Filipe Medon

Foi promulgada no último dia 3 de janeiro a <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2022/Lei/L14289.htm">Lei 14.289/2022</a>, que torna obrigatória a preservação do sigilo sobre a condição de pessoa que vive com infecção pelos vírus da imunodeficiência humana (HIV) e das hepatites crônicas (HBV e HCV) e de pessoa com hanseníase e com tuberculose. A nova lei abre campo para frutífero diálogo de fontes com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), em especial no que diz respeito a informações sensíveis referentes à saúde.
Antes de tudo, vale esclarecer que a LGPD, diferentemente do GDPR – o Regulamento Geral de Proteção de Dados Europeu –, não criou uma categoria especial para os dados referentes à saúde. No Velho Continente, o legislador trouxe em seu artigo 4º quatro categorias de dados: dados pessoais, dados genéticos, dados biométricos e dados relativos à saúde, compreendidos como “dados pessoais relacionados com a saúde física ou mental de uma pessoa singular, incluindo a prestação de serviços de saúde, que revelem informações sobre o seu estado de saúde”. Já no diploma brasileiro, tanto os dados relativos à saúde, como os biométricos e genéticos acabaram integrando o rol dos dados pessoais sensíveis constantes do inciso II do artigo 5º.
Em seu artigo 2º, a nova lei traz que: "É vedada a divulgação, pelos agentes públicos ou privados, de informações que permitam a identificação da condição de pessoa que vive com infecção pelos vírus da imunodeficiência humana (HIV) e das hepatites crônicas (HBV e HCV) e de pessoa com hanseníase e com tuberculose, nos seguintes âmbitos: I - serviços de saúde; II - estabelecimentos de ensino; III - locais de trabalho; IV - administração pública; V - segurança pública; VI - processos judiciais; VII - mídia escrita e audiovisual".
Em linhas gerais, o objetivo do referido dispositivo é impor que certos agentes, públicos ou privados, sejam impedidos de divulgar informações que permitam identificar que as pessoas são portadoras dessas patologias, o que se fundamenta na preocupação com a estigmatização que poderia surgir em decorrência da divulgação dessas condições médicas. A título de exemplo, pense-se que uma diretora de uma escola não poderia divulgar ao corpo estudantil que certo aluno é portador de uma doença como a hanseníase. Ou, ainda, que um empregador não poderia divulgar aos demais empregados que um colaborador é portador de HIV.
Ainda no artigo 2º, o parágrafo único, que excepciona a regra do sigilo, faz expressa alusão à LGPD, ao dispor que: "O sigilo profissional sobre a condição de pessoa que vive com infecção pelos vírus da imunodeficiência humana (HIV) e das hepatites crônicas (HBV e HCV) e de pessoa com hanseníase e com tuberculose somente poderá ser quebrado nos casos determinados por lei, por justa causa ou por autorização expressa da pessoa acometida ou, quando se tratar de criança, de seu responsável legal, mediante assinatura de termo de consentimento informado, observado o disposto no art. 11 da Lei 13.709, de 14 de agosto de 2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais - LGPD)".
O artigo da LGPD referenciado pela nova lei disciplina as bases legais que autorizam o tratamento dos dados pessoais sensíveis. Decorre daí importante questionamento: seria esta menção um indicativo de que as bases legais constantes do artigo 11 poderiam justificar eventual tratamento de dados, especialmente nos casos do inciso II, quando não se dispensa o fornecimento de consentimento por parte dos titulares?
A bem da verdade, uma leitura atenta da LGPD permitiria chegar à conclusão de que o legislador não inova substancialmente, uma vez que o conteúdo das novas normas, em essência, já podia ser extraído da legislação. Isso porque, sendo os dados referentes à saúde enquadrados como dados sensíveis, o seu tratamento já seguiria, naturalmente, regras mais estritas, como aquela constante do artigo 11. Por certo, a gravidade e a potencialidade estigmatizante das patologias elencadas pela nova lei justificam tutela intensa, mas isso não significa que pessoas acometidas por outras condições médicas não devam gozar da mesma proteção.
