Matias Falcone

No próximo dia 10 de novembro, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgará a proposta de revisão do Tema Repetitivo n. 931, ajuizada pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> Será um dos julgamentos mais importantes do ano.
Em outubro, fez um ano que o STJ acolheu uma tese no mínimo inquietante, que agora é contestada pela Defensoria: quando uma pessoa for condenada ao mesmo tempo a pena de prisão e de multa, segundo a atual redação do Tema 931, o não pagamento da sanção pecuniária impede a extinção da sua punibilidade.
Na prática, o que isso significa?
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Hoje, a pessoa que cumpriu integralmente a pena corporal, ou teve somente uma pena substitutiva a cumprir, poderá se deparar ainda com uma barreira colossal ao seu reingresso na sociedade. Se não pagar o valor da multa penal, que pode ultrapassar os R$ 100 mil a depender do crime a que responde, os efeitos cívicos, políticos e sociais que a condenação impõe em sua vida subsistem para além das grades. Como se, de fato, nunca tivesse deixado a prisão.
Nem sempre foi assim. Até 2020, o STJ entendia exatamente o contrário, ou seja, o tempo da pena corporal demarcava o limite do direito do Estado de punir. E nada além. A multa, nos termos do art. 51 do Código Penal, era tratada como qualquer outro débito fiscal e, mesmo pendente, não atrasava o fim da punição. Tornava-se apenas mais um item no cadastro da dívida ativa.
O estopim da mudança no STJ foi o julgamento, em 2018, da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) 3.150, em conjunto com a 12ª Questão de Ordem da Ação Penal 470 (“Mensalão”) pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
O Ministro do STF Luís Roberto Barroso, em seu voto naquela ocasião, reafirmou o caráter penal (e não apenas fiscal – deixou claro) da multa prevista no art. 51 do CP. Para o Ministro Barroso, “em matéria de criminalidade econômica, a pena de multa há de desempenhar papel proeminente”<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> e apenas na forma de sua cobrança é que poderia, eventualmente, se equiparar a uma dívida fiscal.
Ao mirar nos políticos e empresários condenados por crimes de colarinho branco, corrupção e lavagem de dinheiro, no entanto, o STJ acertou precisamente no seu oposto. São os mais pobres, negros e excluídos em geral – o “público cativo” e sempre desfavorecido do direito criminal – que perde mais com a atual redação do Tema 931.
Uma das preocupações prioritárias das análises em criminologia é a desigualdade social na aplicação da pena de prisão. Mas não se discutiu tanto sobre a pena de multa como fator adicional de marginalização.
A quem as multas penais são aplicadas? A quais crimes se vinculam? Quem tem condições, realmente, de arcar com seu valor? Tais questões – infelizmente ignoradas pelo STJ na atual redação do Tema 931 – foram objeto de investigação autônoma pela Defensoria Pública paulista em seu pedido de revisão.
A Defensoria analisou mais de 70 mil ações de execução da pena de multa no Estado de São Paulo e constatou que, na imensa maioria dos casos, as multas são de baixo valor e aplicadas aos crimes normalmente cometidos por quem é menos favorecido, por exemplo, delitos patrimoniais e os previstos na Lei de Drogas, que representam cerca de 75% da população carcerária<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Já os crimes de colarinho branco, o alvo do STF, correspondem a uma porcentagem muito baixa dos casos analisados.
A questão das multas é especialmente grave, aliás, no caso da Lei de Drogas. Ela prevê quantidades elevadíssimas de dias-multa: o mínimo de 500 e o máximo de 4.000, enquanto o Código Penal estabelece o mínimo de 10 e o máximo de 360.
Até nos casos menos graves da Lei de Drogas, como o “tráfico privilegiado” ou “pequeno tráfico” (art. 33, §4º da mesma lei), ainda assim o mínimo de dias-multa é de 166, o que, calculado no valor unitário de um trigésimo do salário mínimo vigente, ultrapassa os R$ 6.000.
Mas não é só. A pesquisa da Defensoria revelou ainda que a grande maioria das pessoas condenadas a pagar penas de multa são negras, pobres e desempregadas, por isso, não conseguem quitar o valor executado senão em prejuízo da própria subsistência. Quase 77% dos executados recebe menos de dois salários mínimos por mês.
A parcela mais vulnerável da população, portanto, recebe mais penas de multa e, ao mesmo tempo, é a que tem maiores dificuldades de quitá-las.
Os dados sobre a aplicação da pena de multa permitem concluir que o perfil das pessoas que sentem na pele o peso da sanção pecuniária é o mesmo dos encarcerados como um todo. São pessoas que já sofrem uma sobreposição de estigmas, preconceitos e punições.
