”. Mas, pensando bem, que mal poderia haver num juiz desse tipo? Se a própria ideia de conhecimento é disputada entre fundacionalistas, céticos e racionalistas, por que não admitir o sentimento como critério epistêmico de fechamento? Por que a censura de Cervantes em valer-se da misericórdia quando a lei não oferece pronta solução?

Ora, é no momento da experiência em que se corrige a igualdade na diversidade, pela identificação quase completa do conceito de justiça com o de justiça distributiva. A prática remonta a Aristóteles na Ética nicomaqueia, passando por John Rawls em Uma teoria da justiça­. É legítimo estender à prática social da justiça os próprios princípios da justiça. Mesmo Kant, sob o rigor da razão prática, admite a equidade nos casos de contradição, na falência do direito estrito, ainda que a critério do juiz, sem coerção. Se todos os filósofos admitem temperamento da norma em abstrato, pelas circunstâncias do caso, por que essa teima de Cervantes com a equidade?

Voltemos à origem da expressão desabonadora, ao momento em que Sancho vira governador de mentira numa ilha fantasiosa. Tudo começa quando a duquesa e seu marido descobrem que Sancho segue Quixote por ambição, em troca de uma ilha caso deem sorte. Sancho vê Quixote como um mentecapto. Ao saber da história, o duque oferece uma ilha de mentira, dentro da propriedade do casal, cercada de terra por todos os lados e funcionários de mentira, só para brincar com Sancho. É submetido ao já empossado governador da ilha, Sua Excelência, Sancho, parecer sobre o seguinte caso, assim sumariado:

Um rio caudaloso divide dois campos, com uma ponte, ao cabo da qual ficava uma porta e uma espécie de tribunal, com quatro juízes, que julgavam segundo a lei imposta pelo dono do rio. Se alguém passar por esta ponte, deve dizer, sob juramento, aonde vai. Se jurar a verdade, passa. Se disser mentira, morre pela forca que ali se ostenta. Sucedeu que um homem veio, e jurou que o fazia só para morrer na forca que ali estava. Responderam os juízes com o caso e disseram: “Se deixarmos passar esse homem livremente, ele mentiu no seu juramento, e, portanto, deve morrer; e, se o enforcarmos, ele jurou que ia morrer naquela forca, e tendo jurado a verdade, pela mesma lei deve ficar livre”. O que fazer?

Sancho vislumbra, no início, solução pela lógica formal. Segundo o relato de Cervantes: “- Digo eu agora, pois – tornou Sancho -, que deixem passar a metade desse homem que jurou a verdade, e que enforquem a outra que jurou a mentira; e, desse modo, se cumprirá ao pé da letra a condição de passagem”. Foi advertido pelo interrogante que, se o transgressor for partido ao meio, ele por força morre, e, por isso: “(...) não se consegue coisa alguma o que a lei pede, e é de absoluta necessidade que a lei se cumpra”.

Na falência do silogismo, Sancho parte para o princípio do “favor rei”, resolvendo finalmente o enigma. Atentemos à justificativa: “(...) Ou eu sou um tolo, ou esse passageiro que dizeis tanta razão tem para morrer como para viver e passar a ponte, porque, se a verdade o salva, a mentira igualmente o condena; e, sendo assim, sou do parecer de que digais a esses senhores que se contrabalançam as razões de condená-lo e as de absolvê-lo, deixem-no passar livremente, pois é sempre mais louvado fazer o bem que o mal”. Sancho é comparado jocosamente com Licurgo, o lendário legislador de Esparta, pela confluência entre ciência e direito, método e justiça. Na falha do método jurídico, diante da incongruência entre suposto normativo e realidade; partiu-se para o sentimento, sem desprezar a autonomia do direito.

A esta altura o leitor já notou que a inquietação de Cervantes nada tem a ver com a equidade. A birra do gênio está no método, na busca pela verdade, na indistinção entre palavra e coisa, falácia determinante para o equívoco da conclusão de Sancho. A rigor, uma distinção entre níveis de linguagem, com Frege, ou do contexto, para ir ainda mais longe, com Milli, poderia revelar que a afirmação do migrante, na porteira da fazenda, carece de sentido. Afinal, é irrelevante proposição sobre o consequente normativo, se o que está em jogo é a mentira sobre o suposto da norma: a correção sobre destino válido na fazenda de mentira. Todavia, se jurou dizer a verdade, como narra o consulente, para depois afirmar a verdade sobre o futuro; logo, mentiu, e deveria ser conduzido à forca. Só há duas soluções para o problema: não entrar na fazenda ou ir para a forca.

A solução pela terceira alternativa, franqueando a entrada, representa manifesta vantagem do migrante em relação aos demais súditos, e deve ser descartada. Decorre da concepção mítica da linguagem – daí a crítica de Cervantes –, radicalizada pelo cenário ilusório da ilha, ocasião em que: “efeitos mágicos se vinculam de maneira imediata à palavra e à sua posse”ii, conforme esclarece Cassirer sobre a relação entre língua e coisa na Idade da Pedra. Muito além do verdadeiro ou falso, é o sentidoiii que escapou a Sancho, embora repleto de sentimentos na arte de julgar.

É ou não um perigo o tal juiz Sancho, mesmo quando salva vida?

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i COSTA, Cláudio. Filosofia da linguagem. Rio de Janeiro: Zahar, 2016, p. 87.

ii CASSIRER, Ersnt. A filosofia das formas simbólicas. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 80-81.

iii Trata-se de uma falácia verboideológica, conforme a expressão de Vaz Ferreira (FERREIRA, Carlos Vaz. Lógica Viva. Lima: Palestra editores, 2016, p. 164). Para Hart, o desprezo pela lógica do conteúdo em detrimento da lógica direta da proposição decorre do desprezo de Bentham, esquecido por ter ocultado este insight no palavrório “arquetípico”. Cf: Definition and Theory in Jurisprudence. In: H. L. A. Hart. Essays in Jurisprudence and Philosophy. Oxford: Clarendon Press, 1983, p. 30.

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