Para além das questões relativas ao tratamento dos dados pessoais referentes à saúde, a sua divulgação não autorizada já era, mesmo antes da entrada em vigor da LGPD, tida como violadora de diversos direitos da personalidade, em especial da privacidade e da imagem encarada como atributo. Outrossim, a relação médico-paciente é marcada por deveres de sigilo que possuem tanto natureza legal, quanto deontológica, espraiando-se também sobre os documentos médicos, de que são exemplos os prontuários e os diversos laudos. Cite-se, a título meramente exemplificativo, o Código de Ética Médica e a Resolução nº. 1.605/2000 do Conselho Federal de Medicina (CFM), que em seu artigo 1º já dispunha que: "O médico não pode, sem o consentimento do paciente, revelar o conteúdo do prontuário ou ficha médica". Com efeito, são os médicos adstritos não apenas a normas referentes ao sigilo próprio do exercício da profissão, como a normas gerais decorrentes da LGPD.
Diante disso, ao menos em relação ao artigo 2º, a nova lei em nada parece ter inovado. Por outro lado, o mesmo não se pode dizer quanto ao disposto no artigo 5º, que em sua literalidade afirma: “Nos inquéritos ou nos processos judiciais que tenham como parte pessoa que vive com infecção pelos vírus da imunodeficiência humana (HIV) e das hepatites crônicas (HBV e HCV) e pessoa com hanseníase e com tuberculose, devem ser providos os meios necessários para garantir o sigilo da informação sobre essa condição.”
Aprofundando o caput, os parágrafos dispõem que: "§1º Qualquer divulgação a respeito de fato objeto de investigação ou de julgamento não poderá fornecer informações que permitam a identificação de pessoa que vive com infecção pelos vírus da imunodeficiência humana (HIV) e das hepatites crônicas (HBV e HCV) e de pessoa com hanseníase e com tuberculose. §2º Em julgamento que envolver pessoa que vive com infecção pelos vírus da imunodeficiência humana (HIV) e das hepatites crônicas (HBV e HCV) e pessoa com hanseníase e com tuberculose no qual não seja possível manter o sigilo sobre essa condição, o acesso às sessões somente será permitido às partes diretamente interessadas e aos respectivos advogados".
O referido artigo revela a importância de se compreender que a publicidade do processo e dos atos judiciais não pode ser conduzida às últimas consequências, sendo perfeitamente possível conciliá-la com a proteção aos dados pessoais e à privacidade das partes. Como já se teve a oportunidade de analisar de modo mais aprofundado em outra sede, restrições ao acesso a documentos contendo dados sensíveis “não afetariam a publicidade dos atos processuais garantida pelo artigo 5º, inciso LX da Constituição da República, nem dificultariam o acesso à justiça, porque não se tratariam de óbices intransponíveis, mas de requisitos adicionais de segurança e proteção de dados. Ao fim e ao cabo, o que se pretende é restringir parcialmente a publicidade para garantir e efetivar a proteção da privacidade e a tutela dos dados pessoais, igualmente protegidas”<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> pela Constituição.
Nessa direção, em boa hora, a lei limita o acesso de certas informações exclusivamente às partes interessadas e aos respectivos advogados, pois não há interesse público que justifique o acesso de terceiros estranhos à lide a dados pessoais tão sensíveis que possam versar sobre uma ou mais partes, ainda mais quando se corre o risco de que a sua divulgação possa lhes causar embaraço, estigmatização ou constrangimentos.
Esta norma, na linha do que já se defendia, tem ainda o importante papel simbólico de mostrar que o legislador está preocupado com a publicização excessiva do processo judicial, podendo, até mesmo, servir como base para analogia em relação a outros dados sensíveis e até sigilosos que as partes possam pretender afastar do acesso de terceiros estranhos à lide.
Finalmente, cabe ainda tecer dois comentários em relação à nova lei. O primeiro deles diz respeito aos destinatários da norma. Assim, estabelece o artigo 3º e seus parágrafos que a obrigatoriedade de preservação do sigilo recai não apenas sobre os profissionais da saúde, como sobre todos os trabalhadores e instituições, tais como operadoras de planos privados de assistência à saúde.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
