Rafael Tonicelli

A inserção dos programas de leniência no Brasil representou uma grande mudança de paradigma no Direito brasileiro, especialmente na política anticorrupção do país. A possibilidade de resolução consensual e célere de questões envolvendo práticas corruptivas tem permitido ao país recuperar ativos e implantar de forma eficiente uma cultura de ética corporativa.
Pode-se afirmar, até com relativa segurança, que o programa de leniência anticorrupção funciona como o mais importante mecanismo de reabilitação de pessoas jurídicas infratoras do país. No entanto, percebe-se que o vocábulo “reabilitação” é raramente citado na recente literatura nacional produzida sobre o assunto.
A título de exemplificação, no intenso debate público sobre acordos de leniência, percebe-se que muitos juristas recorrem a conceitos jurídicos complexos, e muitas vezes controversos, como “estado de coisas inconstitucional”, ao invés de se aterem a conceitos mais simples e fundamentais à leniência como a “reabilitação”.
O objetivo deste breve artigo é esclarecer o caráter reabilitativo do programa de leniência anticorrupção e como este caráter deve ser utilizado como uma bússola na construção doutrinária sobre o assunto no Brasil. Este artigo é dividido em três partes. Primeiramente, explica-se o instituto dos acordos de leniência; em um segundo momento, se demonstra a finalidade reabilitativa dos acordos e; por fim, ilustra-se de forma exemplificativa a importância da reabilitação na persecução de crimes corporativos nos <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/eua">EUA</a>.
O acordo de leniência anticorrupção é conceituado como um <a href="https://www.gov.br/cgu/pt-br/assuntos/integridade-privada/acordo-leniencia/como-fazer-um-acordo">instrumento sancionador negocial</a>, celebrado entre Estado e pessoa jurídica. Neste acordo, em troca de sanções atenuadas, a pessoa jurídica reconhece sua responsabilidade e entrega ao Estado informações e provas relevantes sobre atos de corrupção que tiveram a participação de seus funcionários.
Há o estabelecimento de uma relação de troca entre Estado e pessoa jurídica.
Para as empresas celebrantes de acordo, dois benefícios diretos são percebidos. Em primeiro lugar, ocorre a atenuação das sanções, permitindo-as utilizar os recursos economizados em suas operações. Em segundo lugar, no campo reputacional, a empresa não sofrerá a sanção de publicação extraordinária de uma eventual decisão condenatória. A empresa figurará como uma colaboradora que auxiliou o Estado em sua atividade de repressão a ilícitos corporativos.
Para o Estado, o benefício da parceria se manifesta de diversas maneiras.  A controvérsia acerca do delito cometido é resolvida de forma consensual e célere na esfera administrativa, economizando recursos estatais e diminuindo a carga do Judiciário. Os recursos públicos são efetivamente recuperados por meio da cobrança de verbas ressarcitórias e a empresa é efetivamente punida por meio da cobrança de multa. No campo probatório, são fornecidas provas relevantes.
Realizada esta breve digressão sobre o conceito de leniência, retorna-se a ilustrar como o programa de leniência contribui para a reabilitação de pessoas jurídicas. Na tradição da Análise Econômica do Direito (ou Law and Economics), as sanções possuem <a href="https://www.nber.org/system/files/working_papers/w9698/w9698.pdf">três grandes objetivos</a>:
<ul>
<li>Dissuasão (Deterrence): Ato de desencorajar alguém a cometer um ilícito.</li>
<li>Incapacitação (Incapacitation): Ato de inviabilizar que alguém realize uma conduta criminosa. Em se tratando de pessoas físicas, a incapacitação consiste na pena de reclusão. Em termos de pessoas jurídicas, a incapacitação consiste, por exemplo, na declaração de inidoneidade da pessoa jurídica, impedindo-a de contratar com o Poder Público ou em sua dissolução compulsória, impedindo-a de existir no mundo jurídico e, assim, operar no mercado.</li>
<li>Reabilitação (Rehabilitation): Redução na propensão de alguém voltar a cometer um ilícito no futuro.</li>
</ul>
