Carlos Portugal Gouvêa

Em setembro deste ano perdemos John Ruggie, um dos principais contribuidores para a visão moderna de relações internacionais e para o surgimento da governança socioambiental. Neste mês, como resultado da COP 26, estamos próximos de finalmente contar com uma sólida base internacional para combater o aquecimento global.
Nossa homenagem será traçar uma breve história de como o professor Ruggie contribuiu para este processo, tendo trabalhado para a criação do Pacto Global, do qual surgiu a metodologia ESG (environmental, social and governance), e dos Princípios das Nações Unidas sobre Negócios e Direitos Humanos. Ao buscar trazer maior legitimidade para a ONU, aproximando-a de empresas e organizações não governamentais, seu trabalho trouxe um impacto profundo para a governança corporativa. Tal “efeito colateral” tornou-se o principal legado de seu trabalho e, para honrá-lo, é preciso compreendê-lo. Damos aqui um passo nesse sentido, na esperança de que seu trabalho seja mais difundido no Brasil.
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A força do trabalho de Ruggie estava em identificar na realidade determinadas tendências, por meio de uma pesquisa acadêmica rigorosa, e assim permitir que a sociedade pudesse refletir sobre tais processos. Ruggie se diferenciava da maior parte dos intelectuais da época engajados politicamente em questões diplomáticas, os quais se dividiam entre os realistas quanto ao exercício do poder para preservação da ordem internacional e os liberais motivados por um idealismo instrumentalizado de expansão dos sistemas democráticos. Ruggie conseguiu identificar que, após o atentado de 11 de setembro de 2001, ambas as visões aparentemente contraditórias se tornaram amalgamadas, e determinados temas, como a proteção dos direitos humanos e do meio ambiente, perderiam força na nova ordem mundial.
De maneira muito pragmática e com profunda compreensão do funcionamento das instituições, identificou que uma possível solução residia em atores não tradicionais das relações internacionais e, principalmente, nas grandes companhias que resultaram do processo de globalização dos anos 1990. Seu trabalho foi um legítimo exemplo da articulação entre a atividade acadêmica e política, com a preservação de uma grande coerência entre ambas.
Nascido em 18 de outubro de 1944 em Graz, na Áustria, John G. Ruggie foi criado em Toronto, no Canadá. Graduou-se em política e história pela Universidade McMaster, naquele país, e obteve seu doutorado em ciências políticas pela Universidade da Califórnia, em Berkeley, nos EUA. Ruggie pesquisou as relações de colaboração internacional, as estruturas das organizações internacionais e seu envolvimento em disputas internacionais, bem como ações internacionais frente aos avanços tecnológicos.
Ao longo de sua carreira acadêmica, Ruggie foi professor da Universidade de Columbia, tornando-se diretor da Escola de Relações Públicas e Internacionais (SIPA), talvez a mais prestigiosa do mundo na área. Ingressou no corpo docente da Universidade Harvard em 2001, tendo sido professor Berthold Beitz em Direitos Humanos e Assuntos Internacionais na Kennedy School of Government e professor afiliado em Estudos Legais Internacionais na Harvard Law School.
Uma de suas maiores contribuições acadêmicas foi o trabalho desenvolvido no artigo “International Regimes, Transactions, and Change: Embedded Liberalism in the Postwar Economic Order” <a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, no qual relata as origens da ordem econômica de Bretton Woods, as tensões que a moldaram e levaram ao seu fim, além de caracterizar a ordem econômica global na qual os Estados capitalistas mantinham uma abertura no comércio e nas finanças ao lado de um Estado de bem-estar social doméstico. Com seu trabalho e suas relevantes pesquisas sobre multilateralismo e territorialidade, Ruggie deixou sua marca na política global e moldou todo um subcampo da teoria das relações internacionais ao enfrentar a crescente complexidade da sociedade global.
Em razão de seu trabalho acadêmico, Ruggie foi convidado então pelo secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, para atuar como seu secretário-geral-adjunto para Planejamento Estratégico, ocupando tal cargo de 1997 a 2001. A gestão de Kofi Annan na ONU foi revolucionária. No aspecto simbólico, Annan foi a primeira pessoa negra e a segunda pessoa africana a ocupar tal cargo. Além disso, assumiu tal posição em um momento delicado da história da organização. O fim da Guerra Fria, marcado pela queda do Muro de Berlim, poderia representar o grande sucesso da organização ao ter cooperado para evitar uma guerra nuclear entre os blocos capitalista e soviético.
As grandes conferências dos anos 1990, como a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento do Rio de Janeiro (Rio-92 ou Eco-92) e a Conferência Mundial dos Direitos Humanos de Viena (1993), ocorreram em meio a tal sentimento. No entanto, o fim da Guerra Fria também representou uma perda de relevância da ONU pela menor propensão dos países ricos a criarem sistemas de apoio aos países pobres para impedir o avanço dos respectivos blocos conflitantes. Diante de tal situação, era necessário dar um novo conteúdo prático e ideológico à ONU. Foi para este processo que John Ruggie foi crucial.