O segundo comentário se refere aos efeitos do descumprimento da lei, que acabaram sendo disciplinados pelo artigo 6º e seu parágrafo único. Assim, segundo o caput: "O descumprimento das disposições desta Lei sujeita o agente público ou privado infrator às sanções previstas no art. 52 da Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018, bem como às demais sanções administrativas cabíveis, e obriga-o a indenizar a vítima por danos materiais e morais, nos termos do art. 927 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil)".
Por sua vez, o parágrafo único traz um agravamento nas sanções em caso de dolo "nas situações em que for divulgada informação sobre a condição de pessoa que vive com infecção pelos vírus da imunodeficiência humana (HIV) e das hepatites crônicas (HBV e HCV) e de pessoa com hanseníase e com tuberculose por agentes que, por força de sua profissão ou do cargo que ocupam, estão obrigados à preservação do sigilo, e essa divulgação ficar caracterizada como intencional e com o intuito de causar dano ou ofensa, aplicar-se-ão em dobro: I - as penas pecuniárias ou de suspensão de atividades previstas no art. 52 da Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018; II - as indenizações pelos danos morais causados à vítima".
Interessante notar que o legislador quis deixar expresso que são aplicáveis tanto as indenizações gerais do Código Civil como as sanções administrativas previstas pela LGPD e impostas pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD). Trata-se, no fundo, de uma consequência lógica: afinal, sendo os dados referentes à saúde concebidos como dados pessoais (sensíveis!), já se atrairia obrigatoriamente a aplicação das regras da LGPD. Resta, no entanto, avaliar com mais cautela a aplicação em dobro dessas sanções.
Com efeito, o que se observa da nova lei é que, salvo pequenos detalhes, como a possibilidade de sancionamento agravado no caso de dolo, a lei pouco inova, mas não se pode concebê-la como desnecessária ou inútil: muito pelo contrário. O texto tem a importante vantagem simbólica de reforçar a proteção, o combate aos estigmas sociais e de indicar que eventuais restrições à consulta de terceiros estranhos à lide não ferem de morte a publicidade dos atos processuais, mas, por outro lado, reforça a garantia constitucional à proteção dos dados pessoais e da privacidade da pessoa humana, buscando minimizar eventuais estigmas causados pela divulgação indesejada de condições médicas.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Para uma análise mais aprofundada das implicações do tema, consinta-se remeter a: MEDON, Filipe. Quem precisa de vazamento de dados pessoais quando estes já estão disponíveis no processo eletrônico? In: Jota, 14 jun. 2020. Disponível em: <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/quem-precisa-de-vazamento-de-dados-que-ja-estao-disponiveis-no-processo-eletronico-14062020">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/quem-precisa-de-vazamento-de-dados-que-ja-estao-disponiveis-no-processo-eletronico-14062020</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Art. 3º Os serviços de saúde, públicos ou privados, e as operadoras de planos privados de assistência à saúde estão obrigados a proteger as informações relativas a pessoas que vivem com infecção pelos vírus da imunodeficiência humana (HIV) e das hepatites crônicas (HBV e HCV) e a pessoas com hanseníase e com tuberculose, bem como a garantir o sigilo das informações que eventualmente permitam a identificação dessa condição.
<ul>
<li>
1º A obrigatoriedade de preservação do sigilo sobre a condição de pessoa que vive com infecção pelos vírus da imunodeficiência humana (HIV) e das hepatites crônicas (HBV e HCV) e de pessoa com hanseníase e com tuberculose usuárias dos serviços de saúde recai sobre todos os profissionais de saúde e os trabalhadores da área de saúde.
</li>
<li>
2º O atendimento nos serviços de saúde, públicos ou privados, será organizado de forma a não permitir a identificação, pelo público em geral, da condição de pessoa que vive com infecção pelos vírus da imunodeficiência humana (HIV) e das hepatites crônicas (HBV e HCV) e de pessoa com hanseníase e com tuberculose.
</li>
</ul>

towfiqu-barbhuiya-FnA5pAzqhMM-unsplash

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Texto pouco inova, mas tem a importante vantagem simbólica de reforçar o combate a estigmas sociais

A Lei 14.289/2022 e a proteção aos dados referentes à saúde

Lei 14.289/2022 pouco inova, mas tem a importante vantagem simbólica de reforçar o combate a estigmas sociais