Claramente, nos acordos de leniência, predomina o terceiro objetivo. No acordo, impõem-se obrigações de integridade corporativa. A empresa é obrigada a fortalecer seus controles internos e seu programa de compliance. Tais obrigações reduzem significativamente a probabilidade de ocorrência de ilícitos de mesma natureza. E, se porventura, houver novos ilícitos, a empresa estará devidamente equipada com <a href="https://mneguidelines.oecd.org/guia-da-ocde-de-devida-diligencia-para-uma-conduta-empresarial-responsavel-2.pdf">processos internos de integridade</a> que propiciarão a detecção, apuração e eventual punição dos envolvidos.
Em síntese, após a celebração de um acordo de leniência, a empresa volta a operar no mercado de forma reabilitada. O programa de compliance torna-se um mecanismo de autorregulação, e a empresa torna-se uma parceira do Estado na repressão a ilícitos corporativos. Em contrapartida, o Estado deve assegurar condições para que a empresa possa dar continuidade às suas atividades produtivas.
Por exemplo, grandes construtoras que haviam celebrado acordos de leniência ou estavam em vias de negociação haviam sofrido a penalidade de inidoneidade imposta pelo TCU, o que as impediria de licitar com o Poder Público pelo prazo de 5 anos. Em sede de <a href="https://www.gov.br/cgu/pt-br/assuntos/integridade-privada/acordo-leniencia/arquivos/MS354351.pdf">Mandado de Segurança</a>, a medida foi suspensa, tendo o Ministro-Relator Gilmar Mendes reconhecido que a sanção seria incompatível com o programa de leniência, uma vez que estas empresas necessitavam de grandes obras públicas de infraestrutura para gerar receitas.
Ao final, concluímos com uma breve inserção no Direito Comparado. Não é novidade que os institutos de <a href="http://www.oecd.org/corruption/Resolving-Foreign-Bribery-Cases-with-Non-Trial-Resolutions.htm">justiça negociada</a>, inseridos recentemente no ordenamento jurídico brasileiro, possuem <a href="https://www.gov.br/cgu/pt-br/assuntos/integridade-privada/acordo-leniencia/arquivos/RenatoNicolsJusticianegociadaRevistaGeneraldeDerechoProcesal551.pdf">origem</a> no Direito dos EUA. Faz-se útil aqui demonstrar que o caráter reabilitativo também integra os objetivos almejados por aqueles que deram gênese aos institutos que aqui discutimos.
O Departamento de Justiça (Department of Justice – DOJ) dos Estados Unidos estabelece diretrizes (guidelines) ao seu corpo técnico. Estas diretrizes são instrumentos de soft law que orientam a atuação dos promotores federais nos mais diversos litígios e situações práticas que venham a enfrentar.
Especificamente, no campo corporativo, são regidos pelos <a href="https://www.justice.gov/jm/jm-9-28000-principles-federal-prosecution-business-organizations#9-28.800">Principles of Federal Prosecution Of Business Organizations</a>. No referido texto, a reabilitação é classificada como um dos propósitos gerais do Direito Penal que devem ser assegurados pela atuação persecutória. Dentre os fatores a serem considerados pelos promotores para definir as ações a serem realizadas, devem ser sopesados: a probabilidade de sucesso no tribunal, a adequação de abordagens não criminais (como multas civis) e os eventuais efeitos dissuasório e reabilitativo de uma possível medida.
Ao se firmar um plea agreement (modalidade de acordo), devem ser observados os princípios gerais de punição, dissuasão e reabilitação. No texto, também se externaliza que a instituição e o fortalecimento de programas de compliance são considerados medidas reabilitativas.
Portanto, além de serem ferramentas de investigação para o Estado, os programas de leniência constituem instrumentos de reabilitação de pessoas jurídicas infratoras. No contexto brasileiro, pode-se afirmar que tais programas constituem a implementação de uma política pública voltada à implantação de uma cultura de ética corporativa, uma forma eficaz de combate à corrupção.
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As opiniões expressas aqui são tão somente as opiniões do próprio autor e não necessariamente expressam, direta ou indiretamente, as opiniões de seu empregador.

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JOTA

Reabilitação corporativa e ética como foco central da política pública sobre o tema

O caráter reabilitativo dos acordos de leniência

Leniência anticorrupção no Brasil: reabilitação corporativa e ética como foco central da política pública sobre o tema