Rodrigo Medeiros de Lima

Com a <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc126.htm">Emenda Constitucional 126/2022</a>, o teto de gastos passou a subordinar-se a uma inusitada condição resolutiva, ab-rogatória: a aprovação de lei complementar instituidora de um novo regime fiscal (art. 6º). Mas por que um novo regime, ao invés de simplesmente voltarmos ao “regime puro” da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), já conhecido de gestores e técnicos e afirmado em sua constitucionalidade pelo STF?
A emenda demanda a instituição de um novo regime fiscal (dito “sustentável”), o que, em tese, pressupõe novidade. Ainda que não signifique óbice ao aproveitamento da LRF, alguma revisão há de haver, não só em coerência com a pretensão do constituinte reformador, mas como encaminhamento salutar, com fins à atualização e ao aprimoramento da lei.
A LRF introduziu modelo ambicioso e inovador, de abrangência federativa ampla, pautado em diretrizes de transparência, planejamento vinculativo, correção de desvios e prevenção de riscos, como fins à promoção da responsabilidade na gestão fiscal e ao equilíbrio das contas públicas. Seu impacto, em termos de transparência e racionalidade, é indiscutível, a despeito dos muitos desvirtuamentos.
Apesar de suas valiosas prescrições, atuais em boa medida, a experiência e o debate técnico-acadêmico evidenciam fragilidades e oportunidades de aperfeiçoamento. Nesta breve análise, enfoco dois pontos: (i) a ausência de diretriz fiscal vinculante de médio prazo e (ii) a prociclicalidade que o seu regime jurídico induz.
Tal diretriz fiscal, sob a forma de limites ou metas plurianuais e vinculantes, ao indicar uma trajetória fiscal de médio prazo, deveria se mostrar apta a, de um lado, direcionar a gestão fiscal e, de outro, conformar as expectativas. Para tanto, é desnecessária e até contraproducente a rigidez excessiva. Mais importante – e imprescindível – é o efetivo comprometimento político. E, justamente pela importância do componente político, penso que essa diretriz deveria ser fixada a cada mandato presidencial, no contexto de um programa, sujeita, naturalmente, a temperamentos legislativos.
Os limites de dívida, tal como disciplinados na LRF, não desempenham perfeitamente esse papel. Primeiro porque a lei admite sua revisão anual, a cada ciclo orçamentário (art. 30, § 5º), independentemente de mudanças no cenário macroeconômico. Segundo porque, para, de fato, indicar uma trajetória fiscal, melhor seria falar em meta, e não em limite. A ideia de uma meta plurianual de dívida, com alguma banda de tolerância, tal como vem sendo ventilado, e a exemplo do que já ocorre com a meta de inflação, é interessante pois, ao mesmo tempo em que elege agregado fiscal mais fortemente associado à noção de sustentabilidade fiscal, reconhece o controle limitado que a gestão fiscal tem sobre sua evolução (e oscilações).
As metas de resultado fiscal, definidas a cada ano na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), tampouco cumprem esse papel. Ainda que sejam antecipadas nas LDOs anteriores, em um horizonte trienal, o são de forma meramente indicativa (não vinculante). Não deixa de existir aí uma sinalização de médio prazo, mas frágil, sobretudo pelo enfraquecimento, observado na última década, do liame entre as metas preteritamente indicadas e as efetivas, fixadas na LDO de cada exercício financeiro.
Penso, aliás, que metas plurianuais deveriam ser estabelecidas na Lei do Plano Plurianual (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ppa">PPA</a>), dada a sua vigência quadrienal, e não na LDO, anualmente rediscutida, reforçando a vocação da primeira como instrumento de planejamento de médio prazo.
Diz-se pró-cíclica a política fiscal que, em momentos de economia aquecida, de elevação da receita, apresenta orientação expansionista – com aumentos de gastos e reduções de tributos –, valendo-se, para tanto, de espaço fiscal em parte transitório; e que, inversamente, em fases recessivas, torna-se contracionista, a fim de compensar a piora do quadro fiscal, mesmo que momentânea, freando uma economia já em desaceleração. As potenciais consequências são o agravamento das oscilações cíclicas da economia, a indução de uma política monetária mais contracionista e onerosa, para fazer frente à sobre-estimulação econômica, e a instabilidade do financiamento de investimento e políticas públicas.
Essa prociclicalidade é uma tendência natural, ante os incentivos políticos ao expansionismo fiscal em tempos de bonança, impedindo a constituição de poupança que poderia vir a amortecer a elevação da dívida em tempos ruins, prevenindo contrações fiscais nesses períodos. E, não raro, acaba sendo reforçada pelas regras fiscais, aspecto que as mais modernas buscam remediar.
A introdução de metas plurianuais vinculantes, pautadas em projeções fiscais acuradas, bem poderia atenuar essa tendência, especialmente sob fórmulas que a isso se mostram mais propícias, como é o caso das regras de despesa (em recomendável associação com regra de dívida). Defendo, porém, limites ou metas de despesa sensíveis a medidas tributárias e, a partir disso, recalibráveis, preservada a trajetória fiscal inicialmente traçada, permitindo maior espaço de manejo da política fiscal, não restringindo o esforço de consolidação fiscal à despesa e ampliando o custo político das renúncias de receita (o que passa, também, por tornar mandatória e efetiva a compensação dessa espécie de comprometimento fiscal, sob a lógica da “pay-as-you-go” americana<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>).