Ruggie colaborou para a arquitetura dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, lançados em 8 de setembro de 2000. Com a adoção da Declaração do Milênio das Nações Unidas pelos então 191 Estados-membros, ficaram estabelecidos oito objetivos <a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> a serem alcançados até 2015. Os objetivos promoveram esforços sem precedentes para atender às maiores necessidades do mundo, especialmente das populações mais pobres, e serviram para alavancar a busca de soluções específicas para cada sociedade. Tal projeto já tinha alguns dos traços característicos do pragmatismo de Ruggie. O principal era que tais objetivos articulavam o papel histórico da ONU na propagação dos direitos humanos com metas concretas e atingíveis com um mínimo de coordenação entre os seus Estados-membros.
Mais importante para o ganho de legitimidade da ONU não seriam os Objetivos do Milênio em si, mas um dos instrumentos criados pela gestão de Annan para realizá-los: o Pacto Global das Nações Unidas (United Nations Global Compact), lançado em 2000. A beleza pragmática do Pacto Global estava em perceber que existiam novos agentes da política internacional, que eram as grandes companhias e as organizações não governamentais. Naquela época, na qual iniciei minha carreira profissional no terceiro setor, a visão tradicional era que as ONGs tinham papel de fiscalizar governos e empresas.
No âmbito da governança corporativa também imperava a visão confrontacional com relação ao governo, opondo regulações que afetassem de qualquer maneira sua atividade econômica, assim como a ideia de que as organizações não governamentais deviam ser mantidas à maior distância possível. Era o ambiente perfeito para a lógica “dividir para conquistar”, evidenciando que em breve observaríamos regressões importantes na proteção da democracia e dos direitos humanos.
O Pacto Global seguia a lógica exatamente oposta e sofreu enorme descrédito quando foi lançado, no sentido de que seria uma iniciativa inócua. Sofreu críticas das pessoas que acreditavam que a política internacional deveria ser o palco exclusivo dos estados. Sofreu críticas de representantes do setor privado que eram contrários à imposição de obrigações às empresas. Sofreu críticas do terceiro setor, por ser uma possível estratégia de marketing para aplacar violações.
Passadas duas décadas, o Pacto Global se consolidou como a maior iniciativa de responsabilidade social corporativa do mundo <a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, alterando permanentemente o que entendemos por governança corporativa. Tornou este tema, que antes era completamente desconsiderado pela teoria tradicional de finanças e do direito societário, por exemplo, em parte da discussão central contemporânea em tais áreas.
O fruto mais concreto do Pacto Global surgiu de um relatório de algumas companhias do setor financeiro publicado em 2005 com o nome Who Cares Wins. Neste relatório foi inicialmente esboçada a metodologia ESG para financiamento de companhias. Ao criar métricas para o impacto das companhias no meio ambiente, na proteção dos direitos humanos e no combate à corrupção, tal metodologia iniciou uma silenciosa revolução na forma como vemos hoje a governança corporativa. Revelou também o sentido concreto da visão de Ruggie, de uma política internacional não apenas multilateral, entre diversos Estados, mas multipartes, nas quais companhias e organizações não governamentais, e, por consequência, pessoas comuns, poderiam “pular” a representação governamental para, de forma direta, fazerem-se ouvir no palco internacional. A atuação das companhias e do terceiro setor brasileiro na COP 26 deste ano, demonstrando uma visão muitas vezes contrária à do governo brasileiro, demonstrou muito bem a importância desta nova visão.
Em 2005, Ruggie foi nomeado Representante Especial do Secretário-Geral da ONU para Negócios e Direitos Humanos. Em tal cargo, conseguiu, a nosso ver, apresentar os principais resultados de sua perspectiva, articulando o rigor acadêmico com planos institucionais pragmáticos. Tive a oportunidade de acompanhar tal processo, pois enquanto finalizava minha tese de doutorado na Faculdade de Direito de Harvard, muitas amigas e amigos participaram dos projetos de pesquisa de Ruggie e suas atividades faziam parte de nossas conversas diárias. Eram pesquisas profundas, buscando identificar práticas de grandes companhias que desmistificassem a ideia de que companhias lucrativas seriam aquelas que conseguiriam manter os governos e as organizações da sociedade civil o mais longe possível. O que Ruggie identificou foi o oposto. As companhias com melhor desempenho financeiro eram as que buscavam maior transparência e colaboração.