A pendência da dívida de multa, e a consequente não extinção da punibilidade, geram uma cascata de restrições que excluem a pessoa de todas as esferas da vida pública. Uma sobrepena indevida.
Sem extinção da punibilidade criminal, além de perder benefícios processuais-penais,<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> a pessoa não vota, não é votada e não pode participar de atividades político-partidárias.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> Sem quitação eleitoral, os maiores de 18 anos não podem tirar CPF.<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> Sem CPF, não é possível ser identificado, obter Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS). Não é possível constituir empresa, inscrever-se em concurso público ou tampouco prestar vestibular. Não se pode efetivar matrícula ou renová-la em estabelecimento de ensino público ou fiscalizado pelo governo – praticamente todos. E nem mesmo receber auxílios assistenciais e previdenciários (Bolsa Família, Auxílio Emergencial, entre outros) ou sequer emitir o cartão de atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS). Na prática, não sobra nenhum dos direitos que caracterizam um cidadão na sociedade moderna.
Um exemplo concreto e recente: em setembro passado, Rosângela M., uma mulher em situação de rua, foi presa por furtar dois pacotes de macarrão instantâneo, dois refrigerantes e um refresco em pó. Não foi a primeira vez que furtou alimentos.
Se condenada ao final do processo, e a prevalecer o entendimento atual (e absurdo) de que a reincidência habitual afasta o princípio da insignificância,<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a> Rosângela poderá não ser presa, mas o juiz será obrigado a aplicar a pena de multa, já que a jurisprudência veda a isenção ou a redução do valor executado por causa da hipossuficiência econômica (também absurdo).<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>
Se sequer tinha condições de subsistir, ou seja, de arcar com o valor de R$ 21,69 para comprar comida para si e seus filhos, ela provavelmente não terá como pagar a multa penal, ainda que fixada no mínimo possível de 10 dias-multa e 1/30 do salário mínimo. Ou seja, R$ 360.
Se não pagar, não terá a punibilidade extinta, e assim a história se repete. O final todos conhecem.
Por causa de R$ 21,69, esta mulher, e os que dela dependem, além de uma prisão desnecessária e do estigma da condenação criminal, ainda sofrerá todas as restrições cívicas mencionadas. Como muitos outros, irá se tornar um não-cidadão.
Nada disso é minimamente proporcional à gravidade da ofensa ao bem jurídico tutelado pela lei penal, nem adequado ao fim político-criminal a que se destinam as penas, em especial, a pena de multa.
O Brasil, como muitos países, seguiu a tendência mundial de aplicar a multa como mecanismo ressocializador e alternativo à prisão.
Ao longo de sucessivas reformas – primeiro, em 1984, com a exclusão da hipótese da conversão da multa em prisão pela reincidência,<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a> depois, em 1996, com a exclusão de todas as hipóteses de conversão<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a> – o legislador preocupou-se em desvincular ao máximo a pena de multa da pena de prisão,<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a> de modo que, atualmente, autores como Luís Greco defendem que, no Brasil, “ela não é mais uma pena em sentido material, mas sim em sentido formal ou artificial”.<a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a>
A atual redação do Tema 931 caminha exatamente no sentido contrário à intenção do legislador: impõe ônus desproporcionais ao não pagamento da pena de multa, alimenta o círculo vicioso da reincidência (e, portanto, do encarceramento) e pune a miséria.
Hoje, as consequências cívicas da não quitação da multa atingem, paradoxal e principalmente, quem precisa do Estado para simplesmente sobreviver.
Rosângela, a mulher que furtou para comer, mesmo se pendente a pena de multa, já recuperou seu direito de ir e vir. Mas que liberdade é essa, em que sequer pode exigir do Estado o mínimo existencial para subsistir, por uma determinação do próprio Estado?
E mesmo que consiga subsistir, não é possível conceber uma vida minimamente digna sob a permanente restrição de direitos fundamentais. A própria definição de dignidade pressupõe o exercício de “um complexo de direitos e deveres fundamentais” que a têm por base e que, juntos, visam garantir às pessoas “condições existenciais mínimas”.<a href="#_ftn13" name="_ftnref13">[13]</a>
Afinal, relegados a uma existência subumana, informal e decadente, os inadimplentes da pena de multa vão, aos montes, formando aquilo que o jurista americano Cass R. Sustein classificaria como uma casta de excluídos<a href="#_ftn14" name="_ftnref14">[14]</a>.
Já enfrentam o racismo, a pobreza e o próprio fenômeno da criminalização em suas vidas. Agora, têm diante de si, ainda, um plexo de “desvantagens sociais sistêmicas”<a href="#_ftn15" name="_ftnref15">[15]</a>, muito além do que prevê a lei penal, simplesmente por lhes faltar condições materiais de pagar o que devem à justiça. Noutras palavras: simplesmente por serem pobres.