A vinculatividade a que me refiro não afasta a possibilidade de desvios, mas atrai, nesses casos, algum consequente jurídico: mecanismos preestabelecidos de correção ou atenuação – e, idealmente, de dissuasão –, inclusive sob a fórmula “comply or explain” – especialmente pertinente a agregados “menos controláveis”, como a dívida –, onde órgão de controle, em constatando risco de não atingimento da meta, pode recomendar ajustes, passíveis de não acolhimento pelo governo mediante justificativa pública.
As metas vinculantes hoje exigidas, de resultado fiscal, induzem prociclicalidade, na medida em que, para um mesmo resultado, uma arrecadação aquecida permite a ampliação do gasto, enquanto refluxos arrecadatórios deixam menos espaço para despesa. Algo reforçado pelo mecanismo do contingenciamento, caraterizado pelo mandatório bloqueio de empenhos, no curso da execução orçamentária, sempre que constadas frustrações de receita (art. 9º), independentemente do comportamento do ciclo econômico. Trata-se de instituto central do regime da LRF, importante para sua funcionalidade, para o alcance das metas de resultado, especialmente diante de estimativas de receita excessivamente otimistas. Minha crítica não é ao instrumento em si, útil para ajustes pontuais da programação orçamentária, mas a um modelo em que ele se faz mandatório e corriqueiro, na contramão do que se espera de um regime fiscal moderno, orientado ao fortalecimento do planejamento e à otimização da política fiscal quanto a seus impactos macroeconômicos.
O fato de os limites de dívida e despesa serem dados, sob a LRF, como proporção da receita (arts. 19 e 30, § 3º) também constitui fator pró-cíclico, ainda que restrito a estados e municípios – ante a inexistência, para a União, de limite de dívida e a frouxidão do seu limite de pessoal<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> –, possibilitando a ampliação do gasto e da dívida em períodos mais favoráveis, mesmo podendo ensejar, logo adiante, a necessidade de ajustes. Não é de se estranhar que, em momentos de desaceleração, esses entes entrem em apuros fiscais. Ajustes no indexador desses limites, por meio da adoção de médias plurianuais da receita ou critério distinto, poderiam melhorar essa dinâmica.
Problema semelhante decorre não da LRF, mas da fórmula constitucional de apuração dos patamares mínimos de despesa em saúde e educação, igualmente indexada à receita (arts. 198, § 2º, e 212). Não questionamos a importância dessa indexação, que garante financiamento a políticas sociais relevantes em compasso com a geração de riqueza e a capacidade financeira do Estado. Contudo, em vista do comportamento cíclico da receita, é razoável esperar incrementos pouco sustentáveis e oscilações indesejadas dessas despesas.
Há meios, porém, de mitigar os inconvenientes, por exemplo, pela subordinação legislativa de elevações atípicas desses mínimos, excedentes a uma média plurianual, a despesas não recorrentes – como treinamentos e investimentos de um único exercício –, evitando comprometimentos fiscais futuros. Outra possibilidade é a autorização da execução diferida, em exercício subsequente, de incrementos decorrentes de ganhos arrecadatórios imprevistos, constatados no curso da execução orçamentária, de forma a prestigiar a aplicação planejada dos recursos.
A retomada, ou não, da LRF é uma opção política, mas a sua necessária atualização não pode ser negligenciada. Uma LRF aprimorada tem a vantagem de abarcar todos os entes federativos, além prestigiar indubitável marco de governança fiscal. Existem motivos, porém, para se adotar fórmula distinta, restrita à União, dada a urgência da solução e as peculiaridades – constitucionais inclusive – do ente central<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. O mais importante é que a inovação legislativa bem se valha dos aprendizados, dos diagnósticos sobre o que funciona e o que não funciona, sem ignorar o estado da arte do debate em torno de regras e regimes fiscais e as diversas experiências estrangeiras que o informam.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Sobre a regra, recomendo, pelo didatismo, a seguinte explanação: <a href="https://www.cbpp.org/research/federal-budget/the-pay-as-you-go-budget-rule">https://www.cbpp.org/research/federal-budget/the-pay-as-you-go-budget-rule</a>.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> A despesa de pessoal da União nunca se aproximou do limite definido na LRF, nem ao tempo da aprovação da lei, nem depois. Diferentemente do que ocorria com os Estados à época, que, em média, ultrapassavam o limite imposto. Ainda que, percentualmente, em relação às respectivas receitas correntes líquidas, o limite da União (50%) seja inferior ao dos demais entes (60%), a receita federal é muito superior à daqueles, que, por sua vez, concentram mais competências relacionadas à prestação direta de serviços públicos, em muitos casos intensivas em mão-de-obra, com destaque para educação básica e segurança pública.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> A esse respeito, discorro em tópico de meu livro "Regras fiscais e o controle quantitativo da dívida pública federal no Estado Democrático de Direito", denominado “A peculiaridade da dívida pública federal em vista do papel federativo da União”, disponível em: <a href="https://www.blucher.com.br/regras-fiscais-e-o-controle-quantitativo-da-divida-publica-federal-no-estado-democratico-de-direito_9786555501506">https://www.blucher.com.br/regras-fiscais-e-o-controle-quantitativo-da-divida-publica-federal-no-estado-democratico-de-direito_9786555501506</a>.

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JOTA

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