Com base em dados ainda preliminares, Ruggie lançou em 2008 o seu primeiro relatório, que chamou de Quadro Referencial para Negócios e Direitos Humanos. Nele, apresentou a sua ideia de que essas relações poderiam ser resumidas com os termos proteger, respeitar e remediar. Em resumo, os governos devem proteger os direitos humanos, as empresas devem respeitar os direitos humanos e todos aqueles que causarem danos devem remediá-los. O brilhantismo de tal marco é que ele estava embasado no regime jurídico de quase todos os países democráticos. Como dissemos, Ruggie não inventou nada, apenas estudou e explicou. No entanto, foi surpreendente o nível de oposição que este primeiro relatório trouxe. Ainda em 2008, o escritório de advocacia Wachtell, Lipton, Rosen &amp; Katz LLP, por muitos considerado o de maior prestígio nos EUA, publicou um relatório afirmando que o Quadro Referencial representaria um prejuízo às companhias de seu país, pois teriam que arcar com custos que companhias de países menos desenvolvidos não teriam, resultando em uma perda competitiva injustificável.
Tal reação do status quo do direito societário ilustrava a tendência reacionária do sistema jurídico como um todo nessa matéria. Ruggie continuou suas pesquisas, e em 2011 lançou os Princípios Orientadores sobre Negócios e Direitos Humanos, endossados por unanimidade pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU no mesmo ano. O que mais me fascina neste texto é o fato de que, apesar de ser chamado de “Princípios Orientadores”, o que encontramos em seu conteúdo não são sugestões vagas e sem aplicação prática. Pelo contrário, são ações concretas a serem tomadas por Estados, companhias e organizações da sociedade civil para criarem um ambiente de cooperação para efetivar os direitos humanos.
Os Estados devem ter sistemas jurídicos que permitam a responsabilização efetiva dos que cometem violações de direitos humanos. Já as companhias devem tomar ações práticas, como fiscalizar seus fornecedores, implementar auditorias jurídicas externas e independentes com foco na identificação de violações, construir um sistema para recebimento de denúncias internas e externas protegidas de pressões contra tais investigações e tornar tais informações públicas para que a sociedade civil possa fiscalizar as suas ações para prevenir e remediar problemas. A força de tais recomendações não estava na sua sofisticação teórica, mas em um conjunto de práticas concretas de governos, companhias e organizações da sociedade civil, implementadas em países ricos e pobres, em casos de grande repercussão na mídia e desconhecidos, envolvendo empresas globais ou de pequeno porte.
Muitos exemplos mostram que tais ideias não eram um sonho, mas uma tendência. Um deles fala mais que mil palavras. O escritório Wachtell, Lipton, Rosen &amp; Katz LLP voltou atrás alguns anos depois, ao tecer elogios sobre os princípios. Um símbolo de que o trabalho de Ruggie saiu de uma visão marginal e polêmica para tornar-se o padrão de conduta global.
Infelizmente, quase nenhuma companhia brasileira está efetivamente adaptada aos princípios orientadores. Faltam as medidas mais centrais, como a realização de auditorias externas e independentes e a transparência das informações resultantes das investigações. Enquanto no exterior existem inúmeros exemplos relevantes de companhias que tornaram relatórios de violações de direitos humanos públicos, como nos casos de corrupção da Siemens e no caso da Uber, com as violações aos direitos das mulheres, no Brasil ainda predomina a visão de que as empresas não devem produzir provas contra si mesmas. Uma visão contenciosa e não colaborativa.
Estamos atrasados, muito atrasados. Tal atraso em um momento em que o mercado mundial se transforma com tamanha rapidez pode significar que o Brasil seja condenado ao subdesenvolvimento por mais algumas décadas. Mas mudanças rápidas, como as que hoje identificamos nas práticas de governança corporativa internacionalmente, são também oportunidades. Caso fôssemos capazes de não apenas implementar os princípios orientadores, mas ainda inovar, ir além, estaríamos construindo uma vantagem competitiva para nosso país.
Enquanto isso não acontece em um patamar nacional, as empresas que resolverem estudar essa matéria e implementar as políticas recomendadas terão vantagens ante os competidores. Acho que essa foi a mensagem de John Ruggie. Mesmo que não sejamos capazes de acabar com todas as violações de direitos humanos no mundo, façamos a nossa parte e tornemos tal trabalho público, criando um exemplo que possa ser efetivamente estudado, difundido e, principalmente, repetido.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> RUGGIE, John Gerard. International Regimes, Transactions, and Change: embedded liberalism in the postwar economic order. International Organization, [S. L.], v. 36, n. 2, p. 379-415, 1982.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> 1) Erradicar a pobreza extrema e a fome; 2) Educação Básica Universal; 3) Promover igualdade de gênero e empoderar as mulheres; 4) Reduzir a Mortalidade Infantil; 5) Melhorar a Saúde Materna; 6) Combater HIV/AIDS, a Malária e outras doenças; 7) Garantir Sustentabilidade Ambiental; 8) Parceria global pelo desenvolvimento.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> De acordo com o <a href="https://www.unglobalcompact.org/what-is-gc/participants">website oficial do Pacto Global</a>, há mais de 19 mil companhias signatárias, sediadas em mais de 160 países. PACTO GLOBAL. See who's involved: our participants. 2021.

john ruggie

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