E não há liberdade, e mesmo igualdade possível, conclui Sustein, se existem castas.
Dentro de poucos dias, o STJ terá a chance de corrigir esta distorção grave. Por todas essas e muitas outras razões, as quais não cabem no breve escopo deste artigo, a Corte deve abraçar a oportunidade e acolher a proposta da Defensoria Pública paulista para adequar a redação do Tema 931 à realidade dos que devem mas não podem pagar.
É uma necessidade urgente. Cidadania não tem preço.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> ProAfR no Recurso Especial n. 1.785.383/SP. A íntegra do pedido de revisão da Defensoria Pública paulista pode ser acessada em: <a href="https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?termo=2018%2F0327183-5&amp;aplicacao=processos.ea&amp;tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&amp;chkordem=DESC&amp;chkMorto=MORTO">https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?termo=2018%2F0327183-5&amp;aplicacao=processos.ea&amp;tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&amp;chkordem=DESC&amp;chkMorto=MORTO</a> .
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Acórdão disponível em: <a href="https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&amp;docID=750449016">https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&amp;docID=750449016</a>. A citação foi extraída da página 40, item 15, do voto do Ministro Barroso.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) de dezembro de 2019. Disponível em: <a href="http://antigo.depen.gov.br/DEPEN/depen-lanca-infopen-com-dados-dedezembro-de-2019">http://antigo.depen.gov.br/DEPEN/depen-lanca-infopen-com-dados-dedezembro-de-2019</a>.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> “(...) este fica privado de diversos benefícios processuais, como a impossibilidade de realizar acordo de não persecução penal (artigo 28-A, §2º, inciso II do CP), impossibilidade de responder ao processo em liberdade provisória (artigo 310, §2º, do CP), aumento no lapso temporal para progressão de regime (artigo 112 da LEP) e em caso de nova condenação, impossibilidade de fixação de regime aberto, ainda que a pena seja inferior a quatro anos” (AYRES, Luna. As alterações na execução e no cumprimento da pena de multa. CONJUR. 2019).
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Art. 337 do Código Eleitoral. Participar, o estrangeiro ou brasileiro que não estiver no gôzo dos seus direitos políticos, de atividades partidárias inclusive comícios e atos de propaganda em recintos fechados ou abertos:
Pena - detenção até seis meses e pagamento de 90 a 120 dias-multa.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Conforme IN n. 1548, de 2015, da Receita Federal do Brasil.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Ver HC 557.194, julgado pelo STJ, embora o STF já caminhe em sentido diverso, como se vê do HC 176.564.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Nesse sentido: STJ - AgRg nos EDcl no AREsp: 1667363 AC 2020/0041025-1, Relator: Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, Data de Julgamento: 01/09/2020, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 09/09/2020. E ainda: HC 298.169/RS, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 11/10/2016, DJe 28/10/2016.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Art. 38 (antiga redação). A multa converte-se em detenção, quando o condenado reincidente deixa de pagá-la ou o condenado solvente frustra a sua cobrança.
Modo de conversão 
Parágrafo único. A conversão da multa em detenção é feita à razão de dez mil réis por dia, até o máximo de um ano, não podendo, porém, ser ultrapassado o mínimo da pena privativa de liberdade, cumulativa ou alternativamente cominada ao crime.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> Art. 51 (antiga redação). A multa converte-se em pena de detenção, quando o condenado solvente deixa de pagá-la ou frustra a sua execução.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> Ressalvada a controvertida regra do art. 36, parágrafo 2º, do Código Penal, que ainda prevê:
Regras do regime aberto
Art. 36 - O regime aberto baseia-se na autodisciplina e senso de responsabilidade do condenado. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
<ul>
<li>
2º - O condenado será transferido do regime aberto, se praticar fato definido como crime doloso, se frustrar os fins da execução ou se, podendo, não pagar a multa cumulativamente aplicada. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
</li>
</ul>
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> GRECO, Luís. Opõe-se o princípio da culpabilidade à penalização de pessoas jurídicas? Reflexões sobre a conexão entre pena e culpabilidade, tradução de O. Gleizer, in: Greco, As razões do direito penal. Quatro estudos, org.: Viana/Montenegro/Gleizer, Madrid/São Paulo, Marcial Pons, 2019, pp. 53-82. p. 73.
<a href="#_ftnref13" name="_ftn13">[13]</a> SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade (da pessoa) humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 10 ed. rev. e atual. Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2015, p. 70-71.
<a href="#_ftnref14" name="_ftn14">[14]</a> Cass R. Sunstein, The Anticaste Principle, 92 MICH. L. REV. 2410 (1994).
<a href="#_ftnref15" name="_ftn15">[15]</a> Id. p. 2411. Tradução livre.

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JOTA

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