Marcelo Feller

Ettore Murbach Fasano

Com a criação do Acordo de Não Persecução Penal (“ANPP”) pela Lei nº 13.964/19, previsto agora no art. 28-A, do Código de Processo Penal, muitas dúvidas têm surgido entre os operadores do Direito Penal. O presente artigo, sem a pretensão de esgotar o tema, busca analisar singelamente a aplicação de referido acordo para os crimes de natureza tributária.
Qual, porém, seria a particularidade dos crimes tributários que os fazem merecer uma atenção especial em relação aos crimes de outra natureza? Simples: o ANPP possui como um dos requisitos para sua celebração a reparação do dano, pelo autor do crime, destinada à vítima. Ocorre que, nos crimes de natureza tributária, o ressarcimento do dano, pelo pagamento integral da dívida do contribuinte com o fisco, implica na extinção da punibilidade do investigado, a teor do art. 9º, §2º, da Lei nº 10.684/03.
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Como, então, seria possível se falar em reparação do dano para a eficácia de um ANPP se, a rigor, o pagamento do tributo (com multas e juros) extinguiria a punibilidade do agente, que sequer teria que se submeter a outras condições impostas pelo Ministério Público?
A resposta parece simples, e possui duas vertentes.
Primeiro: a reparação de um dano, em matéria penal, não pode estar subordinada à reparação do valor com multas, juros e demais encargos. Sobre isso, avaliando o que seria considerado grave dano à coletividade em crimes tributários, o STJ firmou orientação de que para aferição do dano “não se consideram os acréscimos legais (juros, multa etc.), mas somente o valor não recolhido” (HC nº 412.205, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, DJ 2.3.18)<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
No mesmo sentido é a atual posição do STJ ao tratar do princípio da insignificância em crimes tributários, ao afirmar que “o valor a ser considerado para fins de aplicação do princípio da insignificância é aquele fixado no momento da consumação do crime, vale dizer, da constituição definitiva do crédito tributário, e não aquele posteriormente alcançado com a inclusão de juros e multa por ocasião da inscrição desse crédito na dívida ativa” (REsp nº 1.306.425, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJ 1.7.14)<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
Dessa forma, optando o contribuinte pelo pagamento do valor principal, independentemente de comprovação da impossibilidade de pagar todo o débito tributário, fará jus ao ANPP, a ser entabulado com o Ministério Público. Evidentemente, o pagamento do principal não impedirá o fisco de seguir cobrando, em execuções fiscais, os valores acessórios (multa, juros e demais encargos).
Segundo: o ANPP também poderá ser realizado quando ficar demonstrado que o agente não possui capacidade financeira para satisfazer sequer o valor principal sonegado, recaindo sobre si o ônus de comprovar essa impossibilidade.
Tal entendimento pode ser extraído do próprio texto legal, que prevê a possibilidade de celebração do ANPP “mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente: I - reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo;” (art. 28-A, I, do CPP).
Como verificado, o próprio dispositivo legal traz uma exceção à reparação do dano, qual seja a “impossibilidade de fazê-lo”. Esta frase não é nova em nosso ordenamento jurídico. O dispositivo legal que estabelece o instituto da suspensão condicional do processo, por exemplo, já traz esta mesma expressão, ao condicionar a aplicação da suspensão à reparação do dano, “salvo impossibilidade de fazê-lo” (art. 89, §1º, I, da Lei nº 9.099/95)
Analisando a incapacidade de ressarcimento do dano para fins de oferecimento de suspensão condicional do processo, Guilherme de Souza Nucci leciona que “logicamente, não tendo condições econômicas para arcar com o dano, deve receber o benefício do mesmo modo”<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
No mesmo sentido é o entendimento do professor da Universidade Federal de Minas Gerais, Fernando Galvão da Rocha, ao afirmar que a suspensão condicional do processo permite “que o processo seja suspenso sem reparação, quando o acusado não tiver capacidade financeira suficiente”, ressalvando que isso não impediria que fossem feitas “novas avaliações sobre a capacidade financeira do acusado, enquanto não estiver extinta a punibilidade” <a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
A mesma posição tem adotado o STJ que, ao enfrentar a exceção ao ressarcimento do dano como condição ao sursis processual, decidiu que “No que concerne à ressalva trazida no inciso I do § 1º da Lei 9.099/1995, tem-se que a impossibilidade financeira de reparar o dano deve ser aferida no momento da proposta da suspensão condicional do processo, cabendo ao paciente demonstrar que não tem condições para reparar o dano causado com sua conduta.” (STJ, HC nº 291.267 – SP, Rel. Min. REYNALDO SOARES DA FONSECA, DJe: 10/02/2017)
Sendo assim, em analogia ao entendimento doutrinário e jurisprudencial decorrente da análise da expressão “salvo impossibilidade de fazê-lo”, prevista pelo artigo 89 da Lei 9099/95, entende-se que o artigo 28-A, inciso I, do Código de Processo Penal, ao prever a condição de reparação do dano ou restituição da coisa à vítima, “exceto na impossibilidade de fazê-lo”, estabelece ser possível a celebração do ANPP quando impossível o ressarcimento total do dano por incapacidade financeira do agente.
Dessa forma, e concluindo-se: (i) concordando o investigado em pagar o valor principal do tributo suprimido, excetuadas as multas, juros, e demais encargos, deverá fazer jus ao ANPP, independentemente de comprovação de impossibilidade de pagamento integral do débito tributário; (ii) igualmente, havendo pelo agente demonstração de sua incapacidade financeira em sequer pagar o principal, é plenamente possível a celebração de ANPP, em que Ministério Público e investigado poderão acordar o ressarcimento parcial dos danos ou, até mesmo, a desnecessidade do agente em cumprir com esta condição.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> No mesmo sentido, dentre outros, o REsp nº 1.325.685, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJ 21.8.14 e o AgRg no REsp nº 1.412.501, Rel. Min. Laurita Vaz, DJ 10.4.14
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Idem o AgRg no AREsp nº 625.888, Rel. Min. Felix Fischer, DJ 22.9.15
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> NUCCI, Guilherme de Souza – Leis penais e processuais penais comentadas – 2 ed. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 710.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> ROCHA, Fernando A. N. Galvão da – Suspensão condicional do processo e reparação de danos. Disponível em <a href="https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-processual-penal/suspensao-condicional-do-processo-e-reparacao-de-danos/">https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-processual-penal/suspensao-condicional-do-processo-e-reparacao-de-danos/</a>

política fiscal

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JOTA

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